O espaço público da política é um bem comum estratégico para a democracia substantiva, de alta intensidade. O que qualifica qualquer democracia é a disputa cidadã no espaço público. Ele se torna um bem comum político exatamente porque é nele e através dele que as contradições das estruturas e dos processos sociais vividos em cada momento histórico concreto podem se expressar com liberdade e igualdade na diversidade do que somos como cidadania. Ao mesmo tempo, os diferentes sujeitos coletivos da cidadania, ao emergirem com suas identidades, propostas, organização e capacidade de incidências nas lutas democráticas, qualificam o espaço e a própria política. Neste sentido, o espaço da política é essencial para que a cidadania do país se revele e se articule em blocos de forças políticas para a disputa democrática em torno de visões e projetos de sociedade, de poder e de economia, de direitos iguais e responsabilidades compartidas, de recursos orçamentários e propostas de políticas públicas. Ameaças ao espaço público, sua deslegitimação, são fatais para a vida democrática.
Sem dúvida, o berço da democracia e sua permanente revitalização se concretizam pela ação direta nas ruas e praças, espaço público comum por excelência para a prática da liberdade da cidadania se manifestar e pressionar. Para que isto ocorra, porém, a ação direta não pode aceitar repressão e nem criminalização, desde que todas as vozes possam se expressar sem violência. A comunicação, de um ponto de vista democrático, amplia o espaço público na medida em que permitir a disputa de hegemonia, no sentido gramsciano de disputa de imaginários, direções e projetos de sociedade. Um papel assim a comunicação cumpre quando feita com caráter de interesse público que garante a liberdade de expressão, sem estar submetida a interesses privados com lógica de negócio, situação que caracteriza a grande mídia no Brasil. Felizmente, hoje é possível praticar a liberdade do debate com base nas redes que as novas TICs permitem, mas tal espaço é um tanto anárquico. Existe o espaço público de redes e fóruns temáticos, que dependem da própria densidade do tecido associativo (organizações e movimentos), que a cidadania ativa organiza para ampliar sua incidência política. Tais formas de alargamento do espaço público, verdadeiras trincheiras da cidadania, já dependem de certo grau de institucionalidade e recursos e, portanto, da própria ampliação da democracia. As grandes Conferências e os Conselhos de Participação formam parte da institucionalidade democrática, mas ainda dependendo muito da boa vontade do poder democrático constituído pelo voto.
Onde gostaria de chegar com esta minha análise é no espaço político institucional dos partidos, do processo e da propaganda eleitoral, dos representantes e governantes eleitos – prefeitos e vereadores, governadores e deputados estaduais, presidentes, senadores e deputados federais. O que vimos no processo eleitoral concluído no último fim de semana é revelador da profunda crise e perda de vitalidade e legitimidade do espaço institucional da política na nossa democracia brasileira de baixíssima intensidade, onde se atropelam a Constituição e as Leis e se suprimem conquistas de direitos de forma escandalosa. Estamos diante de uma ameaça que vem de mais longe e que se aprofunda com o processo de impeachment da Presidenta Dilma, verdadeiro golpe na soberania popular. O Congresso Nacional é dominado por uma federação de bancadas privadas que controlam uma enorme multiplicidade de partidos sem nenhum sentido político de representação de classes e frações de classes sociais, pois verdadeiras organizações a serviço de interesses corporativos e que se “vendem” a quem der o maior preço.
Assim, não é de estranhar que uma verdadeira onda de abstenções, votos nulos e brancos adquiriu um tamanho assustador nas eleições municipais deste ano. Mas é muito grave o que revela e significa para a democracia. É bom que se diga que lutamos pela institucionalidade democrática expressa na Constituição de 1988. A institucionalidade foi fruto de lutas que nasceram nas ruas e territórios de cidadania em resistência à ditadura militar. Tal onda democratizadora, porém, se esgotou e a institucionalidade está sendo corroída por representantes eleitos através de um sistema político e partidário sem substância doutrinária e corrompido. É fácil dar as costas à cidadania uma vez conquistada a representação e passar a agir mais em defesa dos próprios interesses. Isto está na raiz do cerceamento e descaracterização do espaço público institucional.
O problema é que o espaço político institucional precisa estar conectado com a cidadania para ter sentido. Se barreiras se criam e rupturas acontecem, reduz-se o espaço público da política como bem comum, se deslegitima a representação institucional eleita. Diante de um quadro assim, torna-se urgente refundar a própria democracia, criar uma poderosa onda a partir da cidadania para uma profunda transformação da institucionalidade do espaço político e para que ele volte a ter sentido democrático de concertação do possível entre a diversidade de forças políticas, baseadas no reconhecimento mútuo como expressões de cidadania com igualdade de direitos civis e políticos.
Termino lembrando que temos sinais de tempestade no horizonte. O que estamos assistindo no dia a dia é um começo de uma ressaca destrutiva da democracia. Precisamos começar no aqui e agora a cavar nossas trincheiras de resistência para não seremos arrastados por uma onda conservadora e autoritária em curso. Mas, sobretudo, precisamos redescobrir nosso poder de cidadania como força instituinte e constituinte do espaço público democrático como bem comum, em suas diferentes esferas e nos seus diferentes níveis. Sim, é possível, mas exige sonho, imaginário mobilizador e ousadia nas propostas e ações. O caminho se faz no andar, mas com princípios e valores que balizam o rumo a seguir. A radicalização democrática desde os territórios em que vivemos como cidadania pode se alimentar do pipocar de resistências que já existem, das juventudes estudantis que ocupam escolas, daquelas que lutam contra racismos e discriminações, pela vida e por direitos nas periferias e favelas, dos indígenas, quilombolas, sem terra e agricultores familiares em defesa dos comuns como terra, sementes e água, do levante feminista pela sua emancipação diante do machismo violento e dos fundamentalismos intolerantes.
Inspirado em Betinho, que hoje (3/11) faria 81 anos, lembro que a conjuntura nos impõe a necessidade de olhar mais para a planície e valorizar mais o que aí se passa, do que para o Planalto, pois de lá nada de bom para a democracia virá por enquanto. Há muita cidadania ativa na planície deste nosso Brasilzão que pode gestar uma nova onda de democratização, para requalificar e repotencializar o bem comum do espaço público da disputa democrática.
Rio de Janeiro, 03/11/2016
*Sociólogo, diretor do Ibase