Uma Campanha da sociedade civil global, auto-gerida, promove articulações e quer fortalecer a educação que vai além da escola e da Academia, dialogando com a vida, os movimentos sociais e construindo a outra economia possível. Em cinco meses e sem contar com nenhum recurso financeiro, a proposta da Campanha por um Currículo Global da Economia Social Solidaria já conquistou a adesão de organizações e redes, não apenas na América Latina, como também na Europa e na África. Em breve, vozes de outros continentes poderão se fazer ouvir, à medida que mais redes se unem à Red Educacion y Economia Social Solidaria-REES e a outras inicialmente envolvidas.
Por Madza Ednir*, especial para Combate
“Se queres conhecer os segredos do Universo, pensa em termos de energia, frequência e vibração”(1). Esta afirmação remete ao mistério por trás da rápida disseminação de mais uma iniciativa espontânea da sociedade civil planetária – uma dessas “invenções democráticas”, definidas por Paul Singer e David Calderoni como movimentos que surgem nos mais diferentes setores, mas têm em comum o fato de serem maneiras criativas e solidárias de desenvolver autonomia e cooperação(2). Trata-se de algo que Paulo Freire chamaria de “inédito viável” – o que ainda não é, mas pode ser, se nos unimos para fazer acontecer: a Campanha Internacional por um Currículo Global da Economia Social Solidária, a economia alternativa ao capitalismo dominante, que já se faz presente nas mais diferentes partes do mundo, como anúncio e amostra do que pode ser o futuro.
O sonho de se promover globalmente uma concepção inovadora de Currículo, capaz de instituir ou estreitar o diálogo entre instituições de educação formal e movimentos sociais, sindicatos, associações populares, fortalecendo processos solidários rumo a uma economia justa, tornou-se um catalizador de energias humanas que vibram na mesma frequência. Nascida em comunidades camponesas de Santiago Del Estero, Argentina, a ideia germinou por um bom tempo em Congressos e Fóruns latino americanos por uma Outra Economia. O Projeto Global Curriculum, desenvolvido entre 2010 e 2012 por organizações de 5 países, foi uma das inspirações da iniciativa. Com financiamento da Comunidade Europeia pré Brexit, o Global Curriculum resultou na produção de 5 manuais, nos quais professores da Áustria, Benin, Brasil , Republica Checa e Reino Unido demonstraram ser possível inserir no currículo de instituições de Educação Básica conceitos e valores que ressaltam a humanidade comum de todos os passageiros da Espaçonave Terra e estimulam a aplicação prática do conhecimento, resultando em ações transformadoras da realidade local e global, rumo à universalização de Direitos, da sustentabilidade, da cultura de paz.
A proposta de tornar concreto e visível um Currículo Global da Economia Solidária foi consolidada por um coletivo de participantes da Red Educación y Economia Social Solidaria-REESS, um projeto da Universidade Nacional de Quilmes, Argentina(3). Em outubro de 2016, Claudia Alvarez, co-diretora desse projeto, membro da Asociación Trabajadores del Estado-ATE e do Instituto de Estudios sobre Estado y Participación-Idep Salud, publicou, em página criada gratuitamente na Internet, um Convite/Manifesto em Espanhol . No texto, traduzido por uma voluntária para outras três línguas, os princípios e fundamentos da Campanha por um Currículo Global da Economia Solidária são apresentados e um convite à participação é feito (AQUI ). No topo da página, vê-se a imagem do Quixote unindo dois mundos que passou a simbolizar a Campanha, criada por Claudius Ceccon, Diretor do CECIP , Centro de Criação de Imagem Popular, para a versão brasileira do Global Curriculum Project – o Projeto Currículo Global para a Sustentabilidade.
