Patricia Fachin e Vitor Necchi – IHU On-Line
Após colecionar dados positivos no combate à destruição da Amazônia, a ponto de receber reconhecimento internacional, o Brasil volta a se destacar negativamente. Conforme dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – Ipam, o desmatamento da floresta no ano passado foi o mais alto desde 2008, atingindo praticamente 8 mil quilômetros quadrados, o que representa um aumento de 28,7% em relação a 2015.
O desmatamento aumentou nos estados do Amazonas (54%), Acre (47%) e Pará (41%). Em números absolutos, a floresta diminuiu mais no Pará (3.025 km2), em Mato Grosso (1.508 km2) e em Rondônia (1.394 km2) – esses estados juntos respondem por 75% de todo o desmatamento verificado no ano passado.
O engenheiro agrônomo André Guimarães, que é diretor executivo do Ipam, explica que há razões diferentes para o aumento do desmatamento em estados diferentes. “Algumas razões mais históricas e de perfil de uso do solo, e outras de fronteira e de busca de novas terras, que é o caso do Amazonas e do Acre”, afirmou em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.
O Ipam tem 20 anos de história. Guimarães disse que o objetivo do instituto é “produzir ciência e informação para que a sociedade tome as suas decisões da forma mais consciente, mais informada possível”. Quando ele fala em sociedade, refere-se a “governo, setor privado, indivíduos, academia, todos os setores da sociedade”. Ele faz esta ressalva porque, no seu entendimento, o compromisso pelo combate ao desmatamento e pela preservação da Amazônia deve ser de todos, não apenas do governo. “Nós, como um coletivo no Brasil, nos desinteressamos um pouco pela questão da Amazônia. Ela deixou de ser prioridade até por conta da conjuntura brasileira. A sociedade passou a cobrar menos”, analisa.
André Guimarães é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – Ipam. Engenheiro agrônomo formado pela Universidade de Brasília – UnB, foi vice-presidente de Desenvolvimento da Conservation International (CI) da divisão Américas, onde supervisionou a operação em dez países da América Latina. Foi coordenador de Relações com o Setor Privado no Banco Mundial no programa piloto das Florestas Tropicais e diretor da A2R Fundos Ambientais. Também dirigiu entidades do terceiro setor, como o Instituto BioAtlântica – IBio e Imazon.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por quais razões o desmatamento registrado na Amazônia em 2016 foi o maior dos últimos quatro anos?
André Guimarães – É um conjunto de razões, na realidade. Parte da explicação é a própria crise econômica brasileira que reduziu os recursos de investimentos em fiscalização, em comando e controle [órgãos governamentais estabelecem regras para o desenvolvimento de certas atividades – comando – e depois fiscalizam e vistoriam – controle – o desenvolvimento dessas atividades]. Outra parte é a própria sociedade. Nós, como um coletivo no Brasil, nos desinteressamos um pouco pela questão da Amazônia. Ela deixou de ser prioridade até por conta da conjuntura brasileira. A sociedade passou a cobrar menos. Parte se deve à falta de dinheiro que o governo precisa para fazer fiscalização, parte é um certo desinteresse da sociedade, do qual derivam outros problemas. Parou de se pensar em incentivos para quem não desmata, em subsidiar investimentos para quem está promovendo atividades sustentáveis. É uma série de fatores que tem vários responsáveis: governo, sociedade em geral, setor privado, investidores, consumidores, eleitores. Quer dizer, o conjunto da sociedade falhou, por isso o desmatamento aumentou na Amazônia vertiginosamente.
IHU On-Line – A sociedade tem temas que, sazonalmente, escolhe para se ocupar? A defesa da Amazônia saiu de moda?
André Guimarães – Talvez sim. Há outros assuntos que agora estão muito mais quentes no Brasil. Toda a questão da crise política, da crise econômica, transição de governo, inseguranças jurídicas de todos os lados, investigações, judicialização… Há muitos assuntos que estão tomando a atenção da sociedade, o que acaba deixando um pouco de lado questões cuja percepção é de menos urgência por parte da sociedade, como é a questão do desmatamento, questões ambientais. Infelizmente, as questões ambientais só são tratadas com mais atenção pela sociedade quando estamos diante de uma crise. Nos casos de crise hídrica, falta de água, por exemplo, a sociedade se mobiliza. Há uma redução do interesse momentâneo e circunstancial da sociedade acerca de questões relativas à Amazônia e seu desmatamento.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta esse aumento de 28,7% do desmatamento? O que ele significa e representa para a Amazônia?
