Índios de várias etnias mesclam seus ritos com gêneros, como heavy metal, reggae e congo, em defesa de suas histórias
Por Lucas Simões, em O Tempo
O cronista português Pêro de Magalhães Gândavo (1540-1580) foi um dos muitos servos da colonização europeia a enraizar uma visão demoníaca e preconceituosa sobre indígenas, deixando anotado o seguinte: “A língua desse gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei”. Os idiomas são apenas um recorte da vasta cultura indígena minada até hoje – agora, sob a desonestidade de fazendeiros do agronegócio e dos interesses latifundiários entranhados no Congresso Nacional.
Em um país que assistiu passivamente às línguas indígenas serem reduzidas de 1.500 para apenas 181, das quais 115 são faladas por menos de mil pessoas, segundo dados da Unicamp divulgados em março, a música tem tido, recentemente, um papel na preservação de culturas ameaçadas.
“Desde 2000, a gente começou a ver indígenas fazendo rock, forró, reggae, metal. Isso não acontecia antes. E começou a acontecer não só pelo choque cultural entre índios e brancos, mas pela necessidade de os indígenas serem ouvidos para além das tribos”, diz o músico Rodrigo Kavera, morador de Goiânia e produtor da considerada primeira demo gravada por um índio no Xingu – a maior reserva indígena do Brasil.
Há dois anos, em uma das visitas que fez à Chapada dos Veadeiros (GO), no encontro Aldeia Multiétnica, ele conheceu o índio Lappa Kamayura Amarü, 26, da etnia Yawalapiti, que se apaixonou por reggae devido ao frequente contato com estrangeiros. Neste ano, Kavera produziu cinco músicas de Lappa – em uma temporada de quatro meses que o amigo passou em Goiânia – registradas por uma banda chamada Sonissini Mavutsni (“A Raiz de Deus”, em tradução livre do tupi), tendo Lappa como vocalista e os músicos de apoio Weiler Jahmaika, Léo Bernujha, Milca Fya, Bruno Bicudo e Carmel IYA.
“Ele passou quatro meses em Goiânia. Não tivemos estrutura para incrementar com flautas, instrumentos típicos da aldeia dele, o que seria ideal. Lappa é completo, ele canta bem e fez questão de compor em tupi e aruak, mas queria que o discurso indígena ultrapassasse a aldeia, chegasse em mais gente. Fizemos alguns shows e o pessoal amou. Nosso sonho é gravar um disco bem acabado”, diz Kavera.
RAP
Um sonho realizado por Bruno, Charlie, Kelvin e Clemerson, índios Guarani-Kaiowá, moradores da aldeia de Jaguapirú Bororó, situada em uma área urbana de Dourados (MS), e fundadores do Brô MCs, o primeiro grupo de rap indígena do Brasil.
Os irmãos Clemerson e Bruno foram descobertos pelo diretor Marco Bechis, quando participaram do filme “Terra Vermelha” (2008), e compuseram suas primeiras músicas, “Saudação da Aldeia”, um canto de pajé mesclado a levada rap, que aborda a reconquista do território indígena, e “Terra Vermelha”, que vai pelo mesmo caminho (“terra vermelha do sangue derramado pelos guerreiros do passado massacrados/ fazendeiros mercenários, latifundiários”).
“A principal motivação para fazer o rap, que é um protesto, foi denunciar o agronegócio e os assassinatos de indígenas. Escrevemos em tupi e em português, misturando as línguas – mas com legendas para os brancos entenderem”, diz Clemerson.
É que, longe do ódio, o nome Brô MCs é um sinal de paz ao branco. “A gente faz cara de mau nas fotos, mas somos da paz. Irmão, na nossa língua seria Xerykey ou Xeryvy. Mas brother ficou no nome porque o rap é estrangeiro e passa uma mensagem de que não queremos conflitos com o branco, queremos paz”, completa Clemerson.
