O Brasil no labirinto

Por Juliano Fiori, no blog da Boitempo

No Brasil de hoje, tudo é o que parece. O ventre da política foi aberto, teve suas entranhas repugnantes expostas, derramando fluidos fétidos e corrosivos na adoecida corrente sanguínea da sociedade. A conspiração é uma prática palpável, não uma teoria. As redes sociais e os meios de comunicação são os principais campos de batalha. O sigilo está perdendo seu valor, e a vantagem política é determinada pela velocidade de ação. Diversas facções adversárias se apressam em impedir as ofensivas alheias, que parecem ultrapassar e estilhaçar a flecha do tempo. O presente se encolhe. O amanhã é agora. O “homem de hoje” de Plutarco já está morto.

A retrospecção é seletiva; racionaliza e sequencia eventos passados, atribuindo a eles uma lógica que raramente manifestam no momento. Mas a mera reflexão sobre a complexidade da política brasileira nos últimos anos refuta qualquer narrativa linear. Cada subtrama labiríntica integra o infinito labirinto da História. Contingência e absurdo são descritores mais precisos do que “ordem e progresso”. Ainda assim, cada intervalo entre as frenéticas acusações trocadas é preenchido com discursos sobre modernização – como justificativa para a agenda do atual governo ou como proposta para sua correção – refletindo o materialismo e o racionalismo que conduziram a construção da república brasileira.

Em 1941, em um ingênuo louvor modernista, o escritor austríaco Stefan Zweig declarou que o Brasil era o “país do futuro”. Os fundadores positivistas da república já haviam buscado direcionar a imaginação popular nesse sentido: o futuro como um destino nacional, uma responsabilidade, mas também uma distração pacificadora. Ao longo da República Velha, no entanto, a modernidade não passava muito de um ideal tecnocrático ou um truque de retórica usado pelos oligarcas, generais e gestores públicos para proteger seus interesses políticos. Foi Getúlio Vargas que a transformou em um projeto nacional estratégico, com objetivos de desenvolvimento que seriam buscados até a liberalização política e econômica da década de 1980. As correntes nacionalistas desse projeto rapidamente se dissiparam em meio à democracia, mas a hegemonia de sua concepção de História permaneceu, influenciando os preceitos de liberais e marxistas, friedmanianos e keynesianos: linear e inevitavelmente progressiva, a História é propulsada pelos processos dinâmicos do desenvolvimento capitalista, tendo o Estado como seu planejador racional e supervisor, exógeno à atividade econômica. As contestações a esse modelo foram funcionais, não estruturais; ônticas, não ontológicas. (Embora as reformas neoliberais da década de 1990 tenham alterado a natureza das intervenções estatais na economia, elas não reconsideraram o papel histórico do Estado em processos de desenvolvimento; a rapidez com que se construiu o Estado neoliberal se deve, em boa parte, à capacidade institucional do Estado desenvolvimentista que ele substituiu.)

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Brasília sofre um colapso moral. Enquanto isso, Michel Temer fala com certa displicência sobre modernização, apelando à oligarquia e ao conluio das elites políticas inveteradas. No seu primeiro mês como presidente interino, em maio de 2016, Temer adotou o slogan fundador da nação, “ordem e progresso”, como slogan de seu governo. Ao voltar-se para o passado, contudo, ele visou ao futuro, usando a tradição como base para a promessa de um avanço estável. Como ele mesmo disse: “ordem e progresso sempre caminham juntos”.

Temer tirou vantagem do poder do Executivo para realizar uma ampla reforma nos regimes trabalhista e de bem-estar social. Ele impôs emendas constitucionais que limitam as despesas sociais por vinte anos, abrem o mercado de trabalho para a terceirização irrestrita e “simplificam” as leis trabalhistas. E ainda está mobilizando o congresso para aprovar uma reforma da previdência social. Embora sejam apresentadas como “uma ponte para o futuro”, essas reformas mais se parecem com as emendas constitucionais experimentadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso – se é que não as reproduzem identicamente. Elas têm o mesmo tom das reformas propostas pelos idealistas neoliberais daquela época, e parecem especialmente anacrônicas se comparadas às recentes manifestações de insegurança e, até mesmo, remorso por parte do FMI – o maior defensor da ortodoxia econômica – quanto à sua promoção anterior de estratégias neoliberais.