André Guimarães – Estamos falando de uma taxa de desmatamento. Estávamos na vizinhança de 5 mil, 6 mil quilômetros quadrados, e isso pulou para 8 mil quilômetros quadrados no ano passado. Se a taxa for baixa, mas se continuar acontecendo desmatamento, a longo prazo, a longuíssimo prazo, nós vamos ter uma degradação substancial da Amazônia. Se esta taxa for mais alta, acelera a velocidade e encurta o tempo para se chegar a uma situação crítica. Nós temos que lidar agora, enquanto sociedade, não apenas com a redução da taxa de desmatamento, nós temos que acabar com o desmatamento. É um desafio que a sociedade precisa entender, comprar para si, assumir a responsabilidade e conduzir as pressões via consumidores, via mercado, via campanhas eleitorais, via pressão pública e popular nas redes sociais para que se acabe com o desmatamento. Na Amazônia, o território desmatado hoje está em torno de 20%, e não queremos ver isso subir para 30%, 40%, 50%, 100%. Para isso, nós temos que zerar essa taxa. A taxa alta é ruim, mas a existência de uma taxa de desmatamento é ruim também.
IHU On-Line – Por que Amazonas, Acre, Pará, Mato Grosso e Rondônia são os estados em que há maior índice de desmatamento?
André Guimarães – Basicamente pela pressão da fronteira. Mato Grosso e Pará são dois estados que, historicamente, têm taxas mais altas de desmatamento, em função do seu porte, inclusive por causa da matriz econômica fortemente voltada para o meio rural. Não estou colocando a culpa nesses estados, mas caracterizando esse desmatamento.
No Amazonas e no Acre, o fenômeno é um pouco diferente. Esses estados ainda não têm uma base agropecuária muito forte, mas são novas fronteiras agrícolas, existe ainda muito manancial, muita floresta, com relativamente pouca fiscalização. Esses estados acabaram sofrendo invasões e grilagem pela disponibilidade de terras.
Há razões diferentes para o aumento do desmatamento em estados diferentes. Algumas razões são mais históricas e de perfil de uso do solo, e outras de fronteira e de busca de novas terras, que é o caso do Amazonas e do Acre.
IHU On-Line – Segundo os dados do Ipam, o maior índice de desmatamento ocorreu nas propriedades privadas (35,4%), depois em assentamentos (28,6%) e por fim em terras públicas não destinadas e áreas sem informação cadastral (24%). Esse é o perfil padrão do desmatamento ou há uma mudança em relação aos anos anteriores?
André Guimarães – Infelizmente, o padrão se repete nos últimos três, quatro anos. Os percentuais não mudaram muito, pequenas alterações, mas o perfil de desmatadores permanece o mesmo. Grande parte acontece nas áreas privadas, o que é natural, pois estão sujeitas a desmatamento, seja ele legal ou ilegal. O que nos preocupa também é o desmatamento em áreas públicas, as invasões em áreas protegidas, em territórios indígenas. Isso é de extrema preocupação, porque esse desmatamento é absolutamente ilegal e deveria inclusive suscitar indignação da sociedade. Desmatar um parque nacional, uma reserva, é um absurdo, e a sociedade deveria se indignar com isso.
IHU On-Line – Que política seria preciso desenvolver para reduzir o índice de desmatamento?
André Guimarães – É uma combinação de duas linhas de trabalho. Uma é comando e controle, ou seja, da punição, da fiscalização, do monitoramento, em última instância, da criminalização e da punição dos culpados pelo desmatamento ilegal. Desmatamento ilegal, crimes ambientais têm que ser combatidos com polícia, pela Justiça.
A outra linha de ação, complementar à de comando e controle, é a de incentivo. Punir quem faz errado, mas incentivar aquele que faz certo. Quem cumpre o Código Florestal, quem mantém sua reserva legal, quem tem suas licenças em dia, quem cumpre com seus compromissos legais e de maneira geral, precisa ser valorizado. A segunda linha é dos incentivos: fiscais, subsídios em linhas de crédito, prioridade no acesso a crédito e assistência técnica. Então a combinação de comando e controle com os incentivos é o que vai gerar lá na frente a redução inicial e a posterior finalização do desmatamento da Amazônia.
