Milagre não é Temer se manter, mas povo ter força para se levantar de manhã, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

O sujeito, que se esfola no serviço até não aguentar mais, recebe um salário de fome e depende de programas de renda mínima para comprar o frango do aniversário do filho, chega em casa esgotado física e mentalmente após ter ralado o dia inteiro em uma merda de emprego (que, ainda por cima, corre o risco de deixar de existir pelos planos de terceirização na empresa graças às reformas ”modernizantes” do governo federal), senta-se no sofá e ouve o moço de cabelo impecável na TV dizer que bilhões foram gastos para comprar votos de deputados a fim de salvar Michel Temer de ser julgado por corrupção, mas também que bilhões foram desviados em escândalos de corrupção, bilhões foram garantidos em subsídios e renúncias fiscais a empresários e bilhões deixaram de ser recolhidos por conta das isenções de impostos a que os mais ricos têm direito, para, logo na sequência, ver engravatados senhores explicarem que o rombo das finanças nunca foi tão grande e que bilhões precisam ser economizados através do adiamento das aposentadorias para o país não quebre – e a cada palavra proferida pelos engravatados senhores, que parecem ter todos os dentes do mundo, um desespero genuíno vai lhe tomando conta, pois se lembra que seu corpo já não é como antes e se tiver que procurar um novo emprego naquele momento da vida, estará ferrado, sua companheira está ferrada, seus filhos estão ferrados, seus pais estão ferrados e, percebendo o quanto ferrado já está, seu desespero vai se transformando em vontade de quebrar tudo, não por autopiedade, mas frustração e raiva, e com a garganta embargada de choro, decide parar de pagar impostos, de seguir leis e regras injustas feitas pelas mesmas pessoas que estão lhe fodendo sem nenhuma cerimônia e a ir para a rua protestar contra um país desgraçado que lhe obriga a ter que escolher entre comprar o tal frango do filho ou trazer sabão e pasta de dentes, enquanto alguns arrotam caviar com dinheiro de impostos, mas daí se lembra do rapaz carioca, negro e pobre, que foi preso em uma manifestação por portar Pinho Sol e depois preso novamente por ser acusado de carregar alguns gramas de drogas enquanto o filho de uma desembargadora foi solto ao ser pegos com quase 130 quilos de drogas, e a vontade de sair quebrando tudo dá lugar à lembrança de que o país não é dele, nunca foi, e que ele é apenas a mão de obra barata que faz a engrenagem funcionar, nunca ganhará uma mala de R$ 500 mil de um dono de frigorífico por serviços prestados e mesmo se fizesse uma tatuagem de hena com o nome do presidente, não levaria milhões em emendas, pelo contrário, seria apenas mais um bobo pobre que acredita no governo (igual àqueles colegas do trabalho que botaram fé em tudo o que é mandado por listas de WhatsApp e passaram a achar que o principal problema do país são os comunistas) e, respirando fundo, se lembra que tem que acordar cedo amanhã porque o serviço tá atrasado, abraça forte a sua companheira, que acaba de chegar de uma viagem de mais de duas horas de ônibus da casa patroa onde é empregada doméstica, e a ouve perguntar com aquela voz que traz paz ao mundo se está tudo bem com ele, no que responde com um beijo em sua testa, a velha mentira do cisco no olho e um aviso de que a novela já vai começar.

 

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