Caso Roger Abdelmassih: Sensação de impunidade que corrói nossa democracia, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

A transferência do ex-médico Roger Abdelmassih para prisão domiciliar causou justificada revolta. Condenado por estuprar e abusar sexualmente de pacientes dopadas, ele teve seu pedido acolhido pela Justiça sob a justificativa de problemas cardíacos e de hipertensão. Caso comprove que sua saúde melhorou, deverá voltar ao presídio. Enquanto, isso ficará ”confinado” a seu apartamento de luxo em São Paulo.

A revolta popular não é apenas por ele não ter cumprido nem três dos 181 anos de sua pena, o que transmite a impressão de impunidade. Mas pela constatação de que uma pessoa rica, com boa banca de advogados, consegue garantir um benefício que a imensa maioria da população carcerária brasileira não tem.

Não se discute aqui sua condição clínica ou a urgência médica, mas a sensação coletiva de que isso ocorreu por ser ele quem é. Por que não se expande o benefício a todos? Basta ver a cor de pele e a classe social das alas de pacientes com tuberculose nos presídios ou dos detentos com doenças crônicas que morrem anonimamente sem provocar comoção para entender a razão.

Ou constatar que o Brasil tinha 250 mil presos sem condenação em qualquer instância em 2014, a maioria envolvendo crimes que não atentaram contra a vida ao contrário de Roger Abdelmassih, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Um levantamento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo também apontou que mais de 60% dos presos provisórios são negros e mais de 80% não contavam com advogados.

O Brasil é um país racista e desigual e, consequentemente, há uma profunda seletividade em nosso sistema de Justiça, contaminando as instituições que deveriam executar a legislação. Como bem explicou a este blog Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta, ”uma parte da população usufrui as garantias do estado de direito e outra não”. O ponto é que isso não se resolve deixando de aplicar a lei a todos, mas ao contrário.

Em maio, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos solicitou ao Supremo Tribunal Federal um habeas corpus coletivo para que todas as gestantes ou mães de crianças de até 12 anos que estejam em situação de prisão provisória possam ser beneficiadas com prisão domiciliar – como prevê a legislação. Os advogados usaram como justificativa a decisão concedida em nome de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, acusada de corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava Jato. Adriana já foi inocentada por Sérgio Moro, mas a decisão sobre a extensão do benefício nem foi analisada ainda.

A razão do incômodo com a transferência do ex-médico e estuprador está intimamente ligada à desigualdade de acesso à Justiça no país e à própria injustiça social – que faz ricos serem cidadãos plenos e pobres serem tratados como objetos descartáveis. Portanto, tema central dos direitos humanos.

Mas falhamos retumbantemente ao permitir que programas sensacionalistas de TV do tipo ”espreme que sai sangue”, ao longo das décadas, fossem porta-vozes da redução dos direitos humanos a ”direitos de bandidos”. Quando a verdade é que, se a população brasileira conseguiu garantias mínimas de qualidade de vida foi devido à luta pela efetivação dos direitos humanos no país.

Que incluem o direito de não ser roubado e morto por bandidos, mas também de não ser torturado e morto pela polícia. E, claro, o direito a policiais, que são funcionários públicos, não serem assassinados quando prestarem um serviço à sociedade.

Falhamos todos também ao não conseguirmos pautar um debate vigoroso, qualificado e acessível sobre a questão. Com isso, a lacuna foi sendo preenchida por pessoas que simplificam a realidade, tornando tudo uma luta de bons contra os maus, e embrulham-na em um discurso que promete soluções rápidas e ineficazes (prender e matar os maus, salvar os bons) para problemas estruturais.

O povo, cansado diante das dezenas de milhares de mortes de um país que vive uma zona de guerra em tempos de paz, é mais facilmente sequestrado pelo discurso do medo. Tão danoso quanto a violência em si, ele é o caminho usado para a redução de liberdades individuais e coletivas em nome da segurança. Ou seja, a violência rouba o corpo e o medo termina por levar a alma.

Isso ajuda a explicar o porquê do crescimento de uma candidatura como a de Jair Bolsonaro, que, diante do medo, promete ordem e segurança. Um exame detalhado das propostas do deputado federal mostra que elas não trarão o resultado desejado – a menos, claro, que as histórias sobre violência deixem de circular devido à censura estatal, tal qual na última ditadura militar.

As propostas, contudo, não precisam fazer sentido no longo prazo. Mas serem apenas uma resposta inteligível aos eleitores apresentada em um contexto em que a política, a academia e as organizações sociais não conseguem abrir uma conversa com o restante da sociedade.

Diante da sensação de impunidade dominante, a população deixa de acreditar em suas instituições – e não falo apenas de partidos e tribunais, mas também de leis, normas e regras. E opta pelo que foi preciso para se garantir segura. Mesmo que as saídas acabem por levar a mais violência.

Quando uma turba parte para o linchamento de uma pessoa acusada de cometer um crime, usa – não raro – o discurso de que as instituições públicas não conseguem dar respostas satisfatórias para punir ou prevenir. Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor, juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer, baseado em um entendimento subjetivo do que é certo, do que é errado e do que é inaceitável. Mesmo que, ao final do dia, isso os transforme em criminosos mais vis do alguém que comete um furto, por exemplo. Porque cobram com a vida um crime contra o patrimônio.

Nesse ponto de vista, determinados discursos de ordem – que passam por cima de tudo e de todos, querem armar cidadãos para a guerra e criar situações de exceção de direitos em nome de uma ”causa maior” – não são muito diferentes das ações de criminosos que eles dizem querer combater. Servem, pelo contrário, para fazer com que voltemos no tempo, tornando lei a vontade do mais forte.

O combate à corrupção se mostrou capaz de ir contra a onda de impunidade que gera a revolta já mencionada. Não é à toa que, nesse cenário, juízes sejam incensados como heróis, mesmo que façam valer a lei de forma, não rara, torta e enviesada. O que está relacionado a outra consequência da erosão que vivemos: os fins passam a justificar todos os meios.

As parcelas da direita e da esquerda minimamente comprometidas com o Estado democrático de direito deveriam, urgentemente, se unir para trazer a discussão sobre as causas e as consequências da violência urbana e rural para o centro do debate nacional. Acrescento o rural, pois o país vive um surto de massacres no interior ordenados por fazendeiros, madeireiros e seus prepostos diante da percepção do vale-tudo permitido pelo momento de ruptura institucional em que vivemos.

A população precisa ser envolvida na discussão dos fatores que estão na gênese dessa violência para poder monitorar o Estado e seus representantes políticos visando à inclusão econômica social, à universalização da Justiça e à da proteção da dignidade dos cidadãos.

O risco de mantermos o silêncio é ver, em 2018, soluções simplistas e violentas serem escolhidas. E, ao final, baratas reinarem sozinhas, eleitas pelo medo do povo. Pois elas, que são simples e resistentes, estavam aqui antes da democracia chegar e continuarão muito depois dela ir embora.

Um Estado que não vê problemas em garantir que Roger Abdelmassih e outros ricos sejam tratados de forma privilegiada diante de um exército de presos temporários pobres e negros, passando a impressão de impunidade e ampliando o medo, é o mesmo que não percebeu que já está sendo devorado vivo por essas baratas.

 

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