IHU On-Line – Há alguma sinalização do governo Temer em relação à Amazônia?
André Guimarães – Há um compromisso do governo. Eu já ouvi várias instâncias do governo federal e dos estaduais também indicando o compromisso com o combate ao desmatamento. Existem planos de combate ao desmatamento. Cada um dos estados amazônicos tem seus planos de combate. O governo federal tem um plano federal de combate ao desmatamento. Há recursos alocados, vontade política, mas este processo está muito ligado à cobrança da sociedade. Quanto maior a cobrança da sociedade, maior a ação dos governos. E hoje estamos diante de um momento em que a sociedade está com sua atenção dispersa, e daí não está cobrando especificamente do governo o combate ao desmatamento. É uma combinação de fatores: a sociedade precisa cobrar, e os governos, se instrumentalizar.
Há compromissos públicos. Eu não quero fazer comparações deste governo com os passados. Há compromisso dos governos em geral em combater o desmatamento. Ninguém ganha nada com desmatamento ilegal, isso deve ser combatido por toda a sociedade, e os governos representam a sociedade e o fazem. A eficácia e o volume do combate ao desmatamento estão diretamente relacionados à pressão e ao interesse que a sociedade demonstra no assunto, e hoje, infelizmente, está muito reduzido.
IHU On-Line – O senhor menciona a necessidade de haver cobrança da sociedade. Sempre houve uma atenção internacional muito grande em relação à Amazônia, gerando cobranças e ações de ativistas. Isso ainda se mantém e é relevante para aumentar a cobrança referida pelo senhor?
André Guimarães – É proporcional ao interesse do Brasil. A Amazônia é, obviamente, algo de interesse mundial, e continua sendo, pois tem uma importância estratégica; na questão da mitigação das mudanças climáticas, por exemplo, é um repositório de carbono importante. O mundo sabe disso, os brasileiros sabem disso, os amazônicos sabem disso, então há sim um interesse global e nacional sobre a Amazônia. Agora, esse interesse flutua de intensidade conforme questões mais perceptíveis pela sociedade como mais importantes. Vou dar um exemplo concreto: a questão das migrações na Europa, do combate ao terrorismo, isso drenou atenções e recursos dos países europeus para atender a demandas específicas, tirando atenção e recursos de conservação ambiental e de outras iniciativas socioambientais. É natural esse tipo de flutuação, e hoje estamos vivendo um momento em que precisamos reacender a chama de interesse da sociedade brasileira e global sobre a importância de conservar a Amazônia.
IHU On-Line – Nos últimos anos, o Brasil tinha reduzido os índices de desmatamento e isso era comemorado como uma conquista no enfrentamento às mudanças climáticas. Que tipo de política estava sendo feita até então e o que deixou de ser feito para que houvesse um aumento de 28,7% do desmatamento no ano passado?
André Guimarães – O Brasil realmente foi premiado e valorizado internacionalmente pela brusca redução do desmatamento. Isso foi fruto de uma série de ações, especialmente de comando e controle, mas não apenas. Foram feitas punições, desenvolvidas metodologias mais eficientes para fiscalização, inclusive usando imagens de satélites. Foram feitos investimentos fortes em capacitação dos funcionários públicos responsáveis pela fiscalização. O resultado desses investimentos públicos, especialmente em comando e controle, foi a redução brusca do desmatamento.
Estacionou-se nesta faixa de 5 mil a 6 mil quilômetros quadrados, e agora deu esse repique para 8 mil. A redução brusca que aconteceu de 2004 até 2010 e 2011 foi feita à base de comando e controle. A redução agora deste resíduo da taxa de desmatamento ou até o zeramento vai pressupor continuidade do esforço de comando e controle, mas também vai pressupor outras ações criativas e inovadoras de acompanhamento e monitoramento, principalmente de incentivo para aqueles que estão fazendo certo. Em outras palavras, fizemos um bom dever de casa reduzindo os desmatamentos, agora temos que ser criativos em construir novas ferramentas para zerar o desmatamento. Este é o desafio que está posto.