Esses esforços reformistas de Temer têm como objetivo demonstrar seu valor aos aliados políticos e aos líderes empresariais que podem determinar seu destino político e, inclusive, jurídico. Além disso, reformas contínuas geram ruído, desviando o foco das várias medidas que tomou para proteger tanto a si mesmo como aos seus aliados, também acusados de corrupção. Assim, quanto mais controversas do ponto de vista social, mais úteis as reformas serão. Enquanto isso, as crescentes manifestações são contidas com uma repressão truculenta e cada vez mais militarizada, justificada pela mídia com seu alarde sobre as “provocações” e “vandalismos”.

Na prática, portanto, a atividade modernizante de Temer tem sido, ao mesmo tempo, uma forma de retrospecto e uma fuite en avant. Mesmo assim, seu resultado – a modernidade que ele visa – é o reforço do status quo: ele tentou “simplificar” e desregular o incipiente estado de bem-estar social brasileiro aumentando a precariedade do trabalho de baixa remuneração e a oportunidade de acumulação de capital; e, de maneira cada vez mais evidente, tem encontrado novas formas de garantir sua imunidade legal e a de seus aliados, institucionalizando ainda mais a corrupção e o subterfúgio no meio político.

Com apoio reduzido às suas reformas no congresso, Temer agora se tornou bode expiatório precisamente de grupos de interesse que já representou. Ainda assim, se mantém no poder.

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A “nova direita” – representada por João Doria, atual prefeito de São Paulo e possível candidato à presidência em 2018 – também fala de modernização. Declaradamente antipolítica, ela apresenta a modernidade como uma utopia técnica e meritocrática. Suas propostas se assemelham muito às do governo Temer, mas são apresentadas num linguajar “neogerencialista”, com ênfase na inovação, na eficiência e na ruptura. Tendo também como prioridades a simplificação e a privatização, a nova direita usa a modernização como estratégia populista, por meio da qual constrói uma fronteira antagônica entre o establishment político e as “pessoas de bem”.

Em outubro de 2016, Doria se tornou o primeiro prefeito de São Paulo a ser eleito sem segundo turno. Ele prometeu um governo que iria “modernizar a cidade”, trazendo-a para a era digital. Agradou tanto aos paulistanos que cultuam o empreendedorismo quanto às massas despolitizadas, apresentando-se não como um político, mas como um empresário de sucesso, que seria um gestor eficiente e aplicaria o conhecimento técnico que adquiriu em sua longa carreira no setor privado. Sua gestão pública adotaria princípios empresariais e privilegiaria os interesses dos empresários. Ao tomar posse, logo deu início ao desenvolvimento do que chamou, com uma pretensão trumpista, de “o maior programa de privatização da história de São Paulo”. E assim como o corretor imobiliário Donald Trump, o marqueteiro João Doria se tornou um empresário-celebridade como apresentador de O Aprendiz.

Para ele, ser moderno envolve uma transparência radical. Recentemente, demitiu a secretária municipal de Desenvolvimento Social em uma transmissão ao vivo pelo Facebook com a mesma solenidade falsa com que demitia seus “aprendizes” no programa. A política moderna é, assim, uma política do espetáculo, uma política do gesto. Sob os olhares voyeurísticos dos espectadores, em tempo real, ele doa seu salário de prefeito às crianças portadoras de deficiências para mostrar que é caridoso; pinta de cinza grafites famosos da cidade para mostrar que é duro contra o crime; veste-se de gari para mostrar que é capaz de pôr a mão na massa; anda de cadeira de rodas pelas calçadas para mostrar sua preocupação com a acessibilidade. E, então, veste-se novamente de mauricinho, com seu suéter em tom pastel simetricamente amarrado em torno do pescoço – um esteta cosmopolita, autor de Sucesso com estilo: 15 estratégias para vencer.

