Não há democracia onde houver desaparecidos. Entrevista especial com Suzana Lisboa

Vitor Necchi – IHU On-Line

O silêncio que segue impedindo acesso aos principais arquivos da ditadura instaurada no Brasil a partir do golpe militar de 1964 alimenta uma das maiores dívidas para com a sociedade: o destino das pessoas sequestradas e eliminadas pelas forças repressoras. Para Suzana Lisboa, “o passado foi colocado para baixo dos panos pelos governantes”.

Ela é um dos principais nomes entre os familiares de mortos e desaparecidos que lutam para obter informações sobre as pessoas eliminadas pelo regime militar. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Suzana afirma que a Lei 9.140 deu uma indenização para o grupo, mas não o principal, reivindicado desde a ditadura. “Queremos saber onde estão, como morreram, quem matou e queremos a punição dos responsáveis”, desabafa. “Nada disso nos foi dado.”

Suzana acredita que os arquivos das Forças Armadas não foram todos destruídos, porque volta e meia aparecem pedaços deles aqui ou acolá. Para ela, a subserviência dos governos civis e democráticos aos militares deve-se a medo e covardia. “Se houvesse coragem política, os arquivos teriam sido abertos”, aposta. Ela lamenta que nenhum presidente da República tratou com os familiares sobre qualquer assunto relativo aos mortos e desaparecidos.

Conforme Suzana, durante anos os familiares foram acusados de revanchismo. “Sempre me pergunto: onde foi que erramos na nossa luta, depois da anistia, que ficamos tão sozinhos e isolados?”, indaga. No ano passado, ao participar em Buenos Aires dos eventos alusivos aos 40 anos do golpe militar no país vizinho, se surpreendeu com a mobilização em torno dos desaparecidos, incluindo entidades de defesa dos direitos humanos e partidos políticos. “Voltei da Argentina com a certeza de que não fomos nós que erramos, foi a esquerda que nos abandonou.” Resignada, ela espera que as novas gerações possam entender e acompanhar o que aconteceu no Brasil e continuar essa luta. “Eu comecei a lutar quando tinha 20 anos, já vou fazer quase 70, e a vitória não está nem perto.”

Suzana Lisboa nasceu em 1951. Ela militou no movimento estudantil com Luiz Eurico Lisboa, com quem casou em março de 1969. Ambos foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Com o recrudescimento da repressão, entraram para a clandestinidade. Ele foi torturado e morto em 1972, sendo enterrado como indigente. Os primeiros restos mortais de vítimas da ditadura localizados e identificados são dele. O episódio ocorreu em 1979, no cemitério de Perus, em São Paulo, a partir do empenho de Suzana. Ela participou durante dez anos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a deixou em 2005, acusando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de esvaziar o grupo e não cumprir a promessa de abrir os arquivos do período da ditadura militar.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Nos últimos anos, noticiou-se a divulgação de vários documentos relacionados à ditadura instaurada em 1964, alguns inclusive disponíveis ao público, como os cerca de 1 milhão de páginas do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops. Esses documentos revelados até agora permitiram desvendar em que amplitude os fatos da ditadura?

Suzana Lisboa – Os poucos arquivos abertos foram todos remexidos, invadidos e desmanchados antes de se tornarem públicos. O primeiro arquivo que se tornou público foi do Dops [Delegacia de Ordem Política e Social] de Pernambuco, depois do Paraná e de São Paulo – o primeiro que estava em posse de um órgão federal. É preciso ressaltar que Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente a abrir arquivos que estavam sob a guarda da presidência da República, então os arquivos do Dops de São Paulo, que estavam com a Polícia Federal, foram entregues para o governo de São Paulo. Muitas informações saíram desse arquivo, mas nele já havia caixas sem nada dentro. Na época, o dom Paulo [Evaristo Arns, frade franciscano, cardeal e arcebispo de São Paulo] recebeu notícia de que os arquivos estavam sendo destruídos. Nós passamos uma noite inteira de vigília para tentar impedir, mas não adiantou nada.

Quando finalmente o arquivo da Abin [Agência Brasileira de Inteligência] – que era do extinto SNI [Serviço Nacional de Informações] – foi passado para o Arquivo Nacional no governo Lula [dezembro de 2005], neste período de passagem, os arquivos foram alterados. Constatamos isso porque havia coisas que vimos no arquivo da Abin e que não chegaram ao Arquivo Nacional. Resumindo: nenhuma autoridade deste país tomou providências para resguardar os arquivos desde a ditadura. Nem José Sarney, nem Fernando Henrique Cardoso, nem Luiz Inácio Lula da Silva, nem Dilma Rousseff.