Desde 2008 realizando shows, os rappers, que participaram de oficinas de hip hop na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e de aulas de dança da Central Única de Favelas (CUFA), se apresentaram em Brasília, na posse da então presidente Dilma Rousseff; fizeram show nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, e foram convidados para o festival Todos com Sawhoyamaxa”, em Assunção, no Paraguai – em apoio a índios paraguaios expulsos de casa por criadores de gado. Em 2102, gravaram o primeiro disco, homônimo, com oito músicas que retratam a realidade da aldeia.
“A gente fala do preconceito com o índio na cidade. De problemas que o branco trouxe, drogas, mortes, prostituição e de valores dos nossos antepassados. Mas de uma forma que o branco entende, pelo rap”, diz Clemerson.
Uma maneira didática também usada pela banda Kaymuan (Mata Velha, em tradução livre do tupiniquim), formada por indígenas tupiniquins de Aracruz, no Espírito Santo, moradores da aldeia Caeiras Velha. Lá, os músicos Ramones Souza (baixo), Patrick Coutinho (guitarra), Dirlan Leal (vocais) e Adriano Pajheú (tambor) misturaram o congo capixaba, ritmo popular no Estado e fruto da confluência entre ritmos africanos e o cristianismo europeu.
Mesmo sem gravar um disco por falta de recursos, a banda formada em 2003 acredita na disseminação oral de sua música. “Nós temos um compromisso não só em falar do nosso povo tupiniquim, mas do povo brasileiro, chamado de maneira geral, lá fora, de tupiniquim. O congo é muito importante porque é um ritmo originário da África e por aqui ele está presente em tudo: conversas na rua, shows, festas. Nas nossas apresentações, o povo se empolga com guitarra, solos e os batuques dançantes. Já é bacana ter gente gostando de índios tocando guitarra, ouvindo sobre os tupiniquins. Mesmo que ainda haja preconceito na contratação de shows, é um avanço, e estamos promovendo a educação”, reflete o vocalista Dirlan.
Ouça na web
A Rádio Yandê (www.radioyande.com) tem programação focada em música indígena de vários gêneros, além de programas de bate-papo com lideranças indígenas
Idiomas
181 línguas indígenas ainda são faladas no Brasil, das 1.500 já existentes
Heavy metal veste cocar, pinta o corpo e tem até viola caipira
Em uma cena promissora do metal indígena, a banda Arandu Arakuaa, formada em Taguatinga, na periferia de Brasília, é uma das principais representantes do gênero, que hoje agrega grupos como Tamuya Thrash Tribe (RJ), Voodoopriest (SP) e MorrigaM, de Macapá – todos pertencentes a um movimento chamado “Levante do Metal Nativo”, que une bandas inclinadas a temas do folclore e da cultura indígena.
Zândhio Aquino, fundador da Arandu Arakuaa, que já fez parte do movimento e hoje “não está vinculada a rótulos”, cresceu em Rio Sono, na zona rural de Tocantins, e lembra que seus antepassados indígenas tinham vergonha de falar a própria língua. “O estereótipo era muito pior no interior. Os índios não gostavam de falar sua língua para não serem zoados na cidade. O próprio rock torceu o nariz para mim várias vezes”, diz.
A Arandu Arakuaa, nascida em 2011, veio preencher essa lacuna em um cenário underground da capital federal, compondo letras em tupi antigo, xerente e xavante. “É uma forma de mostrar que nem todo índio fala tupi-guarani. Esse é um estereótipo enorme ainda. Nos nossos shows, muita gente começou a identificar os idiomas, diferenciá-los”, diz Zândhio. Na caracterização da banda, pinturas indígenas se misturam a coturnos pretos. Mas é o som que carrega um choque cultural mais impactante.
Zândhio usa uma guitarra de dois braços – sendo um de guitarra e o outro de viola caipira. “Eu adoro a cena do metal e acho poderoso o som das guitarras. Mas toco viola caipira há muito tempo, e ela é uma raiz bem forte, por isso pedi a um luthier para desenvolver o instrumento, que não achei para comprar. Nosso som procura misturar o místico do índio com a força do metal. Por isso, a vocalista, Nájila Cristina, se alterna entre um canto mais sereno e os vocais guturais”, explica o músico.