O modernismo populista de Doria é moralista ao se opor à “velha política” e ostensivamente ético em sua ênfase à probidade. Seu discurso é simultaneamente inclusivo e ambicioso: Doria propõe-se a governar “para todos”, considerando que qualquer pessoa com determinação e disciplina pode ter a sorte de subir na escala social. O bom cidadão, portanto, é o sujeito produtivo, que trabalha duro e progride; é o funcionário público que ama tanto seu trabalho que só faz greve “nos dias expedientes”; é o próprio Doria, o self-made man – o “João trabalhador”, como se apresentou durante a campanha. Exceto que, como era de se imaginar, a trajetória profissional de Doria, filho de um político e publicitário bem-sucedido, está longe de ter sido self-made.

A modernidade de Doria reluz, atraindo os desafortunados “mímicos apropriadores” da sociedade como mariposas a uma lâmpada. Movendo-se em ritmo frenético, desatentas ao esforço coletivo, elas parecem não se importar com o vazio do seu alvo.

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A esquerda institucionalizada oferece uma visão distinta de modernização, que se reflete principalmente na estratégia “neodesenvolvimentista” timidamente adotada pelo governo do PT durante o segundo mandato de Lula e parte do primeiro mandato de Dilma. Perdido no caos político e econômico infligido ao Brasil nos últimos anos, o neodesenvolvimentismo reemergiu, um tanto abatido, na forma do Projeto Brasil Nação.

O ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira tem sido o mais entusiasmado e articulado defensor das ideias neodesenvolvimentistas na esfera pública. Como estratégia modernizante, seu neodesenvolvimentismo representa uma terceira via entre a ortodoxia neoliberal, com seus imperativos monetaristas e privatizadores, e o Nacional Desenvolvimentismo, com sua ênfase na política industrial: é o reconhecimento das intransigentes realidades política e econômica impostas após a Crise da Dívida da década de 1980, combinado com uma tentativa de revigorar a industrialização e desenvolver uma estratégia de crescimento econômico. Bresser-Pereira costurou, assim, um patchwork de políticas que, segundo ele, fazem o mercado e o Estado mais fortes. Todos saem ganhando; a modernidade se reconsagra; a política se dissipa.

O Projeto Brasil Nação foi lançado em São Paulo no dia 27 de abril, após três meses de elaboração e planejamento, sob a coordenação de Bresser-Pereira. Seu manifesto foi assinado por grandes nomes da esquerda brasileira: Chico Buarque, Celso Amorim, Tata Amaral, Fernando Haddad, Raduan Nassar, entre muitos outros. O manifesto tem foco desenvolvimentista, e também foi assinado por “campineiros” notáveis que, mantendo seu compromisso com um Nacional Desenvolvimentismo não reconstruído, têm sido os principais críticos das concessões do neodesenvolvimentismo à ortodoxia. Mesmo assim, sua linguagem e seus preceitos gerais inconfundivelmente refletem a ideia de terceira via de Bresser-Pereira. Ele defende o “desenvolvimento econômico com estabilidade de preços, estabilidade financeira e diminuição da desigualdade”, bem como “uma política fiscal, cambial socialmente responsáveis”. É uma tentativa de ocupar o centro no Brasil.

Seu lançamento teve um tom, no mínimo, otimista, chegando a beirar o triunfalismo em certos momentos. Ciro Gomes, outro signatário do manifesto e possível candidato à presidência em 2018, discursou com grande entusiasmo. O Projeto Brasil Nação, ele proclamou, tem “a semente do potencial fundador para uma etapa nova da vida brasileira”. Mas é a crise política da esquerda, mais do que qualquer visão inovadora, que parece unir os antigos rivais desenvolvimentistas. E, como já é de se esperar, eles convergem em sua prioridade comum, tendo a macroeconomia como fio condutor e principal reflexo da estratégia.

