Vossa Excelência não é Bolt

“No Brasil, o único herói é o povo brasileiro. O povo que supera os obstáculos impostos pela desigualdade. O povo que luta contra a miséria. O povo que carrega o peso da injustiça social. O povo que corre da polícia para não morrer. O povo que esgrima contra seus opressores. O povo que nocauteia a fome para sobreviver”.

Por Leonardo Isaac Yarochewsky, em Justificando

Vossa Excelência não é o atleta e velocista jamaicano que encantou o mundo ganhando nove medalhas de ouro em três olimpíadas. Vossa Excelência não tem o carisma e o largo sorriso de Usain Bolt. Como Juiz, jamais será um mito, embora alguns o tenham transformado. Vossa Excelência é simplesmente um Juiz, mas, às vezes, se esquece disso.

Carnelutti ponderou que um homem, para ser juiz, deveria ser mais que um homem. Contudo, o juiz, qualquer que seja ele, é um ser humano, com suas imperfeições, seus desejos íntimos e secretos, suas vicissitudes, seus medos, suas angustias e fragilidades, enfim, suas circunstâncias (Ortega y Gasset).

Adverte que como Juiz suas decisões podem ser questionadas e estão sujeitas a reformas e revisão dos tribunais Superiores. Na condição de Juiz, Vossa Excelência deve estar restrito à legalidade. Não pode decidir conforme sua “boa-fé” ou “consciência”.

Hodiernamente, felizmente, vive-se diante do império da Lei e não dos homens. Sendo Juiz, o senhor pode até “correr” para fazer “justiça” – ou seria “justiçamento” – mas não pode atropelar o devido processo legal, desprezar o sagrado direito de defesa e olvidar do contraditório. O Juiz não deve considerar o réu e seu defensor como adversários de uma competição em que se busca uma medalha.

Não, Juiz, Vossa Excelência, data venia, não é herói

Bolt(s) são excepcionais, raros, podem levar anos, décadas e até séculos para aparecerem outros. Juízes são muitos, bons e maus, garantistas e autoritários, cultos e ignorantes, humanos e desumanos. Juízes não são heróis e, se são transformados em super-homens, alguma coisa está errada.

O Juiz deve agir com serenidade, deve ser equilibrado, não deixar que sua vaidade obstrua seu discernimento, necessita ser imparcial – neutralidade é mito -, falar somente nos autos, garantir tratamento igualitário às partes, zelar pelo respeito às leis, jurar respeito à Constituição da República, não ser baixo com os grandes e nem arrogante com os miseráveis (Rui Barbosa). Quando o Juiz se traveste de herói e de salvador da pátria ele esquece de seu mister. Ele olvida que é humano e, portanto, falível.

Os “super-homens” devem ficar reservados para as estórias em quadrinhos, para as telas do cinema e no máximo para os jogos olímpicos.

No Brasil, o único herói é o povo brasileiro. O povo que supera os obstáculos impostos pela desigualdade. O povo que luta contra a miséria. O povo que carrega o peso da injustiça social. O povo que corre da polícia para não morrer. O povo que esgrima contra seus opressores. O povo que nocauteia a fome para sobreviver.

O povo que, segundo Giorgio Agamben, nas línguas europeias modernas, sempre indica também os pobres, os deserdados, os excluídos. “Ou seja, um mesmo termo nomeia tanto o sujeito político constitutivo como a classe que, de fato, se não de direito, está excluída da política”.

No Brasil – talvez por razões históricas e culturais – prevalece o significado de povo como classe excluída que remonta à Revolução Francesa – “le peuple, lês malheureux m’applaudissent” (o povo, os infelizes me aplaudem), costumava dizer Robespierre.

Nas olímpiadas da vida só há medalha para o povo brasileiro.

Não, Juiz, Vossa Excelência, data venia, não é herói. O número de condenações, o acúmulo de penas elevadas e de prisões descabidas não faz de ninguém melhor. Hoje Vossa Excelência é aplaudido; amanhã, quando não servir mais aos interesses da classe dominante e dos poderosos da mídia, será descartado e outro será posto em seu lugar. Não duvide.

Já Bolt permanecerá para sempre, seus recordes podem até ser superado – e algum dia será – mas ele já faz parte da história olímpica.

Sendo apenas um Juiz, não se deixe iludir com os afagos e aclamações de hoje. Não admita que sua consciência e o direito sejam ofuscados pela luz dos holofotes da fama e fazem dos mortais, ainda que momentaneamente, uma celebridade.

Lembre-se, Vossa Excelência não é Usain Bolt.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Professor.

Foto: Gabriel Bouys, AFP.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

11 + dois =