No final dos anos 1980, quando o engenheiro ambiental Cleiton Jordão, de 33 anos, ainda era um menino, ele aprendeu o que era a “chuva que morde”.
“Me lembro de começar a chover e eu ver uma criança na Vila Parisi correndo e gritando: ‘É a chuva que morde!’. Eu não sabia o que era. Depois me explicaram que era a chuva ácida”, relembra.
Nessa época, a Vila Parisi, bairro pobre em meio ao complexo industrial de Cubatão, no interior de São Paulo, tornou-se referência mundial nos efeitos da poluição atmosférica no ambiente e na população.
Em 1977, a emissão de componentes químicos tóxicos como monóxido de carbono, benzeno, óxidos de enxofre e nitrogênio, hidrocarbonetos e material particulado (partículas de poluentes suspensas no ar) liberados em Cubatão ultrapassava mil toneladas por dia.
A cidade tinha altos índices de doenças respiratórias e, em 1981, dezenas de crianças nasceram com anencefalia e outras malformações do sistema nervoso. Muitas delas naquele bairro.
A chuva ácida, que era frequente na cidade onde cerca de 20 indústrias pesadas eliminavam gases como óxidos de nitrogênio e de enxofre na atmosfera, não chegava a queimar imediatamente a pele, mas contribuía com a degradação da vegetação e das estruturas da cidade.
“Quando eu era criança, a imagem que mais me chocava era a da Serra do Mar, que era toda aberta e rasgada por causa da poluição”, diz Jordão à BBC Brasil.
“Eu cresci em outro bairro industrial, mas ia muito à Vila Parisi para visitar amigos dos meus pais e avós. E comecei a perceber que eu gostaria de atuar na área ambiental.”
Contribuição
Por causa da fama de “cidade mais poluída do mundo” e do subsequente reconhecimento, pela ONU, como um caso de recuperação ambiental nos anos 1990, Cubatão tornou-se atraente para quem tem interesse em trabalhar com meio ambiente e saneamento básico.
Além da oferta de empregos na indústria, a cidade também abriga o Centro de Capacitação e Pesquisa em Meio Ambiente da USP (Cepema), que reúne pesquisadores interessados em desenvolver tecnologia contra a poluição.
Foi lá que o engenheiro eletricista Mauro Braga, de 42 anos, descobriu também a vocação para o trabalho ambientalista.
Após se especializar em desenvolvimento de sensores ópticos, ele criou um nariz e uma língua eletrônicos que podem detectar poluentes no ar e na água.
Muito antes disso, Braga, filho de mineiros que foram para Cubatão trabalhar na indústria siderúrgica, queria ser médico.
“Quando a crise começou, eu já tinha uns 5 ou 6 anos e ouvia muito sobre a região em que meu pai trabalhava, que era do lado da Vila Parisi. Diziam que as pessoas que moravam próximo da região industrial tinham problemas respiratórios. Eu queria ir para a área médica para ajudar”, relembra.
A aptidão para engenharia elétrica, no entanto, o levou para a indústria e, em seguida, para as salas de aula. Anos depois, ele decidiu novamente usar os conhecimentos para lidar com a poluição em Cubatão.
“No mestrado, eu acabei indo para a área de desenvolvimento de sensores e, com um centro de pesquisas ambientais aqui, vi que era um nicho no qual eu podia contribuir. Para nós que somos do município, isso é muito importante.”
“Quis desenvolver uma estratégia de monitoramento para que as pessoas soubessem o quanto a poluição poderia estar afetando a vida delas.”
O sistema de sensores, feito em parceria com uma empresa alemã, pode identificar e quantificar a presença de metais pesados nos rios e mangues da cidade. Uma adaptação permite que ele também seja usado para interagir com gases tóxicos liberados na atmosfera pelas fábricas.
“É uma solução relativamente barata, comparada aos métodos de análise tradicionais de laboratório. E poderia ser um apoio ao que já existe”, diz Mauro.