O manifesto estabelece uma cartilha política realmente enfadonha em sua falta de originalidade e limitação: regras fiscais que permitem expansão anticíclica, taxas de juros reduzidas, manutenção do superávit em conta corrente, maior investimento público e tributação progressiva. Ele apresenta, como resposta a um processo estagnado de modernização, propostas que têm circulado há anos – das quais algumas foram, inclusive, adotadas pelo governo do PT, um partido inicialmente crítico do desenvolvimentismo. Dessa forma, o manifesto passa a impressão de que os desafios que o PT enfrentou ao desenvolver e implementar seu projeto nacional eram puramente exógenos. É como se a recessão, o desemprego recorde e as políticas de austeridade recentes não tivessem qualquer relação com a lógica interna do neodesenvolvimentismo – isto é, suas limitações políticas e teóricas; como se a implementação bem-sucedida de um projeto nacional dependesse apenas da recauchutagem de antigas ideias, da construção de uma maior base de apoio e de uma aplicação mais verdadeira e ampla da receita neodesenvolvimentista. E é como se um projeto nacional de desenvolvimento fosse necessariamente a resposta para os inúmeros desafios estruturais que o Brasil enfrenta.

Os aplausos e as felicitações mútuas no lançamento, porém, pareceram forçados, mascarando desespero e insegurança. À convicção ensaiada seguiam-se afirmações de que esse era apenas o começo, como que para adiar a questão inevitável: Isso é tudo? O otimismo se torna uma mortalha, encobrindo a estagnação na teoria e na prática estruturalista e, ao mesmo tempo, intensificando a tensão dialética que caracteriza a visão modernizante da esquerda institucionalizada. Por um lado, a modernização exige um investimento político e ético no desenvolvimento capitalista como um processo progressivo. Esse investimento é justificado como instrumental, seja para um capitalismo mais justo, seja para uma sociedade igualitária pós-capitalista. É uma tentativa: um ato de fé. Por outro lado, para afastar as dúvidas internas que acompanham o cultivo da fé, investe-se emocional e filosoficamente na modernização, enfatizando seu determinismo e sua inexorabilidade. A própria dúvida transforma a esquerda no defensor mais fervoroso e contumaz de um capitalismo “puro”, competitivo e produtivo, que, se não é a própria modernidade, é visto como uma etapa antes.

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Os intelectuais pós-coloniais podem ponderar a existência de múltiplas modernidades; todavia, na medida em que a modernidade é concebida como um conceito iluminista, desenvolvido pelos philosophes do século XVIII, é singular e absoluta. A própria possibilidade de múltiplos futuros modernos compromete a modernidade como conceito e como projeto. A relativização desintegra a lógica linear do tempo; a sequência progressiva de momentos relevantes embaralha-se. É claro que sempre haverá visões alternativas da modernidade, mas nenhuma delas consegue acomodar a outra.

Essas diferentes visões inevitavelmente se baseiam na concepção fundamental do Iluminismo, ainda dominante e decididamente ocidental, de modernidade como comercial, individualista, e intolerante à tradição, construída a partir da razão, e igualitária, se não necessariamente em termos sociais, em termos morais. Um resultado que perdurou foi a generalização da ideia de que há algo essencialmente civilizado nas sociedades ocidentais; uma ideia difundida inclusive por modernizadores não ocidentais de tendência reacionária, nacionalista e antiocidental, como Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia, que sugeriu haver “apenas uma civilização”. Com a globalização do sistema capitalista interestatal europeu, os processos de modernização nacionais fora do Ocidente têm consistido, até certo ponto, em recuperar o atraso, indicando, portanto, um caráter “ocidentalizante”, mesmo quando implementados por países que não são predominantemente capitalistas em sua organização interna.