IHU On-Line – Quais são os principais arquivos de documentos da ditadura? São os do Exército, da Marinha e da Aeronáutica? Qual a situação deles? Seguem inacessíveis?

Suzana Lisboa – Sim, esses são os principais e nunca tivemos acesso a eles. Nós estivemos com todos os ministros da Justiça desde a ditadura. Maurício Corrêa [ministro da Justiça de 2-10-1992 a 5-4-1994, no governo Itamar Franco] foi o primeiro a tentar tomar providências. Criou uma comissão, coordenada por ele, e com a participação de consultores jurídicos das três Armas. Exército, Marinha e Aeronáutica arrumaram um relatório, que foi entregue ao ministro, e durante muito tempo não tivemos acesso a ele. Demorou um ano. Especialmente os relatórios da Marinha e da Aeronáutica continham informações muito valiosas para nós, apesar de se restringirem à data de morte dos desaparecidos. Grande parte de desaparecidos do Araguaia eram reconhecidamente mortos, em datas inclusive diferentes das que nós tínhamos de desaparecimento, o que comprovava que eles foram presos vivos e assim permaneceram muito tempo. Nós nunca tivemos acesso ao material físico que deu origem a esses relatórios. Em todas as reuniões que estive desde então, falei sobre esse assunto. Em todas as reuniões da Comissão Nacional da Verdade também; antes disso, em todas as oportunidades em que tive chance. Nós escrevemos e estivemos com os ministros da Justiça, solicitando que eles tomassem providências em relação a isso, mas ficou no vazio.

Onde estão os arquivos que em 1994 existiam dentro do Exército, da Marinha e da Aeronáutica? E não era mais ditadura. Eles foram encaminhados pelos então ministros de cada Arma para o ministro da Justiça. Há um ofício de encaminhamento assinado. E aí? Ninguém fez nada, ficou por isso mesmo. Eu tenho tanta indignação quando falo nisso, é algo impressionante. Fora todas as outras situações.

O arquivo da Polícia Federal de Foz do Iguaçu é inédito. Tentei ter acesso a ele quando eu era integrante da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei 9.140 [de 4-12-1995, reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979], mas a Polícia Federal se insurgiu contra. Isso no final do governo Fernando Henrique e começo do governo Lula.

O Miguel Reale Júnior, quando foi ministro da Justiça [3-4-2002 a 10-7-2002] do Fernando Henrique, foi presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e abriu os arquivos da Polícia Federal, como uma das primeiras atitudes que tomou. Enquanto se encaminhava o que fazer com os arquivos, ele saiu, foi relâmpago no Ministério da Justiça. O ministro que assumiu no lugar dele [Paulo de Tarso Ramos Ribeiro] não tomou nenhuma providência.

No intervalo entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial [entre 6 e 27-10-2002], resolveram abrir os arquivos. Na época, achamos que era alguma coisa estranha que podia estar ocorrendo, mas não houve tempo hábil de examinar os arquivos. Quando nós fomos examinar, logo depois da eleição presidencial, a Polícia Federal já não permitiu. Quando finalmente eu consegui autorização para olhar o arquivo de Foz do Iguaçu, o diretor da Divisão de Inteligência da Polícia Federal, Daniel Lorenz de Azevedo, disse para mim: “Você tinha tanto interesse em ver os arquivos de Foz do Iguaçu que eu fui lá e arrumei tudinho pra você”. Esta foi uma das vezes em que este arquivo foi mexido. Depois, quando ele foi levado de Foz do Iguaçu para Brasília, foi mexido de novo, porque o [ex-combatente da ditadura, jornalista e escritor] Aluízio Palmar, que é de Foz do Iguaçu, chegou a ter acesso a esse arquivo, ou pelo menos a parte dele, e coisas que ele viu desapareceram. Ninguém fez nada.

IHU On-Line – Esses arquivos principais, das Forças Armadas, vocês sabem onde eles estão guardados?