O discurso das músicas, que passa pelo fenômeno do índio urbano, a relação com a natureza e as críticas sobre demarcação de terras, foi citado pelo doutor em educação pela Unicamp Rodrigo Barchi em sua tese “Poder e Resistência nos Diálogos das Ecologias Licantrópicas, Infernais e Ruidosas com as Educações Menores e Inversas (e Vice-Versa)”.
“Para a gente foi legal demais porque esse trabalho entendeu que a Arandu pode e deve estar nas escolas, em aulas para crianças e adultos, ensinando mais sobre a vida. Esse papel didático é maravilhoso”, diz Zândhio.
Encontro
Tamuya, banda formada no Rio de Janeiro pelos não índios Luciano Vassan (guitarra e voz),
Leonardo Emmanoel (guitarra), J.P. Mugrabi (baixo) e Bruno Rabello (bateria), aborda as questões indígenas através do thrash metal, com aprovação dos Pataxó. Na foto, os músicos se encontram com os indígenas durante um festival no Rio de Janeiro, na celebração do Dia do Índio em 2015.
5 BANDAS INDÍGENAS PARA CONHECER
Arandu Arakuaa. Formada em 2011, em Taguatinga, periferia de Brasília, a banda faz heavy metal com letras em tupi antigo, xerente e xavante . Zândhio Aquino, vocalista e fundador do grupo, usa uma guitarra dupla, sendo o braço superior uma viola caipira. A vocalista Nájila Cristina é especialista em vocais guturais. A banda tem um EP, “Arandu Arakuaa” (2012), e dois álbuns, “Kó Yby Oré” (2013) e “Wdê Nanãkrda” (2015), e se apresentou em eventos como Porão do Rock (DF), Agosto de Rock (TO) e Thorhammer Fest (SP).
Brôs MCs. Mesclando rimas em português com o idioma guarani, o auto-intitulado primeiro grupo de rap indígena do Brasil foi formado em 2008 na aldeia de Jaguapirú Bororó, em Dourados (MS). O principal caráter dos MCs da etnia Guarani Kaiowá é amplificar o discurso indígena através da internet, principalmente a não-índios, sobre lutas por terra e preservação da natureza, denunciando como o agronegócio persegue e expulsa indígenas de suas casas.
Sonissini Mavutsni. A partir de uma parceria com o músico e produtor de Goiânia Rodrigo Kaverna, o índio Kamukaiká Lappa, da etnia Yawalapiti, registrou diversas canções inspiradas em sua vivência multiétinica no Mato Grosso, na região do Xingu, onde o turismo do homem branco acontece em abundância. Nesa confluência cultural, Lappa criou um som reggae acrescido de percussões indígenas.
Kaymuan. Composto por indígenas tupiniquins de Aracruz, no Espírito Santo, a banda mistura o estilo congo capixaba com reggae, rock, baião e até pitadas de forró. Criada em 2003, é resultado da união dos integrantes de dois grupos da aldeia de Caeiras Velha: Forró Porang e a Banda Repik. Hoje, a banda divulga principalmente o congo, ritmo originário da África, com acréscimo de forró e guitarras ao estilo baiano.
Tamuya: A banda foi fundada em 2010, no Rio de Janeiro, calcada na fusão do trash metal com ritmos indígenas. As letras são compostas em inglês, numa visão de abrangência universal de público, abordando a escravidão, genocídio dos índios e lendas de tribos. Neste ano, a banda lançou o segundo disco, “The Last of The Guaranis”, com participações de Marcelo D2 e João Cavalcanti (Casuarina). O grupo também é um dos fundadores do movimento “Levante do Metal Navito”, composto por bandas de metal ligadas às questões folclóricas do Brasil.
Beleza, garotos! Índio ou indígena – como qualquer ser humano – pode tudo. Vou criar verbetes dessa molecada na Enciclopédia Ameríndia – 11.000 verbetes, do Canadá à Argentina. Espero publica-la no próximo semestre.
Só quero recordar a grande contribuição da Marluí Miranda – mais respeitada no exterior do que no Brasil – pelo seu notável trabalho de compilação, arranjos e interpretação de vários cantigas amerindias. Tive a oportunidade de encontra-la, pessoalmente, no TCA. Muito simples e simpática.