Nesse sentido, o Brasil não tem sido exceção. Apesar de o nacionalismo econômico ter impulsionado a industrialização entre 1930 e 1980, a veneração da arte e da arquitetura da belle époque, das ideologias europeias e dos ídolos do capitalismo ocidental configurou a tentativa de transição do Brasil para a modernidade. A idealização do Ocidente continua influenciando a autoimagem dos brasileiros, particularmente da chamada classe média “aspiracional” – dos moradores dos condomínios fechados da Barra que sonham com Miami aos consumidores paulistas que lamentam a retirada das lojas Louis Vuitton e Christian Dior da Oscar Freire como símbolo da perda do seu glamour de Fifth Avenue. Como já dizia Nelson Rodrigues, “o brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.

O governo do PT iniciou uma mudança na maneira como muitos brasileiros se percebiam, com a redução da desigualdade, as cotas raciais nas universidades e a projeção internacional do país. A identidade também foi uma preocupação crucial para quem apoiou e orquestrou sua expulsão do poder. O impeachment de Dilma e a subsequente instalação de um regime cuja agenda política fora rejeitada em todas as eleições neste século representaram uma retaliação: uma tentativa da elite de reafirmar sua autoridade e ressignificar as cores nacionais que levou às ruas antes de assumir o poder.

Diferentemente das insurgências populistas que têm reconfigurado as correntes políticas predominantes na Europa e nos Estados Unidos, essa reação autoritária obteve um apoio reduzido das massas desfavorecidas. De qualquer forma, ainda expressa uma crise da modernidade.

Ao olhar para o futuro, o Brasil confronta seu passado colonial. À modernização liberal subscrevem os oligarcas e plutocratas cujos interesses estão protegidos pelas tradições coloniais predominantes de opressão estrutural, racismo e patriarcado. Uma vez que não tenham total controle sobre a modernização – como ocorreu durante o governo PT – a possibilidade de ruptura com essas tradições provoca uma reação desenfreada. A mídia, o judiciário, as associações empresariais, as empresas nacionais, o capital estrangeiro e uma aliança de deep states se mobilizam em nome da ordem, e, até mesmo, da constituição. Com o Estado recapturado, um processo de modernização gerenciada pode, enfim, recomeçar.

As insatisfações da modernidade também se refletem na disseminação de um crescente sentimento antipolítico, particularmente entre a população pobre urbana, da qual é possível encontrar equivalentes em outras zonas decadentes de fronteira em nosso mundo globalizante. Com um desdém niilista, uma geração de “modernizadores” neoliberais tem contribuído para o desgaste dos laços sociais tradicionais e o rompimento das instituições que promovem a solidariedade entre comunidades e classes. O ressentimento gerado pela fragmentação pós-industrial das classes foi, então, complementado por um distanciamento político e moral entre os políticos e os cidadãos comuns que enfraquece a participação cívica e a responsabilidade democrática. Revelada a modernização como um projeto de elite, põe-se em xeque o princípio igualitário da modernidade.

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Diante dessa crise, os ideólogos modernistas buscam um deus ex machina para confirmar sua marcha contínua rumo ao progresso. E então retornam às suas prescrições geralmente economicistas de desenvolvimento, que só levam em consideração o sujeito antimoderno quando lhe podem atribuir uma determinada missão modernista, talvez até milenar, a ser buscada racionalmente.

A incapacidade de se conectar com as emoções e experiências cotidianas de quem foi deixado para trás pela modernidade teve um impacto particularmente profundo na esquerda, cujos laços populares essenciais se afrouxaram com a fragmentação das classes e o enfraquecimento dos sindicatos. A extrema direita, representada pelo deputado Jair Bolsonaro, tem apelado para os mais desfavorecidos por meio do patriotismo exacerbado, do militarismo, do nativismo e das promessas de lei e ordem. Os movimentos evangélicos, com suas instáveis associações políticas, têm tido grande sucesso em preencher esse vazio político, às vezes combinando ideias pré-modernas de Revelação com uma narrativa hipermoderna sobre enriquecimento individual e progresso. Mas a esquerda tem tido dificuldade em olhar além de suas categorias sociais convencionais, manter a fé popular no trickle-down do desenvolvimento e construir uma equivalência entre os interesses de diferentes grupos despolitizados. Como resposta a um processo de despolitização causado, em parte, pelo desenvolvimento, a esquerda propõe mais desenvolvimento; como resposta à crise da modernidade, mais modernização.