Suzana Lisboa – Não tenho a mínima ideia. Óbvio que eles não foram todos destruídos, porque volta e meia aparecem pedaços deles aqui ou acolá. De dentro do governo federal, todos os presidentes da República são responsáveis, especialmente quem estava na época, em 1994, quando esses arquivos existiam e depois desapareceram. Itamar Franco era presidente [29-12-1992 a 1-1-1995], em seguida entrou Fernando Henrique Cardoso [1-1-1995 a 1-1-2003]. Nenhum dos dois tomou qualquer providência para preservar esses arquivos, nem Lula, que entrou logo a seguir. Na época do Lula [2004], não teve aquela queima de arquivos na Base Aérea de Salvador? Quem é que foi punido nesse episódio? O repórter que denunciou.

IHU On-Line – Durante o governo Fernando Henrique, terminou o prazo que a Lei de Anistia previa para manter sigilo em torno dos arquivos da ditadura, mas, no final do segundo mandato, ele sancionou uma lei que estabeleceu sigilo por tempo indeterminado relativo aos documentos considerados ultrassecretos. A quem interessava manter o segredo? A quem FHC estava atendendo?

Suzana Lisboa – Ele estava atendendo às Forças Armadas, evidentemente. Ele depois resolveu dizer que assinou sem ler. Se procurar, existem declarações do Fernando Henrique dizendo que assinou sem ler o decreto do sigilo eterno. Só que quando Lula assumiu, manteve o sigilo eterno. É um acordo que certamente foi feito por eles com as Forças Armadas. Eu não tenho a mínima dúvida de que houve acordo.

IHU On-Line – Por que essa subserviência dos governos civis e democráticos aos militares? Por que esse pacto de silêncio?

Suzana Lisboa – Só posso dizer uma coisa: medo. Covardia! Se houvesse coragem política, os arquivos teriam sido abertos. Por medo e covardia, não foram abertos. Pinochet [general Augusto Pinochet, ditador chileno de 1973 a 1990] era vivo quando as coisas começaram a ser contadas e ditas no Chile. Aqui, ninguém teve coragem de bancar isso.

IHU On-Line – Havia uma expectativa grande, desde o primeiro governo Lula, de que um presidente considerado de esquerda acabasse com o sigilo em torno dos documentos da ditadura. Como foi a postura dele em relação a isso? O que respondia quando era cobrado?

Suzana Lisboa – Já havia esta expectativa desde o final da ditadura. Com o Fernando Henrique, havia esta expectativa, e ele fez a Lei 9.140. Nem sei se o Lula faria essa lei. Na época, critiquei tanto essa lei, mas nem sei se o Lula teria feito. Fernando Henrique fez, mas não abriu arquivo nenhum. Uma de nossas críticas à lei era esta: o ônus da prova cabia ao familiar [dos desaparecidos], e na época do Lula, isso não mudou. Continua sendo assim. Lula nunca nos recebeu, assim como Fernando Henrique, nem nenhum presidente da República tratou conosco qualquer assunto relativo a qualquer questão dos mortos e desaparecidos. Para nós, Lula nunca disse nada, nunca esteve conosco.

IHU On-Line – E a presidente Dilma? O fato de ela ter sido presa e torturada durante o regime ditatorial não aumentou a expectativa de que o sigilo fosse rompido?

Suzana Lisboa – Para mim, não aumentou. A minha expectativa maior era com o Lula, pois a Dilma estava pessoalmente comprometida com esse assunto. Para ela, era muito mais difícil do que para ele. Quem fez todos os acordos foi ele. Quem mandou o projeto da Comissão Nacional da Verdade para o Congresso foi o Lula, sem fazer qualquer discussão conosco. Na época, nós fomos impedidos de participar de qualquer discussão que tivesse a ver com o texto da comissão. Aliás, na época, a ministra Maria do Rosário, que era secretária de Direitos Humanos [de 1-1-2011 a 1-4-2014], dizia que os familiares é que estavam criando impedimentos para a aprovação do projeto de criação da Comissão Nacional da Verdade no Congresso Nacional. Quais eram os impedimentos? Nós queríamos que modificassem o texto da lei que, para nós, era muito ruim.

