Padura: Brasil, uma novela ruim

“O fato de que os ritos legais e a Constituição tenham sido os instrumentos usados para levar a cabo aquilo que muitas pessoas no mundo consideram um golpe de Estado parlamentar é uma certeza dolorida. Mas também uma lição de como podem ser frágeis alguns instrumentos do contrato social e do papel que as massas, quando acionadas, podem desempenhar — como a própria História já mostrou em várias oportunidades.”

Por Leonardo Padura* – Blog da Boitempo

As telenovelas brasileiras sempre se guiam por um código dramático e ético: embora os heróis passem por terríveis dificuldades e recebam os mais duros golpes, ao final a justiça e a verdade sempre saem vitoriosas. É por isso que elas são telenovelas, e fazem sucesso nas mais diferentes culturas. Mas a realidade, como sabemos, costuma avançar por meio de outros mecanismos, mesmo quando se trata da realidade brasileira.

Devo confessar que, quando quase todo mundo, ao analisar racionalmente o desenvolvimento do processo de destituição da presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, antevia o seu resultado, eu mantinha, romanticamente, alguma esperança em uma mudança da sentença anunciada. Talvez por uma deformação profissional, eu confundia a realidade com o código das telenovelas. Agora que o famoso impeachment se concretizou e Dilma foi tirada do seu cargo, o ocorrido me parece tão política e humanamente instrutivo que, apesar de tudo o que já se escreveu a respeito, atrevo-me a enfiar a minha colher, contrariando até mesmo o meu costume de não dar opinião sobre realidades cujos meandros mais profundos eu não domino, já que não participo do seu dia a dia. Por isso, atrevo-me, aqui, a expor algumas ideias que me atormentam e que têm me tirado o sono.

Não é segredo para ninguém que a corrupção é um mal quase endêmico nas sociedades latino-americanas (embora não apenas nelas). E o fato de se julgar um presidente por ter participado de atos desse tipo me parece uma decisão exemplar. No caso específico de Rousseff, porém, até onde pude ler e compreender, o seu pecado não se encaixa nessa categoria, e sim naquilo que poderia ser classificado como um mau uso dos fundos públicos, não com objetivos de ganho pessoal, como é hábito, mas para manter em funcionamento algumas políticas adotadas pelo seu Governo e que ela considerou prioritárias.

A primeira coisa que parece curiosa, nessa lógica, é que uma quantidade significativa dos juízes que decidiram o destino da ex-presidenta enfrenta processos por corrupção pura e simples; são alvo de investigações em curso que, se levadas a cabo e julgadas com a mesma contundência com que se apreciou a administração de Rousseff — e é assim que deveria ser, em se tratando de justiça —, poderiam leva-los até mesmo à prisão. Se não todos, pelo menos alguns deles. Nem que fosse para se continuar a dar o bom exemplo.

Também não é segredo, ao longo de todos esses meses em que tanto se falou da crise política brasileira, o fato de terem ocorrido erros políticos e estratégicos por parte da ex-mandatária, os quais estiveram por trás das fricções e rupturas que atingiram a coalizão interpartidária que a sustentava. Mas equívocos desse gênero acontecem todos os dias nos gabinetes governamentais do mundo inteiro, e as crises conseguem ser solucionadas com o debate político, e não com o julgamento e a condenação aplicados no caso de Rousseff.

Tamanho empenho para tirar do poder a ex-presidente e, com ela, o Partido dos Trabalhadores, ao qual Dilma pertence, deve esconder, portanto, outras razões menos claras e visíveis. Pois as toneladas de mesquinharias e de ódio acumulados nas altas esferas da política brasileira têm motivações mais obscuras: a vingança e o empenho para frustrar um projeto político, ou, como ouvi dizerem, “um projeto de país”.

A radicalização dos partidos e dos senadores contra Rousseff trouxe consigo o mau cheiro de uma revanche, destinada a desmontar uma política social que, nos anos de governo do PT, definiu para si um objetivo fundamental: melhorar a vida dos brasileiros em geral e dos mais pobres e marginalizados em particular. Sem dúvida, Lula e Dilma cometeram erros em suas gestões, e sob seus mandatos houve casos de corrupção, nos quais, ao menos até o momento, não se provou a sua participação. Mas os dois presidentes, e também não há dúvida sobre isso, trabalharam em favor daquele grande objetivo econômico e social. No mínimo o estimularam muito mais do que quase todos — ou do que todos — os presidentes anteriores desse país. E os dados mostram isso.

Como é possível, então, que tantos brasileiros, muitos mais do que aquilo que se poderia chamar de oligarquia ou dos inimigos reunidos nos partidos contrários a essa política, tenham participado do solapamento do prestígio de Rousseff e, nesse sentido, viabilizado a sua condenação?

No caso dos primeiros, os motivos são claros. Mas no que se refere ao restante dos brasileiros que se opunham ou criticavam a gestão de Dilma, as coisas se complicam, pois não apenas a classe média, mas também muitos trabalhadores, inclusive moradores de favelas, participaram dessa demolição. Poder-se-ia dizer que a crise econômica e a capacidade reduzida de lidar com ela influíram na percepção desse setor da população, mas existem outros dois elementos que me parecem mais instrutivos: em primeiro lugar, a facilidade com que os meios de comunicação e a propaganda conseguem manipular o pensamento das massas; em segundo, a sempre presente ingratidão humana, impulsionada, neste caso, pelas ambições pessoais nem sempre realizadas.

Inúmeras vezes se argumentou que a destituição da presidenta aconteceu nos marcos do sistema legal e respeitando-se a Constituição. E as duas afirmações podem, até devem estar corretas. Mas também não deixa de ser correto afirmar que os ritos processuais e a Constituição foram grosseiramente manipulados para se operar uma vingança. Se inicialmente o rosto de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara e detonador do impeachment, e agora o de Michel Temer, elevado à dignidade da posição presidencial, foram identificados como os protagonistas do processo, todos nós sabemos que os dois apenas cumpriram um papel que os ultrapassa e em que são utilizados para dar conta do real objetivo: mudar o rumo político e social do país.

O que se travou no Brasil, assim, não foi uma disputa partidária, nem mesmo política: foi uma aposta na mudança de um estado de coisas que atingia ou podia atingir grandes interesses econômicos e que, de maneira lamentável, contou com o apoio explosivo de muitas das vítimas desses interesses econômicos. Agora, enquanto a História avança e começa a reunir argumentos para realizar seus julgamentos definitivos, o Brasil e sua democracia vivem momentos obscuros. O fato de que os ritos legais e a Constituição tenham sido os instrumentos usados para levar a cabo aquilo que muitas pessoas no mundo consideram um golpe de Estado parlamentar é uma certeza dolorida. Mas também uma lição de como podem ser frágeis alguns instrumentos do contrato social e do papel que as massas, quando acionadas, podem desempenhar — como a própria História já mostrou em várias oportunidades.

No final, além do dolorido sentimento de frustração, muitos de nós comprovaremos mais uma vez que é mais fácil escrever um final feliz para uma telenovela do que para a realidade de um mundo em que se condena Dilma Rousseff e o seu projeto enquanto Donald Trump e o seu anti-projeto nos espreitam. Isso, para mencionar apenas um exemplo dentre outras tantas realidades assustadoras que nos cercam.

* Artigo publicado originalmente na coluna de Leonardo Padura no El País em 9 de setembro de 2016, com o título “Brasil, una mala telenovela“. A tradução ao português é do El País – Brasil.

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