O discursinho do emprego e a revisão do Plano Diretor, por Raquel Rolnik

Raquel Rolnik

Não é de hoje que ouvimos o argumento de que a regulação urbanística que define o que pode ser feito em cada terreno da cidade limita a indústria da construção civil e o mercado imobiliário, que seriam grandes geradores de empregos. Essa ideia tem servido de pretexto para o anúncio, pela gestão do prefeito João Doria, de propostas de mudanças no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, em vigor desde 2014 e com revisão programada apenas para 2030.

Algumas destas possíveis mudanças já foram sinalizadas por Doria e Heloísa Proença, secretária de Urbanismo e Licenciamento: aumentar o número máximo de vagas de garagens e o tamanho máximo dos apartamentos permitido nos prédios, especialmente os localizados junto aos corredores de ônibus e estações de trem e metrô; e diminuir a cobrança de outorga onerosa – que os construtores devem pagar para construir prédios em certas áreas da cidade, aumentar a altura máxima dos prédios em áreas em que esta altura é hoje restrita.

Tudo isso porque, segundo a Secretaria, a indústria da construção civil está parada porque “a conta não fecha” por causa do Plano Diretor…

Mas, afinal, mais garagens nos prédios vai beneficiar quem e estimular o quê? A construção de apartamentos maiores e mais caros, voltados para as classes mais altas, e mais carros entupindo as ruas, justamente em áreas com ampla oferta de transporte coletivo! E diminuir o pagamento da outorga onerosa? Hoje, por meio da outorga onerosa, o Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), um dos poucos instrumentos redistributivos da cidade, permite ao poder público captar recursos das áreas mais valorizadas e investir em parques, praças, ciclovias, corredores de ônibus, habitação, melhorando as condições urbanísticas das regiões mais precárias. Ou seja, as perdas e retrocessos implicados nestas propostas são evidentes.

De acordo com a Prefeitura, porém, com essas medidas a cidade atrairá empregos, fundamentais neste momento de crise. Será que essa justificativa se sustenta?

Em 2014, quando a geração de emprego em São Paulo e em todo país atingiu seu auge de crescimento, a cidade contava com pouco mais de 5,3 milhões de postos de trabalho. Destes, cerca de 300 mil, o equivalente a menos de 6% do total, correspondiam à indústria da construção civil, em pleno boom imobiliário, de acordo com dados da prefeitura. Se examinarmos o comportamento dessa indústria na cidade em tempos de vacas mais magras, ou antes do período de crescimento (2005-2014), a média de empregos gerados pelo setor era de 150 mil. Ou seja, a diferença entre o número de empregos na construção civil na crise e no boom é de 150 mil.

Ora, 150 mil postos de trabalho é algo de fato significativo… mas a análise dos dados deixa evidente que a indústria da construção civil nunca foi – e nunca será – um grande gerador de empregos em São Paulo. Quem mais gera empregos na cidade é o comércio atacadista e varejista, que empregava, em 2014, quase 1 milhão de pessoas. Os setores de serviços de alojamento, reparação e transporte geram mais que o dobro de empregos que o setor da construção civil. A Administração Pública, tão atacada pelo discurso privatista do prefeito, era responsável, naquele mesmo ano, por 860 mil postos de trabalho.

Moral da história: se o prefeito quer estimular a criação de empregos –um objetivo importante e necessário –, seria importante ele analisar como poderia apoiar estes diversos setores. Entendendo os números apresentados pela pesquisa, cabe nos perguntar qual o sentido estratégico de propor mudanças em instrumentos de planejamento que a cidade construiu para promover melhorias urbanísticas, com o pretexto de criar uma quantidade de empregos que, na verdade, é muito pouco significativa em relação ao conjunto.

Essas alterações, ainda que aumentem o volume de área construída na cidade, terão como efeito a produção de salas comerciais e de apartamentos que não serão utilizados por quem mais precisa hoje de moradia, já que estas pessoas não têm recursos para comprar os imóveis que serão viabilizadas por essas mudanças. Esta é a conta que não fecha…

Falei sobre isso na minha coluna dessa semana Rádio USP. Ouça o comentário acessando o site aqui.

Desigualdade urbana em São Paulo. No Morumbi, a favela de Paraisópolis e o prédio de ‘alto luxo’. Foto de Tuca Vieira

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