Nós jamais fomos ouvidos em relação a esse processo de tramitação da lei. Eu, na minha alma, esperava que a Dilma retirasse aquele projeto e mandasse outro, mas era uma expectativa pessoal que eu tinha porque a conhecia, assim como conhecia o Lula. Lula nos enganou na posição dele em relação a isso, nos enganou na nossa expectativa. Quando eu percebi que Lula não abriria arquivos e não faria nada nesse sentido, saí da comissão [Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos]. Fiquei dez anos na comissão. Fui empossada na época do Fernando Henrique, mesmo sendo de outro partido, porque sempre fui do PT, era fundadora do partido, e fiquei até 2005, quando vi que o Lula não faria nada. A expectativa para mim, em relação a todos eles, era a mesma. Tinha receio porque sabia o que a Dilma pensava, mas não tinha ideia do que ela fosse fazer, em função dos compromissos assumidos, que nem foram por ela, mas pelo Lula.

IHU On-Line – Os governos democráticos têm uma dívida com os familiares de pessoas mortas pela ditadura?

Suzana Lisboa – Não é somente com os familiares, porque esta não é uma questão pessoal que envolva os familiares com o governo. Esta é uma questão da sociedade. Os governos democráticos têm uma dívida com a sociedade brasileira, com a história, porque esse passado não pertence a nós. Esse passado foi colocado para baixo dos panos pelos governantes. Essa dívida não é pessoal, apesar de que essa dívida pessoal existe, sim. O Brasil é o único país em que dizem que é revanchismo procurar saber como uma pessoa foi morta. Aqui, a ditadura diz que era revanchismo e a democracia também. Eu sempre fui chamada de revanchista, a vida inteira. Sou revanchista, graças a Deus. Quero que esse passado seja conhecido, quero que ele seja assumido na sua integralidade, quero que as Forças Armadas reconheçam que elas foram participantes, sim, dos crimes cometidos na época da ditadura, para que não aconteçam mais. Apenas para que não aconteçam mais, para que se faça justiça.

IHU On-Line – Sem dúvida que é uma dívida com a sociedade, mas quando me refiro aos familiares, é porque no âmbito das famílias a tragédia adquire uma conotação muito grande e específica.

Suzana Lisboa – Para os familiares, o que foi feito? A Lei 9.140, que nos deu uma indenização, mas não nos deu o que era principal, o que reivindicamos desde a época da ditadura. Queremos saber onde estão, como morreram, quem matou e queremos a punição dos responsáveis. Nada disso nos foi dado. A dívida com os familiares de mortos e desaparecidos é essa. A Comissão Nacional da Verdade não nos deu respostas. Até hoje, não consegui ler o relatório da comissão. Quando fui ao índice e vi que não constava o Flávio Koutzii, nem li. Como o relatório da Comissão Nacional da Verdade não vai contar a história do que foi a Operação Condor, do que foi o Flávio Koutzii nesta história? O que é isso? Foi muito importante o relatório da comissão em diversos aspectos, é óbvio, não vou negar. Esta história foi trazida à tona como não tinha sido trazida antes, mas o relatório foi precário. Isso também em função do tempo, e essa é uma das coisas que tentávamos argumentar que fosse mudado no projeto e que pudéssemos pelo menos chegar perto do assunto. Isso nos foi negado o tempo inteiro.

Até hoje tenho um atestado de óbito que diz que o Luiz Eurico se suicidou, apesar de a própria Comissão da Verdade ter um laudo dos peritos dizendo que não é verdade. Se olharmos o que está relatado pela Comissão Nacional da Verdade, fico absolutamente insatisfeita, porque se refere a mim, eu que disse, não foi a comissão. A dívida continua.

A tragédia se amplia no âmbito das famílias e permanece porque a sociedade brasileira vive esta violência hoje em função da impunidade dos crimes que foram cometidos. Não é apenas um Amarildo [ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, que desapareceu em 2013 após ser detido por policiais militares na porta de sua casa, na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro] que nós vivemos depois. São centenas de Amarildos, só que essas informações também são colocadas para debaixo dos panos. Quem ensinou a torturar, matar e desaparecer com os corpos? Foi a ditadura.

IHU On-Line – A senhora participou por dez anos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, até sair em 2005, acusando o presidente Lula de esvaziar o grupo e descumprir a promessa de abrir os arquivos da ditadura. Que tratamento a comissão recebeu dos sucessivos governos no período democrático?