“Uma rede de sensores instalados em diversos pontos, próximo das fontes de poluição, pode dar uma ideia mais precisa do que está acontecendo. Até para ter um plano de evacuação, em caso de acidente, isso é importante.”
O sistema já foi testado e ainda aguarda financiamento de órgãos públicos ou privados para começar a ser utilizado na cidade.
Qualidade do ar
Depois de chamar a atenção do mundo nos anos 1980, Cubatão colocou em prática um plano para controlar as emissões de poluentes na atmosfera, que lhe valeu reconhecimento durante a conferência ambiemtal da ONU Eco-92, no Rio de Janeiro.
Atualmente, o município perdeu o posto de cidade mais poluída do mundo – e até mesmo do Brasil, segundo dados de 2014 da Organização Mundial de Saúde.
O órgão mede a concentração de dois tipos de material particulado na atmosfera, o PM10 e o PM2,5, cuja diferença está no tamanho das partículas poluidoras – como sulfato, nitratos e carbono – que penetram nos pulmões e no sistema cardiovascular. As mais finas, PM2,5, são consideradas mais perigosas.
Na cidade paulista, os valores de PM10 e PM2,5 de 2014 ficaram abaixo, mas muito próximos dos limites máximos de segurança estabelecidos pelo órgão – índices em que já há cerca de 15% mais chances de mortes prematuras.
A OMS considera que a exposição anual dos cubatenses ao material particulado PM2,5 ainda é três vezes maior do que a considerada desejável.
Na área residencial da cidade, a qualidade do ar é considerada boa, segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
Mas em 2013 um estudo de pesquisadores da USP concluiu que, mesmo em níveis aceitáveis, a poluição do ar em Cubatão ainda tem sérios efeitos na saúde da população.
O trabalho afirma que, para cada aumento de 10 microgramas por metro cúbico de material particulado PM10 no ar da área residencial, aumentava em até 5% a quantidade de internações por doenças respiratórias, especialmente em crianças menores de cinco anos, e de doenças cardiovasculares em maiores de 39 anos.
Memória
Cleiton Jordão formou-se em engenharia ambiental e em gestão pública. No final do ano passado, atuou como secretário do Meio Ambiente em Cubatão, e diz que a cidade precisa ser mais eficiente no combate à poluição atmosférica.
“Foi muito difícil (ser secretário) porque o Meio Ambiente não é um foco dos governos. Nunca foi prioridade das administrações estruturar a secretaria de Meio Ambiente. Não temos o nosso código ambiental da cidade, não temos fiscais de controle ambiental”, diz.
“Conseguimos criar um fundo municipal de meio ambiente, mas ainda está em fase de implantação. Cubatão precisa investir mais no mundo acadêmico para encontrar mais soluções inovadoras contra a poluição.”
Apesar da fama mundial, não há na cidade museus, arquivos ou memoriais sobre o período em que a poluição afetou centenas de famílias – o número exato de crianças nascidas com malformações nunca foi estabelecido, e pesquisadores que viveram a época falam em pressão do governo militar para ocultá-lo.
Jordão é hoje professor de ciências no Ensino Médio, e se preocupa com o pouco conhecimento que os adolescentes têm sobre a tragédia.
“Pergunto a meus alunos sobre a poluição naquele tempo e eles mal sabem. Só os mais velhos sabem. Esse resgate deve ser feito para que não se comentam erros passados.”
“É como um câncer. A pessoa pode se curar do câncer, mas, se não tiver preocupação e tomar todos os cuidados, ele pode voltar”, afirma.
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Esta reportagem faz parte da série da BBC #SoICanBreathe, dedicada a problemas causados pela poluição.
Foto: Os engenheiros Cleiton Jordão e Mauro Braga tentam encontrar soluções políticas e científicas para combate à poluição em Cubatão
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.