Por Brenno Tardelli, no Justificando
Vou dividir o artigo em três partes. No tempo em que ele é escrito, estamos em meio ao incêndio que atinge em cheio Michel Temer. Semana após semana, empresários e políticos fizeram delação premiada numa bola de neve que rola agora por cima do presidente. O Judiciário, o MPF, a PF estão bombando nas redes e bombardeando os outros poderes. Se você é contemporâneo desse artigo, sabe bem como está sendo. Se você lê isso em alguma data futura, saiba que ninguém consegue mais controlar as chamas crepitantes dos messiânicos jurídicos que querem passar o Brasil a limpo, ainda que para isso promovam uma terra arrasada e destruam a política institucional de um país colonizado na periferia do capitalismo.
Inúmeras pessoas denunciaram que esse momento viria. Que quem se valia do arbítrio para perseguir seu inimigo político veria no futuro aplicado contra si o mesmo arbítrio. O Judiciário no pré golpe era campo de batalha instrumentalizado por opostos políticos para obterem vantagem para si e prejuízo para os outros, mas o processo de impeachment aprofundou a tática até a ruptura completa do fair play, condenando-se uma presidenta eleita por milhões de votos para sucessão do programa e partido derrotado nas urnas, mas ressentido pela derrota.
Os males destrutivos para as instituições pensadas pela Constituição de 1988 em razão um golpe jurídico parlamentar e midiático sustentado por uma tese e provas frágeis das pedaladas foi muito denunciado. Não se passa um impeachment fraco do ponto de vista probatório e de ampla resistência sem abalo nas instituições, as quais atualmente definham.
Para se chegar no impeachment por qualquer via que fosse necessária, o empresariado, a mídia e a classe política (que se misturam muitas vezes) ignoraram os alertas e inflamaram as ruas e a Justiça Penal. Fizeram um verdadeiro estrago. E, para piorar, colocaram uma classe política bem pior no sentido ético, cognitivo e programático no lugar da classe afastada. Uma que levaria ao extremo os erros cometidos por quem saiu. As reformas, a Emenda de congelamento dos gastos por 20 anos, a Escola sem Partido, entre tantas outras pautas de profundo atraso estão aí. A base ruralista, religiosa, violenta que apoiou o golpe não tem sequer militância de base para prestar contas pelo retrocesso. São todos compromissados com o atraso e cumprem essa agenda com louvor.
O uso do Judiciário para queimar a mata do antipetismo é a chave para entender o momento atual. Messiânicos autoritários foram instrumentalizados por opositores ressentidos por perder a eleição de 2014.
A República de Curitiba, Mecca do Antipetismo, virou ponto turístico para se divertir, enquanto rodava a perseguição ao partido e aos quadros políticos que estavam no poder. Em meio a um escândalo de corrupção de um Partido dos Trabalhadores que se escarafunchou na corrupção e na simbiose com os corruptores, um circo foi montado pela oposição que comemorou arbitrariedade após arbitrariedade. Tudo valeria para nos salvar do PT.
Ocorre que o fogo, como era de esperar ante sua própria natureza, fugiu do controle e os messiânicos tomaram gosto pela labareda. Outra metáfora é possível. Conta um pequeno agricultor amigo meu, que um dos preferidos cães pastores para gado é o Dogo Argentino. O porte, a altivez e ferocidade do cachorro deixam o fazendeiro seguro de que seu pequeno gado está sendo bem cuidado. Ocorre que quando o Dogo avança por algum motivo para cima do gado e, em uma mordida, sente o gosto da carne do animal, ele se torna um sanguinário. Sedento pela sangue que sentiu em sua boca pela primeira vez, o Dogo passa a ser um predador do gado e um terrível problema para o pequeno agricultor. Sendo verdade ou não o relato, aproveito a história para pensar naqueles que apostaram em pessoas que sentiram o gosto do arbítrio na boca e agora se viciam nele.
Atrás do sorriso abobado e vaidoso, as neocelebridades jurídicas aplicam o que há de mais punitivo e inspiram os outros juízes e promotores menos famosos, mas com muito deslumbre pela nova fase de protagonismo a serem ainda mais autoritários. Sentem que nada nem ninguém pode pará-los e canetadas determinam prisões e mais prisões com gozo. Como diz Roberto Tardelli, meu pai, o gosto sádico de autoritários não está somente em prender, mas em manter a prisão. Prender é um orgasmo imediato, manter preso é um gozo permanente. Arbitrários aplicam uma ideologia sádica, racista, misógina, mas que foi admitida, assimilada e internalizada pelas instituições funcionando normalmente porque i) o punitivismo é sedutor; ii) o alvo era o PT.
Ocorre que os reflexos da Turma de Curitiba inspiradora dos juízes e juízas que querem ser do super-time, mas não conseguem ser, são sentidos na pele por advogados e advogadas nos mais variados fóruns e tribunais do país. Cada vez mais, a certeza nas carreiras jurídicas da invencibilidade do pensamento tacanho e autoritário reproduz em mais prisão, por mais tempo e maior desprezo à defesa e às teses defensivas. São vários conceitos do fascismo que surgem com muita força nas carreiras jurídicas, a saber: a crença na punição, na pureza moral, o ódio ao outro elegido como “inimigo público”, fosse o político do PT, fosse o traficante, o desprezo pelos direitos humanos, o nacionalismo verde e amarelo, dentre tantos outros pontos.