Suzana Lisboa – Posso dizer sobre o período que participei da comissão no governo Fernando Henrique e até 2005, no governo Lula. Na época do Fernando Henrique, que constituiu a comissão, algumas coisas avançaram, mas principalmente em razão do esforço dos familiares. Nós tivemos que montar os pedidos, os processos. Nós tivemos que ir atrás de provas nos poucos arquivos que foram abertos. A Abin, quando a comissão pedia informações, simplesmente respondia que não tinha ou se referia a leis que protegiam o acesso aos dados. O que aconteceu foi decorrência da presidência do Miguel Reale Júnior, que foi fundamental para que a comissão pudesse ampliar os seus critérios, porque a lei era restrita. Ela dizia que só seriam abrangidos os casos daqueles que tivessem morrido em dependências policiais ou assemelhadas. No entender do presidente da comissão e da maior parte dos seus membros, essas dependências assemelhadas eram também as situações em que as pessoas foram executadas, podendo ter sido presas. Caso, por exemplo, do [Carlos] Lamarca e do [Carlos] Marighella, só para citar os famosos.

Na época do Lula, o que ele fez foi ampliar a abrangência da lei. Ele contemplou aqueles que tivessem morrido em enfrentamentos – na época anterior, os pedidos dos familiares de mortos em enfrentamento foram indeferidos pela maior parte da comissão –, os que tivessem morrido em função da prisão, os mortos em passeatas e aqueles que talvez tenham morrido em tiroteios, mas que não conseguimos provar, porque não tínhamos acesso aos documentos.

Em grande parte das mortes, conseguimos provar que as versões de suicídio, de atropelamento ou de tiroteio eram mentirosas. Na época em que eu estava na comissão, foram 130, depois não sei se isso se ampliou. Foi isso que o Lula fez. Não tirou o ônus da prova. Não bancou a busca de corpos. A lei dizia que a comissão procederia à busca de corpos, desde que houvesse indícios, e quem tinha que apresentar os indícios éramos nós. Houve, na época do Fernando Henrique, uma busca no Araguaia que existiu somente porque o ministro da Justiça, Nelson Jobim, e o Miguel Reale Júnior bancaram que isso acontecesse. Do resto, do governo, houve tentativas de impedimento.

IHU On-Line – A impressão é que a sociedade brasileira, em geral, tem pouco interesse pelo tema. Isto ajuda a explicar por que o silêncio se mantém até hoje?

Suzana Lisboa – A sociedade brasileira tem pouco interesse porque a questão dos desaparecidos até hoje não faz parte dos currículos escolares. Até hoje, nenhum ministro da Educação, nenhum governo tomou esta providência. O silêncio sobre o assunto não é porque a sociedade brasileira desconhece, deve-se ao próprio acordo que a esquerda fez para que esse assunto ficasse sepultado.

Durante anos, os familiares foram massacrados com essa história de revanchismo e, especialmente depois da anistia, nós sofremos um ataque violento. Sobre o primeiro desaparecido que nós achamos, o Luiz Eurico, que era meu marido, a denúncia foi feita no dia da votação da Lei da Anistia, em 1979. Depois, ocorreu o episódio da vala de Perus, em 1990, que foi aberta graças ao repórter Caco Barcellos e à Rede Globo. De 1979 a 1990, não conseguimos mexer nessa história da vala. Isso que teve o governo [Franco] Montoro em São Paulo, teve o governo [Mário] Covas, mas não adiantou. Paulo Sérgio Pinheiro [sociólogo, secretário Nacional dos Direitos Humanos de FHC e um dos sete indicados por Dilma Rousseff para integrar a Comissão Nacional da Verdade] era assessor desses governos. Não conseguimos nem falar com ele, a fim de pedir para abrir a vala. Na vala de Perus, se identificou um que outro corpo, e o resto? Depois acabou.

IHU On-Line – Além dos arquivos oficiais, deve haver muito material em posse de particulares, como os documentos revelados a partir do assassinato do coronel reformado do Exército Julio Miguel Molinas Dias, em novembro de 2012, em Porto Alegre. Os documentos trouxeram novas informações sobre o desaparecimento de Rubens Paiva e do caso Riocentro.

Suzana Lisboa – Sem dúvida. Existem muitos documentos em mãos de particulares, assim como os do Araguaia foram parar nas mãos do Curió [Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como Major Curió, é um militar que combateu a Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974]. Sempre defendi que o governo e o Ministério Público tomassem providências para recolher esse material que aparecia nas mãos de particulares, porque isso não é uma coisa pessoal, faz parte da história do país.

