Em entrevista ao Esquerda.net, Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), adverte que o governo Temer é o mais perigoso para os trabalhadores desde o início da Nova República. E defende que o grande desafio posto à esquerda brasileira é reconstruir a sua vinculação com o povo. Por Luis Leiria, do Rio de Janeiro
Luis Leiria – Esquerda.net
Aos 34 anos, Guilherme Boulos assumiu um protagonismo decisivo nas mobilizações contra o novo governo nascido do impeachment de Dilma Rousseff, sob o lema “Fora Temer”. O MTST, por ele dirigido, é o mais dinâmico dos movimentos sociais que atuam no Brasil e o que mais cresceu nos últimos anos.
Chegou atrasado ao nosso encontro, marcado dias antes num café no centro de S. Paulo, para conceder esta entrevista ao Esquerda.net. Pede-me desculpas pela demora, mas eu tranquilizo-o: conheço bem esse tipo de vida repleta de reuniões que muitas vezes se prolongam inesperadamente. Pergunto-lhe de quanto tempo dispomos. Uma hora. Mais do que suficiente.
Mas não me deixa começar de imediato. Pede-me que antes fale um pouco da situação política portuguesa. Apanhou-me de surpresa, habituei-me a que ninguém no Brasil, mesmo na esquerda, tenha o mínimo interesse pela política de Portugal. Bom sinal. Será que a geração do Boulos está menos enfurnada no Brasil e menos de costas voltadas para o exterior? Explico-lhe a “geringonça” e as contradições que ela envolve, o jogo de forças entre a Comissão Europeia de um lado, e as pressões da esquerda para que seja cumprido o acordo com o Bloco, o PCP e os Verdes do outro, acordo esse que permitiu viabilizar o governo de António Costa.
Começa então a entrevista e a certa altura pergunto-lhe se tem ambições políticas. Responde-me corretamente que o que ele faz é altamente político e que política não é apenas a intervenção institucional. Dito isto, não fecha a porta a uma participação institucional no futuro: “Acho que isso não é algo que ninguém possa descartar a priori”, diz. Ainda vamos ouvir falar muito dele.
Filho de médico, formado em filosofia, especializado em psicologia, começou muito jovem a militância política. Apaixonado pela capacidade de organização do MTST, acabou indo viver para um acampamento de ocupação do movimento, e a dedicar-se de alma e coração à causa da moradia digna para os trabalhadores, da reforma urbana, do direito à cidade.
Que avaliação faz das últimas eleições municipais no Brasil, as primeiras a realizar-se já depois do impeachment da presidente Dilma e já sob o governo do vice Michel Temer?
Nós podemos dizer, grosso modo, que houve uma vitória dos setores mais à direita que representam um projeto neoliberal na economia e um projeto conservador na política. Fundamentalmente com um crescimento do PSDB, que teve uma vitória em S. Paulo de proporção surpreendente. E, entre as maiores cidades do Brasil, o PSDB foi o maior vitorioso.
Ao mesmo tempo, podemos dizer que foi uma grande derrota do PT, inquestionável. O PT perde dois terços das suas prefeituras, vence apenas em uma capital pequena, Rio Branco, de todas as capitais brasileiras, e vai a segundo turno em Recife. E o voto petista – e isso é o mais preocupante – saiu do PT e via de regra não foi para a esquerda. Foi canalizado pela direita.
Dito isso, acho que há dois fatores que são dignos de nota. Um deles é o crescimento do PSOL. Não foi um crescimento suficiente para alavancar o PSOL como uma alternativa de esquerda que venha a tomar o lugar do PT, mas o PSOL vai ao segundo turno em duas capitais, uma delas o Rio de Janeiro. O PSOL elege os vereadores mais votados em várias capitais, teve candidatos a prefeito com mais de 20% dos votos…
Alguns desses candidatos a vereadores mais votados foram mulheres…
Sim, a maioria foram mulheres.