Antonio Candido afirmou que “o que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue”. Mas o capitalismo certamente arrancou muito mais do socialismo. A esquerda tem estado sempre presa à lógica de conversão do capitalismo, naturalizando algumas formas de opressão para lutar contra outras; o capitalismo produz novas tecnologias de poder com mais rapidez do que a esquerda consegue controlar seus excessos; e este poder a institucionaliza – já dizia Deleuze, “não existe governo de esquerda”. A priorização do desenvolvimento, porém, é uma escolha estratégica para que haja convergência. E é uma concessão a crises periódicas – é, em última instância, a promoção de crises periódicas. Se as estratégias de desenvolvimento permitiram a expansão e distribuição da riqueza, também prenderam a economia em um ciclo descendente de expansão e retração.

Supervisionado pelo Estado centralizado, o desenvolvimento é um processo top-down. Mesmo quando seus benefícios trickle-down são identificáveis, sua lógica produtivista impõe limitações à participação democrática direta. Ele exige intensa extração de recursos naturais e destruição do meio ambiente, além de estimular a homogeneidade cultural. Um projeto nacional centrado no desenvolvimento econômico não consegue representar os diversos interesses e culturas – nacionalidades, inclusive – que fazem parte da sociedade brasileira. Ele pode, no máximo, proporcionar uma democracia representativa ou republicana de baixa intensidade, na qual apenas as industrias culturais de maior viabilidade comercial sobrevivem à constante ocidentalização.

Há, sem dúvida, muitos esquerdistas que reconhecem as contradições de promover o desenvolvimento como meio de justiça social. Atualmente, com Temer sendo apoiado por uma coalisão de direita, a esquerda parece disposta a deixar de lado suas diferenças estratégicas. No dia 26 de junho, a deputada Jandira Feghali fez um discurso enérgico no lançamento carioca do Projeto Brasil Nação, focando a união da esquerda e trazendo entusiasmo, humanidade e fundamentação política para uma discussão de resto insípida. Há ainda outras propostas sendo desenvolvidas que visam unir a esquerda, como o Plano Popular de Emergência da Frente Brasil Popular, cujo escopo é mais amplo que o do manifesto de Bresser-Pereira. Até que ponto a ênfase está no desenvolvimento, todavia, é certamente uma questão a ser discutida.

Para a direita brasileira, a modernidade, quando não se trata apenas de um pretexto conveniente, é desprovida de ideais progressistas. Enquanto isso, a esquerda, ainda comprometida com a promessa radical da modernidade, se encontra cada vez mais distante da realização desta, precisando, portanto, repensar sua relação com o projeto modernista.

Ao buscar um futuro singular, a esquerda desenvolvimentista renuncia à oportunidade de ser uma representante de múltiplas aspirações, lutas e buscas por justiça, compostas por diversas percepções e experiências. Diante da negação das suas supostas verdades – progresso sendo a mais óbvia delas – responde limitando-se a uma reafirmação de sua permanente validade. Assim como a direita materialista, a esquerda materialista imagina linhas retas onde há ângulos, bifurcações e becos sem saída. À medida que a política brasileira escapa cada vez mais à explicação racional, ambas se perdem no labirinto da História.

* Traduzido do inglês por Ana Beatriz Fiori.

Juliano Fiori é escritor anglo-brasileiro e mora no Rio de Janeiro. Ele é Chefe de Estudos (Assuntos Humanitários) da Save the Children, Pesquisador Visitante do Grupo de Pesquisa “O Poder Global” da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Professor Honorário do Humanitarian and Conflict Response Instititute da Universidade de Manchester. Formado em letras clássicas, com pós em relações internacionais e em economia, ele escreve principalmente sobre assuntos internacionais, humanitarismo, e política e cultura brasileira.

 

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