IHU On-Line – O senhor fala muito no controle para evitar o desmatamento. E outras ações possíveis? Reflorestamento?
André Guimarães – Na Amazônia, já há regiões que necessitam de investimentos para recuperação florestal. Mais uma vez estamos falando de recursos. Em uma situação de crise econômica brasileira – e essa crise não é só de governo, atinge iniciativa privada, os bancos, as pessoas estão com recursos limitados –, é muito difícil imaginar que alguém vá investir em uma atividade como restauração florestal. Temos que fazer uma ponderação. É necessário recuperar, é necessário conservar, isso custa dinheiro, seja para fiscalizar, seja para investir nas mudas, nas plantas para recuperação. E, no ambiente de crise econômica, fica muito difícil convencer a sociedade a fazer este tipo de investimento. Mas precisamos seguir pautando esses assuntos, lembrar a sociedade que essa é uma questão importantíssima para o futuro e que não podemos deixar de ter interesse por ela.
IHU On-Line – Que tipos de políticas e programas federais ou estaduais o Brasil dispõe hoje para enfrentar o desmatamento na Amazônia?
André Guimarães – O governo tem várias ferramentas que são utilizadas. Uma é fiscalização. Hoje há todo um sistema de monitoramento que é feito pelo Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], por algumas organizações privadas como Imazon [Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia], e o próprio Ipam faz o monitoramento do desmatamento através da análise de imagens de satélite.
Temos hoje tecnologia à disposição da Justiça e do governo para fazer suas ações de comando e controle. O Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], o CTNBio [Comissão Técnica Nacional de Biossegurança], as secretarias estaduais de meio ambiente e os batalhões florestais que foram estruturados e instrumentalizados nos últimos anos também têm seu papel e suas competências e potencialidades para combater o desmatamento. Mas é como eu disse antes: apenas comando e controle não é o suficiente para chegarmos a zero. Para isso, precisamos criar também incentivos, e aí entra outra função dos estados e dos governos, que é posicionar incentivos fiscais para beneficiar aqueles empreendedores e investidores que estão cumprindo o Código Florestal, cumprindo a lei, em detrimento de financiar e apoiar as iniciativas de setores e eventualmente indivíduos e empresas que cometam ilegalidades. Por meio de incentivos fiscais, de subsídios, da constituição de rede de infraestrutura para beneficiar determinada região que tenha um cumprimento maior do Código Florestal e da legislação, o Estado pode privilegiar quem cumpre a lei, em detrimento de quem não cumpre. Há uma série de ferramentas que o poder público pode usar.
IHU On-Line – Como a abertura de venda de terras para estrangeiros pode impactar no desmatamento?
André Guimarães – Depende de como a abertura for feita. Se ela for simplesmente “pode comprar e fazer o que quiser”, vai aumentar o desmatamento. Se for uma abertura responsável, em que juntamente com a possibilidade de compra de terra se reafirmem compromissos com a conservação ambiental, com o cumprimento da legislação, eu honestamente não vejo diferença entre um investidor estrangeiro e um brasileiro, desde que cumpra as regras do jogo, que essas regras sejam claras e que a fiscalização seja efetiva. O que não pode é oba-oba, “vem pra cá, compra terra e faz o que quiser”. Isso não pode nem para brasileiro, muito menos para estrangeiro.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
André Guimarães – Temos uma tendência de culpar governo, cobrar governo, mas temos que fazer o dever de casa dentro da nossa casa. Na hora que formos escolher uma madeira para fazer uma obra em casa, vamos procurar saber de onde vem esta madeira, se a origem é legal. Na hora de comprar uma carne no açougue, vamos perguntar se ela foi produzida de forma sustentável. Se o açougueiro não souber, vamos investigar.
Toda a sociedade tem responsabilidade e um papel a cumprir para se reduzir o desmatamento na Amazônia. Vamos chamar a sociedade à responsabilidade. Não é uma questão apenas do governo, é de todos os cidadãos. Nós temos que ter responsabilidade com o que se compra, com o que se ensina para nossos filhos, temos que ter responsabilidade na hora de escolhermos nossos líderes e votar. Se tivermos isso conscientemente, vamos votar melhor, consumir melhor, portanto vamos construir mais sustentabilidade na Amazônia.