Isso é interessante…
Claro. Em Belo Horizonte foi uma mulher negra, em Porto Alegre a Fernanda Melchionna, em Belém a Marinor Brito… Ou seja, o PSOL se coloca como um segmento de representatividade de novos movimentos sociais com um dinamismo importante de representação.
E um outro fator que precisamos considerar é o avanço do “não voto”, ou seja, as abstenções, o voto nulo e o voto em branco. Isso não foi um facto novo, houve um avanço progressivo nos últimos processos eleitorais. Mas, nas grandes cidades, foi um pico. Em S. Paulo, o Dória, o prefeito eleito, teve menos votos do que esses três somados. No Rio de Janeiro foram 42% os eleitores que não votaram, ou votaram nulo ou branco.
Isso num país em que o voto é obrigatório.
Claro. Belo Horizonte, foram 43%, o maior resultado deste voto entre as capitais, quase metade. É algo que tem de se analisar. Isto reflete uma desilusão com a política, uma rejeição à política, que, convenhamos, é justificada, porque o sistema político brasileiro está falido, está em pandarecos, mas ao mesmo tempo também pode ser canalizado pela direita. O João Dória é eleito com um discurso antipolítico, “eu não sou político”, sou um gestor, sou um empresário. Isso pode levar à tecnocracia, efeito Donald Trump, efeito Berlusconi.
Acho que o balanço que podemos fazer destas eleições é um avanço da direita inquestionável, uma derrota do PT também muito forte e, não podemos deixar de dizer, pelos erros do PT, mas não só; o PT tem vindo a ser alvo de um linchamento mediático desde há dois anos sem precedentes. É difícil ver um partido que resistiria a isso.
Refere-se à operação Lava-Jato?
Refiro-me à operação Lava-Jato mas refiro-me também ao linchamento mediático que tem sido regra, e que é extremamente direcionado contra o Partido dos Trabalhadores. Mas evidentemente, reitero aqui, também pelos seus erros. Isso abre um campo de disputa onde a esquerda deve se colocar. Além de enfrentar os governos de direita, a disputa é por canalizar essa insatisfação do eleitorado.
Disse no dia das eleições que o PT já não tem autoridade para ter a hegemonia da esquerda. O que tinha em mente ao dizer isso?
Isso não vem apenas desse resultado eleitoral. Não é ele que estabelece essa sentença para o PT. O PT foi, na minha opinião, a força política, nos últimos 35 anos, capaz de produzir um guarda-chuva que unificou o eleitorado progressista, unificou com a parte dos movimentos sociais e populares, do movimento sindical, da intelectualidade progressista. Por mais que haja críticas e questionamentos, o PT era a alternativa que aparecia a esse campo. Foi a aposta dos governos petistas num pacto social, com Lula, mantido por Dilma, o “ganha-ganha”, em que a burguesia continua ganhando mas, pela primeira vez em muito tempo, ganham também os trabalhadores, com o aumento gradual do salário mínimo, da massa salarial, do crédito popular, dos programas sociais.
A crise económica solapou as bases para que esse projeto continuasse indo adiante, porque esse processo de “ganha-ganha” foi feito sem qualquer combate efetivo aos privilégios históricos no Brasil, sem nenhuma reforma popular. Nós costumamos dizer que o Estado brasileiro é o Robin Hood ao contrário: ele tira dos pobres, por um sistema tributário extremamente regressivo, onde se tributa o consumo e não a renda, e dá aos ricos, por um sistema de dívida pública baseada em juros usurários. Essa lógica de funcionamento do Estado brasileiro é concentradora. Mas o PT não mexeu nisso. Foram treze anos em que isso não foi tocado. Não se trabalhou a democratização do sistema político, a democratização das comunicações que são oligopólicas no Brasil.
Os avanços sociais que, na minha opinião, são inegáveis, dos governos petistas, foram feitos à custa de manejo orçamentário. Houve um crescimento económico em que as políticas adotadas pelo governo contribuíram para que esse crescimento acontecesse, mas também surfou a onda do crescimento chinês, do aumento do preço das commoditiesinternacionalmente. Esse crescimento permitiu um aumento da arrecadação, um aumento orçamentário que deu base a essa política. Só que depois de 2008, acabou a festa.
Com a queda dos preços internacionais das commodities, a crise económica…
A retração do mercado internacional… Um exemplo: o Brasil é o 2º maior exportador do mundo de minério de ferro. Em 2008, a tonelada do minério de ferro custava 200 dólares; agora está custando 40, 50.
Ou seja: não era mais possível manter esse modelo. E o PT não foi capaz de apresentar outro projeto. Pelo contrário, quando a Dilma se reelege, em 2014, quando a crise já está estourando, o que ela faz é adotar o programa de austeridade, de mais uma vez tentar repactuar com a burguesia, jogando a conta da crise para as costas dos trabalhadores. E isso fez com que a base progressista, a base popular responsável por sustentar os governos petistas desde 2006 rompesse com este governo, que perdeu a credibilidade perante esta base.
Isso deu condições para o golpe institucional que tivemos no país, o golpe parlamentar, em que o governo se torna flutuante, perde a sua sustentação social, e a direita percebe a situação e se aproveita para dar um golpe, e isso deixa o PT sem autoridade política e moral para conduzir um novo projeto de esquerda no Brasil.
Eu não sou daqueles que acham que o PT acabou, que o PT está morto. Acho que esse é um juízo precipitado. O Lula continua sendo a principal liderança social e política do país. Não é à toa que está sendo caçado e achincalhado pelo sistema judicial e pelos média. Agora, desde um ponto de vista de esquerda, principalmente porque o PT não faz uma autocrítica desse processo, faz apenas autocríticas pontuais e fragmentárias, desde um ponto de vista de esquerda, não me parece que o PT tenha condição de ser o condutor de um processo de reorganização da esquerda brasileira. Foi isso que eu quis dizer naquele momento. E acho que as eleições municipais atestam ainda mais esse processo.
Aparentemente, o PT, mesmo prevendo uma catástrofe eleitoral, manteve a mesma política: fez muitíssimas alianças com partidos que votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo…
O PT manteve as suas alianças com os partidos golpistas. Quando ocorreram as eleições para a Presidência da Câmara dos Deputados, setores do PT compuseram com a direita mais oligárquica e atrasada, que é o DEM do Rodrigo Maia, que se tornou presidente da Câmara. Defenderam a composição em nome da derrota de Eduardo Cunha. Ou seja: não foi questionada a lógica de acreditar nos acordos, de se tornar refém dos setores mais conservadores.
Na minha opinião, uma das coisas que o golpe demonstra é o fracasso de uma política de conciliação. A burguesia não quis mais. Quando a burguesia quer prender o Lula, que foi a voz que permitiu esse consenso construído na sociedade, isso tem um simbolismo histórico muito forte. A burguesia disse: “acabou o momento da conciliação, agora é espoliação pura, eu não quero mais o PT, agora eu preciso acumular e espoliar. Preciso acabar com os direitos dos trabalhadores, preciso fazer um programa de terra arrasada, de destruir os investimentos sociais, que é o programa de Michel Temer, é o programa do golpe.
Quem do lado de cá não entender isso, não está entendendo o que está acontecendo no país.
Você apoiou a candidatura do Marcelo Freixo (PSOL) para a prefeitura do Rio de Janeiro…
E continuo apoiando.
Aliás, chamou-me a atenção que ao mesmo tempo que foi ao Rio manifestar esse apoio, o Lula também lá foi mas para apoiar a candidatura de Jandira Feghali (PC do B). Tem esperanças de que o Freixo possa vencer o 2º turno?
Tenho esperanças, sim. O Freixo não é um candidato arrivista, aventureiro. Ele construiu uma legitimidade no Rio de Janeiro como liderança política de esquerda que é muito considerada. Construiu um movimento de diálogo com a base, teve uma votação expressiva, quase um terço, nas últimas eleições, fez o enfrentamento às milícias – foi assim que se notabilizou pela sua firmeza, coragem no enfrentamento a essa excrescência que são as milícias, apoiadas pelo Estado subterraneamente. Na minha opinião, o Freixo conseguiu ganhar no Rio de Janeiro o voto de opinião de esquerda, conseguiu penetrar muito bem nos setores médios, conseguiu penetrar mais do que na outra ocasião em setores populares, mas as regiões mais periféricas ainda deram voto ao Crivella.
