Uma exposição sobre os lugares onde Portugal foi buscar negros para a exploração do Brasil
Por Alexandra Lucas Coelho, no Público/Buala
1. Ao sábado, os corpos vêm à tona. Aqueles muitos milhares que de segunda a sexta enchem os escritórios do Largo da Carioca dissipam-se até aos últimos círculos do subúrbio, a calçada brilha na chuva de Dezembro e ao longo das paredes aparecem formas embrulhadas em panos, cobertores, papelão, aproveitando a zona seca por baixo dos beirais. Contornam por exemplo o edifício-mamute da Caixa Econômica, até à entrada da Caixa Cultural, onde este Verão se pode ver uma exposição sobre os lugares onde Portugal foi buscar negros para a exploração do Brasil: Sankofa: Memória da Escravidão na África. A entrada é gratuita mas num sábado como este, quase frio além de chuvoso, conto mais corpos deitados lá fora do que em pé cá dentro.
2. A exposição resulta da viagem por nove países africanos de um fotógrafo, Cesar Fraga, acompanhado de um historiador, Maurício Barros de Castro. O texto inicial resume que “mais de quatro milhões” foram trazidos para o Brasil como escravos; que nenhum outro país recebeu tantos; e como, por isso, esses ancestrais são decisivos no Brasil. A proposta da viagem era ir aos lugares de onde foram tirados esses africanos. Muitos já tinham sido escravizados por senhores locais, que com o interesse dos europeus incrementaram a prática; muitos outros foram aprisionados pela primeira vez; mas a exposição não entra por estes antecedentes. Concentra-se no que o fotógrafo foi encontrando da memória afro-brasileira: castelos, fortalezas, pelourinhos, rituais, danças, festas. Aquilo que foi levado para o Brasil, mas também o que do Brasil voltou para África, com os escravos libertos no século XIX, os retornados, chamados de agudás no Benim, amarôs no Togo e na Nigéria, ou tabons no Gana. Acontece terem nomes como Almeida, Silva. Fazem churrasquinho, feijoada, carnaval.
3. A rota dos nove começa em Cabo Verde, mais exactamente no pelourinho da Cidade Velha, na Ilha de Santiago, e segue para a Guiné-Bissau, onde os viajantes foram achar garotos à beira da água em movimentos que lhes lembraram capoeira. Maurício, o historiador, é capoeirista, então lançou-se a jogar com eles, e o laço ficou comprovado. Aqueles tetranetos de quem ficou na Guiné, ou de quem voltou, podiam estar numa roda brasileira. Depois, alguém lhes falou numas velhas correntes de escravos que até hoje são deixadas nas árvores, lá estavam. E salto para o Senegal, onde na Ilha de Gorée Cesar fotografou a herança de outro colonizador esclavagista do Brasil, a Holanda. Ali se conserva a Casa dos Escravos, com as suas celas úmidas.
4. No Gana, Acra Velha foi fundada pelos tabons, os escravos retornados. E o impressionante Castelo de São Jorge da Mina, em Elmina, foi o entreposto onde os portugueses concentravam os escravos antes de os fazerem atravessar o Atlântico. Aí, há uma cela marcada por uma caveira onde os escravos rebeldes eram largados, sem água nem comida, com escassa luz. Cesar entrou, montou o tripé e não conseguiu fotografar. Não pela falta de luz, mas porque não parava de chorar. É um daqueles brasileiros morenos que deve ter um bocado de sangue de tudo, certamente africano. E muitas das negociações para fotografar, durante a viagem, passaram por dizer: talvez eu também seja daqui. Mas dentro da cela dos rebeldes de São Jorge da Mina essa possibilidade simplesmente o paralisou de comoção.
5. Fortalezas, castelos, ruínas com palmeiras em volta, barcos esguios, telhados de chapa, chão de terra, pernas e braços reluzentes dentro de camisetas de futebol ou de operadoras de telemóvel misturadas com os panos coloridos da África, chinelo no pé, canto do olho branco, um clarão: o presente.
6. No Togo, acharam vodum e mercado de feitiços em Lomé. Daí partiram para Togoville, fundada pelos que queriam fugir do poder de Daomé, um reino que existiu entre o século XVII e o século XX onde hoje está o Benim. Conta-se que a gente de Daomé tinha medo da água, então quem queria fugir deles, da escravatura, ou de sacrifícios humanos, concentrou-se no lago onde está Togoville. Aí, os dois brasileiros viram-se numa festa que se revelou um funeral, e em Agbodrafo, na costa, estiveram no casarão de um antigo traficante de escravos onde havia um alçapão. Escravos por baixo dos pés, à hora de comer. A história abre-se como um portal para o presente, a quem busca por ela.
7. No Benim, o guardião do Templo das Pitons recebeu-os bem, colocando duas cobras em volta do pescoço de cada um. Mas em Abomé, antiga capital do Reino de Daomé, não os deixaram fotografar os palácios, por mais que negociassem. Ficaram, pois, à porta, e foi assim que um não se transformou num sim, como muitas vezes acontece: de repente tinha à sua frente um bando de mulheres cheias de colares coloridos, belos toucados, panos atados às ancas, colares de conchas nos pés. Era a procissão das Sacerdotisas de Dan, que só acontece de 24 em 24 anos. Se tivessem fotografado os palácios nunca as teriam chegado a ver, ali, vivas. E daí seguiram para um enclave iorubá, etnia de uma grande parte dos escravos trazidos para o Brasil.
8. O território dominante dos iorubás é a Nigéria e foi aí que os dois brasileiros foram achar reflexos do candomblé, dos orixás que por todo o Brasil estão presentes. Em Ilê-Ifé, cidade sagrada para os iorubás; em Koso, onde fica a Casa de Xangô, um rei que é um importante orixá do candomblé; e em Lagos, a capital nigeriana, onde mergulharam no universo dos agudás, os descendentes de africanos retornados do Brasil. Foi aí que os convidaram para churrasquinho de rua e para o carnaval. Era um churrasquinho em que o boi era levado, morto e esquartejado na hora, e o carnaval tinha fantasias como no Brasil mas com música electrónica, e não samba.
9. Os dois últimos países da rota são Moçambique e Angola. Na Ilha de Moçambique, Cesar e Maurício descobriram o Jardim da Memória e o mundo muçulmano; em Luanda, o Museu da Escravatura; e para o interior construções de quando os escravos eram levados à capital pelo rio Kwanza.
10. Lá fora, no Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, a chuva vira garoa fina que há-de virar um toró: água desabando. Os corpos deitados em volta da Caixa Econômica/Cultural embrulham-se mais contra a parede. A caminho do Convento de Santo Antônio, um carrinho ambulante vende comida aos escassos empregados de sábado, faxineiras, porteiros das imediações do largo, todo o mundo comendo de pé, em prato de plástico, talher de plástico. Difícil ver um branco.
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Foto: Cesar Fraga
Esse assunto de escravidão sempre levanta uma polêmica! Mas o artigo está bem legal! Parabéns!
Ótimo artigo, obrigado pelas dicas 🙂