IHU On-Line – O jornalista e escritor Bernardo Kucinski, cuja irmã foi sequestrada e assassinada pelas forças repressoras, relata que, mesmo depois do fim da ditadura, chegavam recados oriundos provavelmente de pessoas ligadas ao sistema repressivo. A senhora acredita que ainda haja algum grau de organização de pessoas ligadas à ditadura?

Suzana Lisboa – Acredito. No site Ternuma, do grupo Terrorismo Nunca Mais, eles estão articulados. Os velhos assassinos se manifestam através dele, onde estão organizados de alguma forma. Orvil é um livro organizado pelo general gaúcho Leônidas Pires Gonçalves. Trata-se da resposta da ditadura ao Brasil nunca mais [projeto desenvolvido clandestinamente por dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, entre 1979 e 1985, que reuniu documentos sobre ditadura]. Leônidas chefiou o DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna] do Rio de Janeiro e organizou o Orvil a partir de documentos dos arquivos da ditadura que estavam na mão deles. Os arquivos do DOI-Codi deviam estar com ele. Eles estavam organizados naquela época e ainda continuam, de alguma forma. Não tenho medo deles, de que vão fazer alguma coisa, mas eles têm informações, assim como tinha o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi de São Paulo, primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador durante a ditadura]. Os defensores do Ustra estão aí, para dizer que ele não cometeu crime algum.

IHU On-Line – Há como considerar a democracia consolidada no Brasil sem a abertura de todos os arquivos do período ditatorial?

Suzana Lisboa – Não há democracia onde houver desaparecidos. Nós levamos uma faixa com essa frase no primeiro congresso que fomos na Argentina, na Federação dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, no começo dos anos 80. Na época, estávamos à frente dos movimentos da América Latina, porque já fazíamos busca de corpos, já tínhamos dossiês com nossos nomes, e eles não. Depois, a América Latina avançou, e nós ficamos para trás.

IHU On-Line – Por quê?

Suzana Lisboa – Pelos acordos que foram feitos pelas elites, com a anuência e a participação da esquerda brasileira.

IHU On-Line – A esquerda brasileira tem então um grande papel no acobertamento desses arquivos em nome de um pacto de governabilidade?

Suzana Lisboa – Sim, sem dúvida nenhuma. No ano passado, participei dos eventos alusivos aos 40 anos do golpe na Argentina. Sempre me pergunto: onde foi que erramos na nossa luta, depois da anistia, que ficamos tão sozinhos e isolados? Fomos nós, os familiares, que fizemos a mobilização, com a ajuda de um que outro. Voltei da Argentina com a certeza de que não fomos nós que erramos, foi a esquerda que nos abandonou.

A Argentina participou dos 40 anos do golpe, participou da marcha. Uma multidão se reuniu na praça, junto com as madres [Madres de Plaza de Mayo, grupo de mulheres que se organizaram para buscar notícias acerca dos filhos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina], com as avós [Abuelas de Plaza de Mayo, organização que tenta localizar crianças sequestradas ou desaparecidas durante a ditadura e devolvê-las às famílias legítimas], com os filhos. A multidão se retira e entra outra, com os partidos políticos. É impressionante.

Os partidos políticos fazem uma manifestação igual ou maior do que a que é feita pelas entidades de direitos humanos. Quem é que se manifesta a favor de alguma coisa aqui no Brasil? Não se reúnem dez pessoas. A esquerda brasileira nos abandonou, desde o começo, com raras exceções. A própria esquerda era contra nossa mobilização. Nós sempre fomos consideradas as impertinentes que sempre reclamam, que nunca estão satisfeitas com nada, sempre querem mais, sempre se manifestam contra isso, contra aquilo.

IHU On-Line – Frente a isso tudo e no atual governo, quais são as perspectivas?

Suzana Lisboa – Cada vez é pior. Hoje em dia, quando vejo que há grupos defendendo o retorno dos militares, e são pessoas jovens, é uma tristeza. O desprezo que tiveram com a democracia, o golpe, enfim, o futuro é tenebroso.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Suzana Lisboa – Espero que as novas gerações possam entender e acompanhar o que aconteceu neste país e continuar essa luta. Eu comecei a lutar quando tinha 20 anos, já vou fazer quase 70, e a vitória não está nem perto.

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