O desafio neste 2º turno é o Freixo conseguir penetrar nessas regiões, se apresentar a esse povo e ter condições de ganhar as eleições. Eu acho que isso é possível, porque o Freixo não é um candidato elitista, longe disso, e acho que pode ter sim uma boa estratégia de comunicação e de trabalho de campanha para, na reta final, vencer. Vai ser muito duro, pelas sondagens não está fácil, mas vejo possibilidades.
E há outro fator: agora os tempos de antena são iguais. No primeiro turno, o Freixo tinha apenas 11 segundos…
Foi muito desigual. O Freixo chegar ao 2º turno, o Edmilson [candidato do PSOL de Belém] chegar ao 2º turno – principalmente o Freixo, porque o Edmilson fez uma composição maior – é um milagre.Um dos objetivos da reforma eleitoral patrocinada pelo Eduardo Cunha foi silenciar o PSOL. A campanha foi de apelo social, e com a participação de intelectuais e artistas importantes. Acho que agora no 2º turno, numa situação mais equitativa, as possibilidades de reverter o resultado são maiores.
Falemos um pouco do governo Temer. Logo que tomou posse, depois do afastamento definitivo de Dilma, houve muitas manifestações contra o novo governo, levantando a palavra de ordem “Fora Temer”. Em S. Paulo, foram quase diárias, durante uma semana. Mas, por outro lado, o Temer tem um apoio extremamente sólido no Congresso Nacional e pretende aplicar uma política de ataques muito violentos. Que avaliação faz deste governo?
Acho que o governo Temer talvez seja o mais perigoso para os trabalhadores, para o povo pobre do Brasil, desde o início da Nova República. E é perigoso porque, na medida em que não foi eleito, que não pretende reeleição, não precisa prestar contas a ninguém na sociedade brasileira. O próprio Temer diz isso em alguns momentos: “eu não sou candidato”, “não me preocupo com popularidade”, “vou fazer o que for necessário”. Ele está habilitado, pela sua falta de legitimidade social e de voto popular, para realizar o programa do Mercado, o programa de terra arrasada, que talvez sequer um governo eleito da direita teria condições de fazer. Porque teria de preservar aparências, pensaria dali a quatro anos na próxima eleição. O Temer tem um apoio consistente dos média – não é uníssono, existem críticas, mas é um apoio consistente, que os governos do PT nunca tiveram. Tem apoio de ⅔ do Parlamento. Apesar de ser uma base fisiológica, ele sabe lidar bem com isso, foi um gestor do fisiologismo durante muito tempo. E o Temer tem uma sustentação em bloco do empresariado. Claro que há tensões internas dentro deste bloco de poder. Mas eu acredito que este governo vai tentar aplicar os maiores retrocessos neste país, nas últimas épocas.
Vou citar alguns exemplos.
A PEC 241 já foi aprovada em primeira votação. A PEC 241 é uma Proposta de Emenda Constitucional que prevê o congelamento dos investimentos públicos por 20 anos! Apenas com o reajuste da inflação. É colocar a política de austeridade na Constituição do país! Isso significa inclusive que nos próximos 20 anos qualquer governo de esquerda que seja eleito vai estar engessado e amarrado. Porque a esquerda – e nem digo a esquerda, o campo democrático desse país – nunca teve ⅔ do Parlamento. Eles têm ⅔ para aprovar uma emenda constitucional. Quando é que nós vamos ter ⅔ para reverter o que eles estão aprovando agora? É um retrocesso que pode pegar as próximas gerações de trabalhadores deste país. Vai significar uma redução do investimento social do Estado brasileiro em saúde, em educação, em moradia, em políticas públicas de uma forma geral, em outros programas sociais… vai ser desastroso.