Essas são as conflitantes crepitudes que foram chama original. Classe política e empresarial ressentida pela derrota nas eleições, instrumentalização de uma classe jurídica messiânica, autoritária e sedenta por poder, a qual avassala os mecanismos de resistência dentro do Poder Judiciário, bem como inspira juízes e promotores ávidos pelo querer ser a também serem cada vez mais arbitrários. A classe atingiu uma potência nunca dantes imaginada e se viu na oportunidade de ela mesma sequestrar a política dos outros dois poderes. Tudo isso sendo coberto por uma mídia também ressentida com o petismo, mas também punitiva em larga escala, seja nos grandes jornais, seja nas alternativas, resultando na crença pelas mais variadas pessoas de padrões econômicos diversos a crença de que a solução política está nas mãos do Poder Judiciário. Um Poder que se tornou Supremo.
O incêndio
Agora que entendemos o início da chama, podemos compreender melhor como chegamos a esse incêndio. Aceso por essa classe ressentida, o fogo da inquisição apontou suas chamas modernas de investigação, turbinadas pela delação, para o Legislativo e Executivo de um país da periferia do capitalismo. Como resultado, obviamente encontrou corrupção. Esse país é fundado na colônia, na desigualdade e no racismo; em qualquer área que se imagina (incluindo Magistratura e Ministério Público) os inquisidores vão encontrar corrupção. Telecomunicações, Futebol, Carnes, Bancos, Construtoras. Nada escapa. A diferença dos messiânicos reside apenas no fato de que a armas de investigação estão em suas mãos e ninguém pode investigá-los. Afinal, quem vigia o vigilante?
Do ponto de vista econômico, nossas grandes corruptas corporações, que exploram tudo na periferia do capitalismo, têm exposto suas horríveis entranhas em rede nacional. Não se descarta, nem de longe, a influência internacional nesse processo, algo além da compreensão comum dos noticiários cotidianos. Seja como for, cenário se desenhou – ou foi desenhado – para as estrangeiras chegarem aqui e consolidar a supremacia no mercado. Na ponta de baixo, vamos apenas trocar de explorador, mas a exploração será a mesma, já que nossa elite econômica nacional consegue ser igual ou pior que a estrangeira. Do ponto de vista geopolítico, o Brasil perde importância e deixa de ter qualquer perspectiva de ser o que anunciou pretender ser.
As delações apontam o óbvio, prisões se acumulam e um vem puxando o outro, até chegar – e era inevitável que não chegasse – em parte naqueles próprios que acenderam o fogo. Aécio Neves, que subiu em caminhões, fez discursos, anunciou a busca pela ética e moralidade contra o PT que havia destruído o país, de repente se vê em uma delação exposta em rede nacional. A mídia, que ainda consegue se amparar em recorde de acessos e Ibope nos programas espetaculosos, ainda se mantém na lógica de mercado, mas não me espantaria se as delações começassem a chegar nos seus ninhos e expusessem com quantas negociatas se faz um oligopólio de informação em um país de dimensão continental.
O fogo aceso para queimar a mata do PT se alastrou para a floresta. Agora, não se sabe mais o que vai queimar, mas há a certeza de quem tentar encostar no fogo será queimado – daí porque entendo que Gilmar Mendes, homem forte de todas as horas, tem grandes chances de sucumbir às forças da inquisição. Um ano depois da consolidação do golpe, o presidente favorecido pela manobra foi queimado em apenas um dia, julgado por provas às quais não tinha acesso, mas estavam nas mãos da mídia. Foi julgado por uma interpretação de grampo por um jornalista hermeneuta. A interpretação não correspondia exatamente ao que foi anunciado, em que pese a conversa ter sido comprometedora do ponto de vista ético. Tudo isso em rede nacional. Temer foi queimado pelo próprio fogo que ajudou a acender.
Tomei o cuidado para falar em extintor, porque ele apenas ameniza o fogo, mas não é capaz de conter ou apagar as chamas em tão alastrado nível. A constatação da supremacia do Poder Judiciário é interessante para observar o cenário político atual, que luta para sobreviver. Do ponto de vista de sua própria base, Temer precisa sair do poder, mas temo que não vai renunciar, pois tem medo da prisão – com toda razão, diga-se de passagem – e teme na vaidade que, caso saia à lá Nixon, não seja mais tratado como sempre foi com louras, bajulações e celebração à sua pseudo-erudição. Ouvir “Excelência, Deputado, Professor, Presidente” a vida inteira dá uma pirada em quem é obrigado a lidar publicamente com seus monstros no armário.
Entretanto, caso de alguma forma Temer seja tirado poder, dois caminhos se abriram. i) um que favorece a Ditadura do Judiciário, ao passo que um sistema podre se organiza sozinho dentro do cínico legalismo que, no final das contas, apenas beneficia o próprio Judiciário – detentor do saber e da autoridade sobre o que legal ou não. Esse é o caminho da eleição indireta – surpreende-me que a classe política de partidos de centro e de direita optem por ela, uma vez que eles serão os maiores prejudicados pelo protagonismo de um Poder que fatalmente os invisibilizará. Estão aterrorizados de lidarem mais uma vez com a derrota e preferem serem sucumbidos por um poder externo do que topar ir para a disputa;
O outro caminho é que procura o mínimo de paridade entre os poderes – ainda dentro dos limites do macropoder tal qual é ditado pela democracia liberal – e enxerga na eleição direta com o povo na rua um modo de conferir legitimidade ao Legislativo e Executivo. Ditadura do Judiciário é pior do que o equilíbrio ainda que frágil entre os três poderes. Nesse caso, entenderia que a eleição direta confere mais legitimidade para a classe política, o que traria um pouco mais de harmonia para o Executivo e Legislativo, para fazerem frente nesse campo de disputa. Ainda que reconheça suas limitações por estar presa dentro da forma estatal condenada à falência, eu prefiro essa opção.
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Brenno Tardelli é diretor de redação no Justificando.Juiz Federal Sérgio Moro cumprimenta Presidente Michel Temer, o qual assumiu após impeachment de Dilma Rousseff. Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil