Operação que poderia ser exemplo no combate à corrupção enfrenta duas ameaças: do atual de bloco de poder e de própria Lava Jato
por Aldo Fornazieri, para o Jornal GGN*
A consciência democrática brasileira deveria expressar seu desejo manifesto de que a Lava Jato chegasse ao bom termo, dentro da lei, punindo quem tem que ser punido, sem nenhum viés partidário e ideológico e sem mover ações persecutórias contra quem quer que seja. Se assim se conduzisse à Lava Jato prestaria um grande serviço ao Brasil, combatendo a impunidade e a corrupção, que sempre foi o grande mal das repúblicas de todos os tempos e é um dos maiores males das democracias hodiernas. A corrupção articula algumas variáveis que lhes são inerentes: desigualdade social, concentração de renda e riqueza, ineficiência pública, desorganização da economia, privilégios dos agentes superiores do setor público, direitos precários dos cidadãos mais pobres e grave déficit de cidadania das pessoas. Essas variáveis são caldo de cultura, modus vivendi, da corrupção.
A Lava Jato, no entanto, sofre, hoje, duas ameaças. Uma vem do atual bloco de poder, capitaneado pelo PMDB e avalizado pelo PSDB. Como revelaram as gravações de Sérgio Machado, um dos objetivos do golpe que derrubou a presidente Dilma consistiu em bloquear a Lava Jato. Estão em curso dois movimentos para paralisar a operação de combate à corrupção. O primeiro se desenvolve no Congresso através da tentativa de aprovação de medidas que visam limitar as investigações e anistiar o caixa 2. O segundo se desenvolve nas sombras e, desta articulação, participam setores do Supremo Tribunal Federal, da Procuradoria Geral da República, do alto escalão do governo Temer e de parlamentares e senadores do blocão governista. A tese desse grupo que se esgueira na escuridão é a de que o afastamento do PT do poder, a prisão e o indiciamento de suas lideranças e a surra que o partido levou nas urnas teriam sido suficientemente exemplares para dar uma satisfação à sociedade e que, agora, o mundo político deveria seguir se curso normal. Esse “curso normal” implica a continuidade da corrupção.
A segunda ameaça à Lava Jato vem da própria Lava Jato, dos abusos que são cometidos pelos seus condutores. Em que pesem muitos méritos, os operadores da Lava Jato cometeram muitos abusos. E, em se tratando de servidores da lei, jamais os primeiros podem compensar os segundos. Os mais graves abusos podem ser sintetizados da seguinte forma: a Lava Jato perdeu seu conteúdo republicano e se transformou num instrumento em favor do impeachment com prisões, vazamentos e delações politicamente orientadas visando atingir aquele objetivo; conduções coercitivas que violam a lei; obtenção de delações forçadas visando atingir Lula e aliviar políticos do PSDB; prisões arbitrárias e desnecessárias, como foi ao caso de Guido Mantega; escuta ilegal da presidente Dilma e sua divulgação para fins políticos; ação persecutória a Lula, criando a presunção de culpa, manipulando a opinião pública e usando a lei para constituir aquilo que os especialistas chamam de lawfare – guerra contra o inimigo político manipulando a lei.
De juízes a justiceiros
A partir da Lava Jato e, particularmente, do juiz Moro, do apoio, fama e popularidade que angariou, criou-se no Judiciário brasileiro um movimento, envolvendo procuradores e juízes, que passou a estimular ações e julgamentos que não levam em consideração fundamentalmente a lei, mas os juízos morais, os juízos de consciência dos juízes. Agem e julgam em nome de um suposto clamor popular, não seguindo os preceitos da lei normal, mas aplicando uma lei excepcional que se define a partir dos fatos, numa fórmula tão conhecida dos nazistas que se chamava “lei do movimento”. Como se sabe, o próprio Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu aval para que leis excepcionais, que não estão escritas, possam ser usadas.
Ora, se as leis excepcionais não estão escritas quem as define? São os próprios juízes a partir de sua consciência, de sua vontade e de seu arbítrio. Quando os juízes deixam de julgar a partir da lei, mas a partir de seu arbítrio, deixam de ser juízes para se tornarem justiceiros, milicianos da Justiça. Se a figura do miliciano sempre esteve associada a atividades militares, agora, com o advento dos juízes justiceiros, ela pode ser associada à atividade judicial. Os milicianos agem numa linha limítrofe entre a legalidade e ilegalidade, resvalando com frequência para a ilegalidade. O mesmo se pode dizer dos milicianos do Judiciário. Quanto mais ilegalidades praticam, mais tendem a confrontar a lei. A vontade de arbítrio e de poder absoluto se exponencializa a tal ponto e, exemplo disso, foi a tentativa do juiz Moro de impor censura ao jornal Folha de S. Paulo por este ter publicado um artigo crítico ao referido juiz, escrito pelo professor César Cerqueira Leite.
Existe vasta literatura jurídica (Ronald Dworking, etc.) que interdita a legitimidade de juízes julgarem pela sua consciência moral e não pelas leis e Constituição. A consciência moral dos indivíduos, e os juízes são indivíduos e não deuses, vem carregada de preconceitos, de ideologias e de religiosidade. Se fosse lícito ao juiz julgar pela sua consciência moral, o que equivale dizer, por uma “lei excepcional” não escrita, não seriam necessárias as faculdades de direito onde se aprende a técnica jurídica escoimada dos juízos morais. Os juízes não podem agir comandados pelos seus preceitos morais, pela sua religiosidade, pela sua ideologia ou pelo clamor popular. Se bem o Direito tenha fundamento moral não é dado ao juiz o direito de julgar pela sua consciência moral particular, pois Moral e Direito são duas esferas de atividade, dois saberes distintos.
Assim, o juiz não pode escolher critérios variáveis de julgamento, mas deve decidir sempre segundo o Direito e sua natureza técnica. Somente assim ele pode ser imparcial – demanda que estava nas origens do constitucionalismo moderno do qual desabrochou o Estado Democrático de Direito. Demanda que implicou revoluções e guerras civis para ser estabelecida no velho continente, particularmente na Inglaterra. Demanda que agora se vê ameaçada no Brasil quando juízes podem usar a excepcionalidade de sua vontade arbitrária no lugar da lei, respaldados por Tribunais Superiores.
Os Tribunais Superiores, destacadamente o STF, se tornaram fator de crise institucional e de vigência da parcialidade da lei. O STF, por exemplo, mantém em vigor um mecanismo inconstitucional, dos mais vergonhosos, que é o foro privilegiado, quando deveria ser o guardião da Constituição, derrogando-o. Veja-se a desigualdade jurídica que o STF permite: os envolvidos na Lava Jato que não têm foro privilegiado são julgados com celeridade na primeira instância. Já os que têm foro privilegiado, envolvidos no mesmo caso, no mesmo escândalo, levarão anos para serem julgados. Isto viola um dos pilares das Constituições democráticas modernas: a igualdade perante a lei. Da mesma forma, o STF permite e estimula que vicejem todo tipo de privilégios nos altos escalões do poder público, incluindo o próprio Judiciário, e nada faz contra a PEC 241, que atenta violentamente contra o sentido manifestado do artigo 5º da Constituição de 1988. O STF, junto com o Congresso, são fautores da insegurança, da anarquia jurídica e da injustiça em nosso país.
*Professor da Escola de Sociologia e Política
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Foto: A Lava Jato passou a estimular ações e julgamentos que não levam em consideração a lei, mas os juízos morais