Junto a isso, a proposta da reforma da Previdência regressiva, com o aumento da idade mínima da aposentadoria, com a equiparação de homens e mulheres, com o fim do regime especial de aposentadoria rural, com a desvinculação do aumento do salário mínimo das aposentadorias.
Se for para 65 anos, há estados em que a expectativa média de vida é pouco maior que essa idade…
Claro, as pessoas vão se aposentar no caixão. E ainda há a reforma trabalhista [laboral], que embora a tenham deixado mais no canto, significa acabar com a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que é a lei que regula o trabalho desde a década de 40, que assegura os direitos trabalhistas essenciais.
Veja uma coisa: nesse meio tempo, da década de 40 até hoje, nós tivemos 21 anos de ditadura militar. Pois nem os militares ousaram mexer na CLT. Este governo, em dois anos, quer desmontar a CLT. É um nível de retrocesso, de destruição da proteção social, de rasgar o que há de progressivo na Constituição de 1988, que é avassalador.
Eu não acredito que vá passar sem reação social e popular. Eu acho que se eles insistirem nessas medidas – e dão todos os sinais de que vão insistir – cedo ou tarde vai haver uma forte reação do movimento social organizado. É um desafio que está posto nesse sentido para a esquerda.
Quanto às manifestações: nós fizemos manifestações expressivas de 2015 para cá. Lamentavelmente isso ficou em 2º plano porque o impeachment foi vitorioso. O lado de lá, com um apoio mediático incrível, conseguiu convocar manifestações em muitos momentos maiores do que as nossas. Mas a mobilização feita pelo movimento social e pela esquerda brasileira contra o golpe, em defesa dos direitos, a partir de 2015 e principalmente no início deste ano, foi a maior mobilização social da esquerda brasileira desde as “Diretas Já” nos anos 80. Foram centenas de milhares de pessoas às ruas pelo país afora. Agora, isso não foi suficiente para barrar o golpe. E ainda não é suficiente para barrar estas medidas.
O desafio que está posto é conseguir trazer à cena os atores sociais que não vieram à rua, nem connosco, nem com eles. Que é a grande massa das periferias urbanas, são os trabalhadores precarizados, também os trabalhadores de carteira assinada [com contrato]. O grosso da massa assistiu a este processo todo pela televisão, acreditando que não era com ele, que era uma briga entre políticos, “eles que se resolvam”.
Essas medidas fazem com que a crise chegue no colo do trabalhador e do povão. Quando as pessoas começarem a perceber o que elas significam do ponto de vista do desmonte de serviços públicos, do ataque aos direitos trabalhistas e previdenciários, eu acredito que se a esquerda estiver bem posicionada e conseguir traduzir isso para a massa da população brasileira, poderemos ter um processo de reação muito significativo.
O Guilherme Boulos é o principal fundador da Frente Povo Sem Medo, que teve um papel de protagonismo muito importante nessas mobilizações. Quer explicar como vê essa frente, qual o seu papel no atual contexto?
A Frente Povo Sem Medo começou a ser articulada logo após as eleições de 2014, quando notámos dois fenómenos fundamentais. O primeiro é uma ofensiva conservadora muito forte, já naquelas eleições que elegeram esse Parlamento que está aí. Um avanço da direita. E o segundo foi quando nós percebemos também que a Dilma Rousseff, eleita com um programa de manutenção dos direitos, começou a aplicar no dia seguinte a austeridade. Então, a Frente nasce para enfrentar ao mesmo tempo a ofensiva da direita conservadora e a política de austeridade aplicada pelo próprio governo petista.
Desenvolveu uma série de lutas nesse período, mobilizações nacionais expressivas em defesa dos direitos, contra o ajuste fiscal, contra o impeachment, contra a direita. Protagonizámos o lema “Contra a direita, por mais direitos”, com várias manifestações nesse sentido.
