Que neste 2017 o movimento popular saiba alimentar as chamas da revolta e fazê-las tomar as ruas do Brasil, de norte a sul.
Por Luis Felipe Miguel, no blog da Boitempo
A noite que desce sobre o Brasil se anuncia longa. Não se vê na conjuntura atual qualquer caminho para brincar do jogo do contente. O golpe de maio e agosto mostrou que o movimento popular e o campo progressista são ainda mais frágeis do que temíamos. Enquanto a coalizão regressista no poder impõe com rapidez seu programa antipopular e antinacional, a resistência engatinha. No momento, ainda não é possível sequer vislumbrar qual saída conseguiremos construir. É possível que o golpe nunca acabe, que simplesmente deslize para uma “normalização” cujos limites só conheceremos quando forem testados, ou que acabemos chegando a uma transição ainda mais ambígua e limitada do que aquela que nos tirou da ditadura militar.
Com tudo o que vem acontecendo no Brasil, não conseguimos sequer nos desvencilhar por completo de velhas ilusões. Nos lados da esquerda, ainda se alimenta muita esperança no processo eleitoral, como se uma eventual maioria conquistada em 2018 tivesse o condão de dissipar o golpe. E ainda há muita crença no poder da lei – crença que há, de fato, um limite ao retrocesso, imposto pelo arcabouço institucional que se consolidou no país a partir da carta constitucional de 1988. No entanto, se há algo que o golpe demonstrou com clareza é que os limites legais à reação foram destroçados pela voracidade com que o programa antipopular se faz implantar.
A retirada da presidente escolhida pelo voto popular, sem respaldo na legislação, é grave em si mesma. Mostra que as classes dominantes brasileiras decidiram que não vale mais a pena respeitar os rituais da democracia eleitoral – que assumem a prerrogativa de tutelar a escolha das urnas. Não se trata, como o governo do usurpador demonstra todos os dias, apenas de definir quem ocupar uma cadeira no Palácio do Planalto. Retirar do voto popular seu poder é retirar a chance de que os governantes respondam, um pouco que seja, aos interesses das maiorias.
Em menos de nove meses de desgoverno, Michel Temer já acumula uma longa folha de serviços prestados ao retrocesso no Brasil. A emenda constitucional que congela o investimento social é o item mais impactante. Sem ter obtido a legitimidade para governar por um mandato, tomou decisões que valem por cinco e que, prejudicando gravemente a educação, a saúde, a cultura e a ciência, preservam o orçamento público para a remuneração do rentismo. A emenda põe o investimento social no freezer e, no mesmo movimento, reafirma que a dívida pública é intocável. Em suma, aponta para um país em que todos pagam impostos, mas o retorno em serviços públicos é minguado, para garantir que quem ganha com a especulação financeira não tenha o risco de perder. É a tributação a serviço da concentração da riqueza.
Em paralelo, há o anunciado desmonte do SUS e o estrangulamento da educação pública – com o subfinanciamento das universidades e a reforma do ensino médio. É um modelo em que o trabalhador deve comprar, de provedores privados, saúde e educação de qualidade precária, assim devolvendo ao capital uma parcela maior de seus ganhos. A projetada criação de “planos de saúde populares”, com baixíssima proteção a seus clientes, faz parte do cenário.
Outra prioridade do governo, a reforma da previdência social retira direitos de praticamente todos, em variados graus. Determina o fim da aposentadoria do trabalhador rural, que foi um dos principais ganhos sociais da ordem instituída com a Constituição de 1988. Amplia o tempo de contribuição e faz a esperança da aposentadoria encostar na expectativa de vida. Reduz os benefícios. Retira a compensação a que as mulheres fazem jus pela dupla jornada de trabalho – exatamente no momento em que a retração do gasto público faz com que aumente a parcela de responsabilidades assumida pela família, isto é, pelas mulheres.
Está no forno a reforma das relações de trabalho que, na prática, decreta o fim de toda a legislação trabalhista. O monopólio estatal sobre o petróleo foi quebrado. Avançam os projetos de criminalização da docência. A repressão policial está em alta. Projeta-se a revisão da concessão de terras aos povos indígenas. Nem vale a pena fazer uma lista completa: o governo Temer nos leva a uma espiral de depressão. E mesmo da bandeira que levou tantos a desejarem a queda de Dilma Rousseff, a luta contra a corrupção, não sobra nada. Em maio de 2016 já era difícil que alguém não visse a sujeira que cercava Michel Temer, seu círculo íntimo (Geddel, Yunes, Moreira Franco, Jucá, Padilha) e seus aliados do PSDB. Hoje, nem a velhinha de Taubaté pode dizer que não sabe.
A reação nas ruas é fraca. Os longos anos de desmobilização deliberada dos governos petistas estão cobrando caro a fatura. Isso não quer dizer que não exista uma insatisfação crescente com o governo que nasceu do golpe. Mesmo a enorme cortina de desinformação que cercou a emenda de congelamento do gasto público não foi capaz de evitar que se construísse uma sólida maioria contra ela. O gigantesco descontentamento com a reforma da previdência é evidente para qualquer um que converse na feira, no ônibus, na fila do banco. De maneira geral, tudo o que o governo Temer está fazendo já foi recusado pelo povo brasileiro quando ele pôde opinar: entrega do petróleo, desproteção ao trabalho, renúncia do Estado ao combate à desigualdade.
Essa insatisfação popular crescente é como um incêndio adormecido. Que neste 2017 o movimento popular saiba alimentar as chamas da revolta e fazê-las tomar as ruas do Brasil, de norte a sul.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.
Destaque: Roberto Weigand.