Dos “fatos alternativos” do governo Trump às “verdades alternativas” de FHC, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

Fernando Henrique Cardoso defendeu, publicamente, Aécio Neves, desqualificando delações que apontam que o senador estaria envolvido em solicitações ilegais de recursos para campanha e fraudes em parceria com construtoras.

De forma acertada, ele afirmou que ”divulgações apressadas e equivocadas” distorcem a realidade e que a ”palavra de um delator não é prova em si”, mas requer comprovação. Bem, se FHC, Aécio e seu partido tivessem explicitado essa opinião antes, talvez o impeachment, alimentado por delações nem sempre comprovadas, poderia ter tido um rumo diferente.

Mas o que me chamou a atenção foi um trecho da nota pública emitida pelo ex-presidente: ”A desmoralização de pessoas a partir de ‘verdades alternativas’ é injusta e não serve ao país. Confunde tudo e todos”.

Ele carimba a parte das informações trazidas pela imprensa que desagrada a ele e a seus correligionários como ”verdades alternativas”. Poderia ter chamado apenas de ”acusações sem provas”, mas preferiu outro caminho.

Resvala, com isso, na polêmica afirmação de Kellyanne Conway, assessora direta do presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Questionada sobre a declaração de seu chefe, de que sua cerimônia de posse tinha a maior da história, apesar das fotos mostrarem que isso não se sustentava, afirmou a Chuck Todd, da rede de TV NBC: “Você está dizendo que é uma mentira. Nosso chefe de imprensa, Sean Spicer, apresentou fatos alternativos a isso”. O jornalista respondeu corretamente que ”fatos alternativos não são fatos. São falsidades”.

O bilionário norte-americano beneficiou-se da imprensa durante o período que lhe foi útil. Hoje, ele a considera sua inimiga. Seria idiotice comparar FHC com Trump, mas gostaria de saber por que seu partido usou reportagens dos mesmos veículos como munição contra o PT enquanto lhe foi útil e agora as critica. Jornais, revistas, rádio, TVs e portais tornaram-se erráticos de repente?

Ele afirma, na nota, que há uma diferença entre receber caixa 2 para financiamento político-eleitoral e receber recursos para enriquecimento pessoal. Brinca com a retórica. Não há na legislação um crime específico para isso, mas é crime uma série de condutas relacionadas com a prática de caixa 2, como corrupção, lavagem de dinheiro, crimes financeiros e tributários, falsificação de documentos, entre outras.

Portanto, outra possibilidade é ele acreditar que o conceito de corrupção é algo fluido. Depende do ponto de vista de quem comete. Quando a denúncia envolve um adversário, é crime e merece ser punido antes do julgamento. Quando vem de aliados, deve-se esperar investigações. E, mesmo se elas forem confirmadas, não é crime, mas um erro a ser corrigido.

Quando a classe política, de qualquer espectro ideológico, ignora evidências e bate na imprensa, dizendo que ela apresenta ”verdades alternativas” ou quando essa classe política resolve ela mesma, ignorar evidências, e propor ”fatos alternativos”, começamos a brincar um jogo perigoso. O jornalismo não é um oráculo que profere apenas a ”Verdade” – até porque verdades absolutas não existem, elas são construções a partir da reunião de versões. Mas se dados e informações são inúteis para a construção da narrativa de nosso tempo, se ignoramos elementos que podem ser imagens de uma cerimônia de posse ou documentos, depoimentos, gravações e delações para formar nossa convicção, se o discurso não precisa de mais nada além dele mesmo para se referendar, temos – entre outros problemas – o desabamento do controle social da política e, por conseguinte, a derrocada das instituições.

Na internet, ”verdade” é tudo aquilo com a qual eu concordo e ”mentira” e tudo aquilo do qual eu discordo. Mas isso, apesar de estar presente desde sempre no ambiente da política, não deveria ser o núcleo em torno do qual a democracia se estabelece. Com a possibilidade de políticos produzirem e circularem conteúdo em redes sociais a fim de reforçarem suas próprias narrativas sem a mediação crítica do jornalismo, de esquerda, de centro ou de direita, e com esse conteúdo modelado a reforçar visões de mundo do público-alvo, assistimos à formação de um público cada vez mais refratário a pensar que o mundo não se resume ao maniqueísmo do bem contra o mal.

O bom jornalismo (que está em fase de transformação por conta das mudanças na forma de financiamento na era digital) já tem sua credibilidade posta à prova diante das fábricas de ”verdades alternativas” que temos por aí. Que possuem compromisso com dinheiro ou com poder, mas nunca com as várias versões de um mesmo fato. Espero que possamos nos dar conta disso, do jornalismo tradicional ao alternativo, e organizar juntos uma resposta antes que seja tarde demais.

Comments (2)

  1. Acompanho seu trabalho lúcido e preciso. Estou, à distância, à sua volta fruindo da luz que projeta nas trevas e iniquidades. De vez em quando posto no facebook alguns comentários, singelos, curtos como pede o formato. Seria muito útil para mim se pudesse encontrar uma brecha nos seus afazeres, de maior importância, e lesse um dos últimos posts que ali lancei: “Falando Sério”.
    Seu trabalho é raro, urgente, coerente e de resistência.
    Parabéns. Você nos honra.

  2. Sakamoto, seu trabalho é meritório, elucidativo, de resistência. Eu sou um humilde leitor que as vezes posta no facebook para um grupo de ex-alunos. Sei que deve ter um tempo exíguo para seus afazeres, mas se puder ler e comentar meu post recente: “Falando Sério”, escrito para o facebook, seria valioso. No Facebook meu nome, verdadeiro, é Rui Cezar dos Santos. Estou ao seu redor usufruindo de seu lumiar. Abraço companheiro.

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