A Frente reúne quase 40 movimentos sociais, com uma composição diversificada. Tem desde movimentos que estão no campo petista, ou do PC do B, portanto do campo que esteve no governo nos últimos 13 anos – a CUT faz parte da Frente, a UNE faz parte da Frente –, estão também movimentos ligados ao PSOL, que se colocou como oposição de esquerda ao governo petista nestes 13 anos – a Intersindical, movimentos de juventude como o Rua e outros tantos –, está o MTST e um campo de movimentos independentes – Brigadas Populares, MLP, e um espaço de diálogo com esses novos movimentos de juventude, feministas. O papel que a Frente Povo Sem Medo tem tido até o momento é de organização de lutas de resistência. É uma frente de mobilização social.
Mas naturalmente, no cenário em que está a esquerda, a Frente também se coloca um desafio de discutir os rumos da esquerda brasileira, de pensar neles. Pensar um projeto para o país, pensar o que seria um projeto de esquerda hoje. E tem feitos debates nessa direção. O que seria uma saída pela esquerda? O que seria a retomada de um programa de reformas populares estruturais no Brasil? O que seria a radicalização da democracia? Temas que começam a ser debatidos no interior da Frente Povo Sem Medo para pensar uma alternativa. Não só na resistência aos ataques, mas já apontando uma perspectiva de futuro.
Acho que é um espaço promissor. Porque tem conseguido estabelecer ligas, não é o campo petista de um lado e o campo do PSOL do outro, os movimentos pelas suas lutas corporativas… tem conseguido valorizar o que nos une mais do que o que nos separa – o que é uma dificuldade histórica da esquerda em todo o mundo. Sem, é claro, perder a dimensão da diversidade, da diferença. Estar unido por pautas que são comuns não significa ignorar diferenças expressivas que existem nesse campo. Acho que a Frente Povo Sem Medo tem conseguido lidar bem com essa contradição.
Fale um pouco do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Acredito que as pessoas em Portugal não devem saber muito bem as diferenças entre MTST e MST. Durante um período, o grande movimento social no Brasil era o MST. Mais recentemente, o MTST tem uma dinâmica muito superior e um crescimento considerável.
O MTST não é exatamente um movimento que surgiu agora. Nós temos quase 20 anos e a origem do MTST está ligada ao Movimento dos Sem Terra. Foi uma construção junto ao MST, em 1997. Mas o MTST teve um salto de crescimento nos últimos três, quatro anos. E esse salto tem a ver com a dinâmica urbana no Brasil.
Veja: nós tivemos governos petistas num momento de expressivo crescimento económico. Um dos carros-chefe desse crescimento económico foi o setor da construção civil, que se empoderou com o crédito público, muito financiamento, se capitalizou, também pela abertura de capital na Bolsa de Valores, se internacionalizou inclusive. Ora o aumento da disponibilidade de crédito imobiliário para uma classe média que ascendia com o governo e o aumento da disponibilidade de recursos para o setor da construção gerou um surto especulativo nas grandes cidades brasileiras. Uma especulação imobiliária impressionante. Para ter uma ideia, entre 2008 e 2016 em S. Paulo, tivemos quase 220% de aumento do valor médio do metro quadrado. No Rio de Janeiro foram 260%.
No Rio também houve a ajuda dos grandes eventos, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos…
Claro, Copa e Olimpíadas incentivaram esse processo. Porque veio como nunca investimento público em infraestruturas urbanas, só que isso não foi acompanhado de uma regulação pública. Isso empoderou o setor privado, alçou o preço da terra e agravou os conflitos e as contradições urbanas. Principalmente o problema da moradia. Uma parte importante da classe trabalhadora urbana paga aluguer. Esta especulação refletiu-se diretamente no preço do aluguer que dobrou, triplicou em alguns lugares. E os trabalhadores não tiveram o que fazer: foram ocupar. Começaram a ser jogados para regiões mais distantes, houve um novo ciclo de expulsão para novas periferias para continuarem podendo pagar aluguer. E ocorreu uma reação, uma resistência que se expressou no aumento expressivo das ocupações nas grandes cidades.
