A difícil democracia de Boaventura de Sousa Santos

Sobre “A difícil democracia: reinventar as esquerdas”, de Boaventura de Sousa Santos (São Paulo, Boitempo Editorial, 2016)

Por Flávia Biroli – Blog da Boitempo

Não são apenas as instituições, as normas e os recursos políticos que estão permanentemente em disputa nas democracias. No debate teórico e nas análises que se acumulam ao longo do tempo, a própria definição da democracia está no centro das lutas.

Mesmo em sua forma mais restrita, estamos tratando de um fenômeno raro na história.  Mas é a democracia restrita, desidratada, que se tornou referência no século XX, como peça ideológica na Guerra Fria, recauchutada nas disputas pelo controle de países do Oriente Médio mais recentemente. Corresponde a procedimentos que garantiriam a livre escolha, por eleitoras e eleitores, de pessoas e partidos que as governarão legitimamente, em geral conectada à ideia de um sistema político eleitoral que expresse diferentes posições e interesses existentes na sociedade, ao livre acesso a informações e a garantias iguais de liberdade para os indivíduos.

Assim concebidos, os regimes democráticos têm sido campos de luta. Em alguns momentos, essas lutas permitiram que avançassem concepções reformistas orientadas por mais inclusão e amparo do Estado aos mais vulneráveis, como no caso do Estado de bem-estar social, em especial na Europa, a partir de meados do século XX. Levadas em conta as devidas diferenças, é o que se deu também em décadas recentes no Brasil, quando os padrões de seletividade se alteram, ainda que levemente, permitindo políticas distributivas e maior inclusão.

Mas essa forma mais restrita de institucionalização e gestão do poder e dos conflitos, que se tornou hegemônica por esforços políticos e teóricos após a Segunda Guerra Mundial, traz em si a recusa do sentido fundamental da democracia, que é o da soberania popular.

Os conflitos entre uma democracia capturada e os potenciais de democratização do exercício do poder são um tema presente em parte ampla da obra de Boaventura Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra que tem sido referência entre movimentos sociais e intelectuais brasileiros que aderiram, nos anos recentes, a seu convite à democratização da democracia pelo caminho da participação popular. Na sua produção no campo do Direito, trata dos processos de construção de normas e procedimentos que emergem como instrumentos de opressão, mas também de luta. Ao debruçar-se sobre os paradigmas que referenciam a produção do conhecimento, o problema que enfrenta é o das injustiças cognitivas. Em seus livros que têm circulado mais entre movimentos sociais, atores políticos e o público acadêmico em geral, a democracia é o problema e o horizonte sobre o qual se debruça, atrelando a análise dos limites dos regimes democráticos aos problemas que emergem nos dois eixos mencionados.

Como todo pensador que se enfrenta de fato com a realidade que o circunda, Boaventura entende que a teoria tem o potencial de esclarecer o presente e suas potências contraditórias. Não se furta a indicar limites, mas olha especialmente para as possibilidades de reinvenção da democracia pelos atores políticos nas lutas cotidianas.

Daí sua obra ter sido marcada pela operação de iluminar novos atores, novos encontros, experimentos nos quais poderia estar contida a potência de democratização das democracias num dado momento. Fala, assim, do direito que vai das ruas das favelas para as cortes, da democracia que se impõe por práticas nas esferas locais e que se realiza nas redes de movimentos sociais, de resistências que, do Sul Global, indicariam caminhos inclusive para a ressemantização do Estado de Direito e da governança democrática.

O Boaventura de A difícil democracia: reinventar as esquerdas é, de certo modo, uma síntese de um percurso. Nele se encontra um olhar para o projeto de Estado de bem-estar social na Europa, com potenciais que vão sendo neutralizados significativamente a partir dos anos 1980, com a financeirização crescente da política e das relações sociais. A conexão do contexto em que os retrocessos se estabelecem na Europa com os processos políticos na América Latina não é linear. Há processos convergentes, de que o livro trata no que há de mais atual em suas páginas, finalizadas em 2016, porque a disputa que se trava hoje é entre os imperativos da austeridade fiscal e os da democracia. Os primeiros estabelecem os padrões de reprodução do capital no contexto atual de crise como lógica prevalecente; no campo das esquerdas e das lutas pela democratização, por outro lado, a dignidade humana e a partilha do poder são as balizas. É com elas que o autor opera para pensar as esquerdas, seus limites, seus futuros possíveis.

Seu olhar é, sobretudo, para a semiperiferia do mundo, a que correspondem em sua análise o sul da Europa, em especial Portugal, Espanha e Grécia, e a América Latina, com especial atenção para os países que passaram por experimentos democráticos e pela chegada ao poder de partidos de esquerda ou de centro-esquerda, como Brasil, Bolívia, Venezuela e Equador. As noções de democracia de alta e de baixa intensidade são orientadoras aqui. Pode ser um problema, em alguns momentos, mas é um mérito em outros que a democracia seja tratada como uma questão de graus e não de um conjunto estrito de peças bem-encaixadas.

Nesse livro, há uma atenção ampliada ao fato de que a dominação não atende a uma lógica exclusiva. É capitalista, colonialista e patriarcal, simultaneamente. É feita, portanto, de sistemas de opressão e de exploração que têm especificidades, mas atuam de forma convergente.