Algumas pessoas que, como eu, haviam implementado o Projeto Currículo Global para a Sustentabilidade, apreciaram o fato de os proponentes da Campanha usarem o conceito “Currículo Global” em uma acepção mais ampla, incluído as Universidades, além das instituições de Educação Básica, e indo além de planos e programas adotados por sistemas formais de ensino, para incluir processos de educação não formal . A página da Campanha apresenta a seguinte visão do Currículo Global da Economia Social e Solidária enquanto projeto politico envolvendo a construção coletiva de sonhos, saberes, conhecimentos, metodologias e práticas:
(O Currículo Global da ESS ) garante uma aprendizagem baseada em práticas de consumo ético, bem como novas formas de organizar o trabalho através de processos democráticos e compartilhados de tomada de decisão e distribuição equitativa de ganhos. Promove o conhecimento das energias renováveis, coloca a igualdade de gênero no centro da economia e concebe o desenvolvimento das cidades e comunidades em termos de decrescimento econômico. (…) reconhece que todos os tipos de conhecimento são ciência e que a sabedoria indígena é uma ciência endógena, com sua própria epistemologia ou estrutura teórica, o que implica que a forma como o conhecimento é organizado, sua lógica, componentes teóricos, paradigmas, epistemologia e ontologia são diferentes daqueles da ciência tradicional.”
O chamado para unir-se a uma Campanha por um Currículo Global da Economia Social Solidária chegou aos educadores e ativistas sociais em tempos interessantes, como diriam os chineses. O ano 2016 e o inicio de 2017 foram marcados por eventos que muitos passaram a interpretar de forma apocalíptica: Pachamama, a Mãe Natureza, reage de forma cada vez mais contundente às agressões da civilização capitalista, enquanto no plano da ideologia e da cultura, uma onda de irracionalidade, fanatismo e ódio parece varrer o planeta, com negação do aquecimento global por parte de governos ocidentais; terrorismo de Estado; atentados terroristas “não governamentais”; agonia do Estado de Bem Estar Social ; muros e cercas erguendo-se nas fronteiras ; lutas contra a corrupção usadas como pretexto para eliminar direitos sociais e aumentar lucros; escândalos em democracias representativas escancarando de onde provém o poder dos governantes e a que interesses eles servem; ditadura, caudilhismo, “fim da política”, apresentados como a panaceia para as mazelas da democracia que temos.
Muitos daqueles cujas energias estão sintonizadas com a resistência da sociedade civil global a injustiças e violências como as descritas acima deram pronta resposta ao apelo feito na página da Campanha Currículo Global da Economia Social Solidária. São pessoas e organizações que se fazem presentes nas grandes mobilizações locais e planetárias em prol da sustentabilidade e da convivência pacífica, realizando ações concretas que repudiam a violação e promovem a realização de direitos humanos, econômicos, sociais , culturais, políticos e ambientais.
Ao se engajarem na construção de uma Campanha que se declara comprometida com a realização da Agenda 2030 promulgada pelas Nações Unidas em 2015, estes educadores e ativistas sociais demonstram acreditar que a realização dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável-ODS passa pelo Objetivo 4 – “Assegurar educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todxs” – e pelo parágrafo 7 desse Objetivo, que recomenda educar para a cidadania global, para a sustentabilidade e para a paz como meio de se alcançar a educação de qualidade que queremos. Sabem que uma educação de qualidade desenvolve o pensamento crítico, a empatia e a capacidade de agir coletivamente no sentido de superar a fonte de todas as violências – o modelo dominante de desenvolvimento -, e “assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis” (ODS 12). E entendem que tais padrões são próprios da economia social solidária, pressuposto para se acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todo o mundo (ODS 1); acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar (ODS2); garantir a saúde pública, um estilo de vida saudável e promover bem-estar para todos em todas as idades (ODS3), alcançar a igualdade de gênero e capacitar todas as mulheres e meninas (ODS5); garantir o acesso a uma energia segura, sustentável, moderna e acessível para todos (ODS 7) ; deter os danos causados pelas mudanças climáticas (ODS 13) e alcançar a paz tão almejada (ODS 16).
A 30 de Novembro de 2016, um mês depois da convocatória inicial, realizava-se uma primeira reunião, por Skype, com 10 participantes representando 9 organizações (Universidades, Associações de Trabalhadorxs e organizações da sociedade civil vinculadas ou não a escolas), de 5 países: Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia e México. Em fevereiro de 2017, o Webinar organizado por Colômbia Perez, da Universidade Cooperativa da Colômbia, primeiro em Espanhol e Portunhol, no dia 16, depois em Inglês, no dia 17, reuniu 20 participantes. Outras seis organizações se fizeram presentes, representando mais seis países: Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Quênia, Reino Unido e República Checa(4).
Nestes encontros virtuais, os participantes puderam compartilhar suas ideias sobre Currículo, como por exemplo:
“O currículo enquanto projeto político é um diálogo de culturas, processos políticos e conhecimento, que transcende o marco instituições de educação formal e é profundamente ligado à vida e às pessoas. (Claudia Martinez-BEPE);
“O currículo deve ser a fusão entre a academia e a vida através do diálogo. Deverá conter formação experiencial; educar para formar as pessoas direcionadas a um modelo de economia social e solidária. (Jean Pierre Anchicoque, Universidade Cooperativa da Colômbia).
Também foram evidenciados, dentre os propósitos políticos da Campanha, a importância de fortalecer articulações nacionais e internacionais que possam construir respostas efetivas à onda conservadora global e aos poderosos interesses contrários aos princípios de uma nova economia (Jorge Nuñez e Pedro Pubil – Colégio de Graduados en Cooperativismo y Mutualismo en Argentina; Adam Ramson , Leeds Development Education Center, Inglaterra).
Além disso, apontou-se necessidade de se criar uma estrutura mínima de gestão, organização e funcionamento para a Campanha – que deveria ser perene, e não pontual – com definição de ações do Comitê de Coordenação; criação de Comitês com organizações participantes; produção de ferramentas organizativas, inclusive manual de imagem e comunicação e planos de trabalho (Colômbia Perez – Univ. Coop., Colombia; Erika Licon – CCEDNet, Canadá).
Varias outras questões surgiram, relativas à operacionalização da Campanha no que diz respeito a seus conteúdos e estratégias de comunicação e difusão, levantando desafios relativos ao “como fazer” para:
- difundir globalmente as “Caixas de Ferramentas” já produzidas nos distintos países , com exemplos de práticas e de inserção nos currículos dos princípios da Ecosol (Rosemary Gomes, FBESS, Br, Ben Ooko, Amani Kibera, Quenia.)
- criar uma plataforma virtual dividida em Áreas Temáticas, ou um site que reúna informações, idéias, recursos, documentos, úteis para todas as organizações envolvidas (Bill Calhoun, School of International Studies-US)
- criar programas educacionais focando o conhecimento ancestral dos povos indígenas que já atuam na lógica da Economia Social Solidária (Noemi Botasso, Universidade Salesiana, Eq.; Eva Malirowska, NaZemi Rep. Checa)
- promover a escuta de todos os envolvidos, sobre o tipo de educação que desejam a fim de produzir as mudanças rumo a um Currículo Global da Economia Social Solidária (Jesus Rivera – Católica de Puebla, Mex.)
- articular a campanha às distintas redes e iniciativas globais que vão na mesma direção, como o movimento de escolas democráticas, ou o movimento de educação popular (Helena Singer, Centro de Referências em Educação Integral, Br)
- construir um mapa interativo das iniciativas de Educação para a Economia Social Solidária que já existem nos distintos países (Rosemary Gomes, Br., Claudia Alvarez, Univ. Quilmes, Ar.)
- criar um mapa de oportunidades de difusão da Campanha – congressos, encontros etc ( Claudia Alvarez )
- promover “advocacy” junto aos governos de todos os países demandando ações políticas que favoreçam um Currículo Global da Economia Social Solidária (Maria Celmira, Fund. Fuentecaldas, Co.)
- sistematizar as ações da Campanha (Claudia Alvarez, Univ Quilmes, Ar.; Madza Ednir- CECIP, Br.)