Neste processo, o MTST cresce muito. Cresce como o movimento capaz de organizar esses trabalhadores sem teto que estão sendo expulsos das suas casas e de construir uma alternativa de política pública de habitação. Acho que o MTST teve o mérito também de não ficar ligado apenas ao tema da moradia, de estender para uma luta mais ampla por reforma urbana, por direito à cidade e de construir um diálogo no campo da esquerda que veio a se traduzir no impulso à Frente Povo Sem Medo.
Fale um pouco de si. Originariamente da classe média, seu pai é médico, você é formado…
Em Filosofia.
Filosofia. Como é que foi parar no MTST?
Veja, eu comecei a militar muito cedo, como secundarista, no grémio estudantil e, naquele momento, o Movimento dos Sem Terra era a grande referência para a minha geração que era progressista, de esquerda. Eu organizava campanhas na escola de visitas aos acampamentos. E foi um pouco depois disso, eu já entrando na universidade, que o MTST vem atuar na região metropolitana de S. Paulo, onde eu nasci e sempre morei. Fazendo ocupações como a Anita Garibaldi em 2001, gigantesca.
Quando diz gigantesca, estamos a falar de quantas pessoas?
De 7 mil famílias, uma cidade. Depois consolidou-se num bairro, houve uma redução, coisa que sempre acontece, mas ficaram nesse novo bairro 2.500 famílias. E lá estão, no bairro Anita Garibaldi, em Guarulhos.
E eu comecei aí, me encantei com aquele potencial, aquela capacidade de mobilização, de organização, com tudo o que tinha ali de autenticidade, de poder de organização coletiva. O encontro da esquerda com a periferia – o MTST já como movimento caracterizadamente de esquerda desde a sua fundação, conseguindo chegar em lugares em que a esquerda brasileira não chegava.
Eu fui viver num acampamento, isso já em 2002, e há 15 anos atuo no movimento. Entrei depois na coordenação do MTST e hoje faço parte da sua coordenação nacional.
Você tem ambições políticas?
Primeiro, é preciso precisar esse termo. A atuação que faço, a atuação do MTST já é extremamente política. Quando o movimento faz a disputa da cidade, quando construímos uma Frente para fazer a disputa de políticas para o país, acho que há uma atuação política muito forte.
Acho que um dos vícios da esquerda brasileira no último período foi reduzir a política à política institucional. Foi não entender que fazer política é também estar nas ruas, é também estar nas bases. Esse esvaziamento nos levou à crise em que estamos hoje.
Por isso, eu acho que a atuação que tenho é uma atuação eminentemente política, no movimento. Não é uma atuação institucional de disputa do Estado. Acho que isso não é algo que ninguém possa descartar a priori, mas neste momento eu entendo que o grande desafio que está posto à esquerda brasileira é reconstruir a sua base social, a sua vinculação com o povo, algo que já há mais de 20 anos a maior parte da esquerda deixou de fazer. A maior parte da esquerda brasileira, incluindo o PT, se reduziu à disputa institucional.
Não existe espaço vazio. Esse espaço que a esquerda fazia nos anos 80, que era o pé no bairro, o trabalho de base, ir aos bairros dialogar com o povo, construir, trabalhar a consciência social, feito pela Teologia da Libertação, pelo movimento territorial, pelo movimento sindical… Quando a esquerda deixa de fazer isso, esse espaço foi sendo tomado pelas igrejas evangélicas neopentecostais que cresceram muito no país. Cresceram porque foram capazes de fazer o que a esquerda deixou de fazer.
Por isso eu entendo que a retomada desse trabalho de base, impulsionar um novo ciclo de mobilização social hoje é a grande prioridade da esquerda brasileira e eu me coloco esse desafio, mais do que qualquer outro.
–
Em entrevista ao Esquerda.net, Guilherme Boulos adverte que o governo Temer é o mais perigoso para os trabalhadores desde o início da Nova República – Foto Mídia Ninja
A esquerda se.rendeu ao vício Da direita o.abuso da.corrupção sem limites