Na primeira dimensão, a do capitalismo, destaca os processos pelos quais política e vida cotidiana transformam-se em mercadorias, revertendo em lucro valores e necessidades da esfera da dignidade das pessoas, como a saúde, o acesso a cultura, a possibilidade de assumirmos coletivamente responsabilidades pelo cuidado uns dos outros e do ambiente em que vivemos, que inclui a natureza e os não-humanos. Nesse sentido, o esgotamento dos recursos naturais, a crise ambiental, a crise do cuidado e a desconstrução dos direitos sociais em nome dos imperativos do capital são complementares. Estamos falando dos embates entre uma lógica de vida regida pelo mercado e uma lógica do bem-viver, entre a lógica capitalista e a lógica de uma democracia alargada e reinventada. A serviço de qual delas está a política? A serviço de qual delas está o Estado? São perguntas que Boaventura de Sousa Santos faz sistematicamente em sua obra e que atravessam esse novo livro, página a página.

Na segunda, a do colonialismo, o racismo emerge como lógica. Trata-se de como se estabelecem as relações entre os Estados colonizadores e os espaços transformados em superfícies para a extração – de recursos naturais e do trabalho. É nesses processos que se realiza a conversão do humano em menos-que-humano. Essa lógica é reproduzida no modo como imigrantes e fluxos migratórios são situados e regulados.

Por fim, o patriarcado se conecta com as lógicas anteriores, permitindo a exploração dos corpos e da força de trabalho das mulheres de forma específica desigual relativamente à dos homens, neles inscrevendo controles e violências que organizam relações de privilégio e abuso.  À dominação masculina, são adicionadas as hierarquias que os sistemas de classe e racial configuram, de modo que o patriarcado incide diferenciadamente sobre as mulheres, embora demarque a condição feminina como uma condição de inferioridade.

O livro apresenta essas reflexões a partir de problemas que se apresentaram nas décadas recentes, sobretudo nos países e regiões do globo já mencionados. O ponto inicial, na primeira parte, é a Revolução dos Cravos, em Portugal, no ano de 1974. De seus desdobramentos, vem a análise da emergência do Estado de bem-estar social na Europa, particularmente em Portugal, e de sua desconstrução posterior.

Em seguida, “As marcas do tempo”, segunda parte do livro, encaminham a reflexão para a experiência cubana e a reorganização das esquerdas no Sul da Europa, no Brasil, na Bolívia, no Equador e na Venezuela nas décadas recentes. Destaco, nesse ponto, a atenção às práticas de reinvenção da democracia que tiveram como protagonistas “classes ou grupos sociais ‘invisíveis’, ou semi-invisíveis, para a teoria-crítica e para o marxismo, como povos indígenas, camponeses, mulheres, afro-descendentes”. O futuro das teorias políticas comprometidas com a democracia está, ressalta o autor, na capacidade de aprender com os novos agentes da transformação, recriando o próprio conceito de democracia para além dos procedimentos eleitorais e dos limites das democracias liberais, como “processo de transformação de relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada”.

Na terceira parte do livro, entrevistas publicadas em 2010 e em 2016 na Espanha e na Itália são, pela primeira vez, publicadas em português. Nelas, discute os dilemas contemporâneos da representação, a defesa da complementaridade entre representação e participação política como forma de reinventar a própria representação e, de forma mais ampla, a democracia como partilha da autoridade. Evoca, principalmente, o embate fundamental entre a lógica democrática e a lógica capitalista. “O capitalismo não é a única fonte de dominação, mas é uma fonte importante” e, parece-me, incontornável para lutas que busquem o aprofundamento da democracia e a realização do ideal de que “os humanos têm todos o mesmo valor e são o valor mais alto”. Assim, nas palavras do autor, “radicalizar a democracia significa intensificar sua tensão com o capitalismo”.

A quarta parte do livro é dedicada à temática da reinvenção das esquerdas. É organizada em 13 cartas, dirigidas às esquerdas contemporâneas, nas quais ganham centralidade alguns temas, que apenas elenco rapidamente: a centralidade da responsabilidade coletiva; a capacidade de “conectar a democracias com as aspirações e as decisões dos cidadãos”; a apresentação de alternativas a uma lógica de mercantilização da vida que atrela os direitos e a dignidade “às cotações das bolsas de valores”; a apresentação de alternativas à lógica da austeridade que “substitui a proteção social dos cidadãos pela proteção social do capital financeiro”.

Esta última é, entendo, a forma ideológica primordial da financeirização hoje, na Europa e na América Latina. É o eixo das lutas atuais no Brasil, contra a PEC 241/PEC 55. Nas lutas e ocupações estudantis por todo o país hoje se organizam novas reações, novos modos de contestar e retomar a democracia diante do fechamento do regime em curso no Brasil.

O que será feito desse tempo, nas nossas interpretações? E quais futuros se desdobrarão de seus potenciais? O livro termina com um epílogo “para leitura em 2050”, interpelando o pensamento crítico. Mantém, do início ao fim, a postura do intelectual “de retaguarda” pela qual advoga. Nos movimentos sociais e nos novos atores que tensionam os limites da difícil democracia é que estão enraizadas as lutas e os elementos para nossas leituras e intervenções críticas.

*Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezessete + 12 =