Nos dias 16 e 17 de Março de 2017, um pequeno grupo de educadores/ativistas sociais de redes, organizações e instituições voltadas à Educação para um Outro Mundo Possível, vai se reunir na sede do Centro de Criação de Imagem Popular, CECIP, para começar a responder coletivamente a estas questões . Representando 6 dos 11 países já envolvidos ou interessados na Campanha, eles mobilizaram seus próprios recursos e vêm encontrar-se com os colegas do CECIP, provenientes da Argentina (Universidade Nacional de Quilmes, organização social BePe-Bienvenidos los Pobres/REESS ), Brasil (Fórum Brasileiro de Economia Social Solidária, RNPI- Rede Nacional pela Primeira Infância, dentre outros), Equador ( Universidade Politécnica Salesiana), México (Benemérita Universidade Católica de Puebla) , Portugal (Ecosol-CES) e Quênia (Centro Amani Kibera de Educação para a Paz, pelo Esporte).
A partir dos resultados do Encontro, um documento preliminar será produzido. A ele serão incorporados os comentários e sugestões dos participantes dos 10 países envolvidos até agora, apoiando avanços na construção coletiva desta Campanha global que, acredito, Mestre Paulo Freire na certa abençoa, dizendo:
“Não há utopia sem sonho, nem sonho sem esperança. Não há utopia verdadeira, fora da denúncia de um presente que se torna cada vez mais intolerável, e do anúncio de um futuro a ser criado, a ser construído por nós, homens e mulheres – politicamente, com ética e estética. (Pedagogia da Esperança, Paz e Terra, 2015, p.123).
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NOTAS
- Nikola Testa, cientista servo croata naturalizado americano, in Javier Collado Ruano, Introdução à tese de Doutorado “Coevolução na Grande História – uma introdução transdisciplinar e biomimética aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, Univ. Salamanca/ UFBA, 2016.
- Veja org/invencoes-democraticas/.
- A Red de Educación y Economía Social Solidaria (RESS) nasceu como uma proposta didática para professores, a partir da Universidade Nacional de Quilmes, Argentina, e atualmente é uma experiência internacional cogestiva, reunindo organizações, sindicatos e Universidades. Uma rede onde mais de cinco mil membros autogestionam suas produções de socioeconomia e difundem publicações em distintos formatos. Dela participam organizações e membros de Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Cuba, Ecuador, Espanha, França, México, Nicaragua, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela.
- Red de Educación y Economia Social Solidária, REESS; Red Nacional de Investigadores y Educadores en Economía Solidaria y Cooperativismo, REDCOOP; Red Intercontinental de Promoción de la Economia Social Solidária; Canadian Community Economic Development Network (CCEDNet); Forum Brasileiro de Economia Social Solidária – FBESS; Rede de Educadores Populares do Centro de Formação em Economia Social Solidária do Brasil; Rede de Escolas Democráticas; Conferência Nacional de Alternativas para uma nova Educação – CONANE. A lista de organizações que compõem a equipe de multicoordenação, consultores e apoiadores (em Março de 2017) está na página web da Campanha (AQUI).
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Madza Ednir* é Consultora Pedagógica e Editora do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, Brasil.
Ilustração: Claudius Ceccon.
Grata Madza pelo histórico e informações preciosas sobre a construção deste grupo que se propõe a pensar um mundo solidário, sem muros e com muitas pontes, que unem ideias, culturas e experiências. Como educadora e cidadã deste planeta me sinto muito feliz em participar deste encontro.
Uma brilhante exposição de uma ideia generosa, criativa e inspiradora. 0
“Inédito viável”, sim, por que não? A pedagogia da esperança, a formulação de uma proposta que representa a conquista de valores solidários. A utopia possível. Ela pensa global e age localmente. E, a cada ação, a realidade se transforma, ensinando-nos que não devemos ficar paralisados diante das tarefas de recuperação do bem comum, que tentam nos convencer que são demasiadamente grandes para nossos poucos recursos. Ignoram que nossos recursos são infinitos