Como a história do conservadorismo estadunidense nos ajuda a entender a marcha da Unite the Right em Chralottesville, assim como o fenômeno “anarcocapitalista” no Brasil.
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Você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade. (Ayn Rand)
O mundo assistiu paralisado às imagens dos protestos de grupos de extremistas na pacata cidade Charlottesville, no estado da Virgínia. A impressão era que a caixa de Pandora havia sido aberta. Grupos que pregavam a supremacia branca, suásticas nazistas, cruzes incandescentes, bandeiras dos confederados e do Tea Party. A imagem da Ku Klux Klan, antes desbotada pelo tempo, agora aparece colorida.
“Eu sou nazista, sim!”, gritava um homem. Essa frase estampou a manchete de vários jornais, deixando os leitores incrédulos. A intolerância e o ódio tornaram-se motivo de orgulho, de autoafirmação. Os casos particulares também chamam a atenção. Um jovem de 20 anos acelerou em direção a uma multidão, matando uma mulher e deixando outros 19 feridos. Outro garoto viajou mais de 4 mil quilômetros para participar do protesto. Todos jovens, todos com pouca experiência e pouca vivência. Mas todos cheios de certezas e em busca de justiça. Mas uma pergunta ficou sem resposta: justiça em relação a quê?
Os protestos foram convocados inicialmente para impedir a remoção da estátua do general Robert Lee. Lee comandou o exército da Virgínia do Norte durante da Guerra Civil americana. Nesse ponto é preciso cuidado, não vou aprofundar as explicações sobre quem foi essa figura obscura, porque isto não importa. O que aconteceu sábado pouco tem a ver com uma suposta “verdade histórica”. Mas era um embate político em torno da memória, que diz mais sobre o presente do que sobre o passado.
Monumentos históricos não são livres de disputas ideológicas. Muito pelo contrário, são resultados delas. Ao resolver demolir a estátua do general, o prefeito mexeu em feridas ainda não cicatrizadas. Em problemas que não estão resolvidos.
Este texto busca entender como a imagem de um general do exército confederado foi capaz de unir movimentos políticos aparentemente opostos como “libertários” e neonazistas. O que teria causado tanto ódio? Para responder essa pergunta é necessário, primeiro, entender as bases do conservadorismo norte-americano.
As origens do conservadorismo nos EUA
Já virou lugar comum dizer que os EUA são um país de imigrantes. Essa afirmação, sozinha, é tão verdadeira quanto inútil. Para compreendermos a sociedade americana é preciso ir além das generalizações. Ok, eles são um país formados por imigrantes. Mas qual o sentido e os efeitos desse fluxo de pessoas na conformação da cultura política do país? Essa pergunta é muito mais interessante e ilustrativa.
Segundo o historiador Roger Osborne, o principal efeito político de imigração foi o bipartidarismo. Ora, por serem um país de imigrantes, afirma Osborne, nenhum grupo tinha força suficiente para impor a sua agenda. Isso poderia levar a uma fragmentação ou poderia aglutinar esses grupos em duas grandes agremiações. Segundo o mesmo autor, as diferenças étnicas, culturais e raciais foram aos poucos perdendo espaço diante da crescente polarização. Essa afirmação precisa ser relativizada.
As culturas que formaram os EUA não chegaram ao mesmo tempo e não tinham o mesmo peso. O mito de origem americano começa num navio. Porém, ele não era uma “Arca de Noé cultural”, mas um pacto feito por ingleses puritanos enquanto partiam para o desconhecido. Ou seja, há um modelo bem definido do que seria o homem americano. Os imigrantes não vieram para compor um universo plural, mas precisavam se encaixar numa hierarquia predeterminada.
Com o tempo, essas fronteiras étnicas, que inicialmente eram bem demarcadas, foram sendo borradas. Assim, grupos radicais se agarravam cada vez mais às tradições e a um passado idealizado. Segundo o pensamento conservador, o verdadeiro americano seria sintetizado por uma sigla: WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant).
Portanto, ao contrário do que propõe Osbourne, as diferenças étnicas, culturais e raciais não foram perdendo espaço, mas elas criaram outra divisão, que de tempos em tempos emerge no debate político. Tal polarização é entre os grupos culturais que buscavam espaço e os chamados WASP que, guiados por um ideal mítico de sociedade, desejavam manter o modelo aristocrático.
Essa divisão nunca desapareceu por completo. Quando os manifestantes de sábado gritavam frases como “nosso solo” ou “nossa terra”, eram essas representações que eles estavam evocando. A defesa da cultura europeia/protestante e da supremacia branca está na origem do movimento conservador nos EUA.
A abolição da escravidão e os movimentos de supremacia branca
Em 1865, a Guerra Civil terminou. Os Estados do Sul estavam sob intervenção da União. O projeto dos vencedores era construir um novo pacto social capaz de unir um país totalmente polarizado. Os EUA não seriam mais um país de protestantes brancos, mas da liberdade individual. Local em que qualquer pessoas poderia progredir pelo mérito individual, independente da origem ou da cor da pele.
Houve uma série de mudanças legais. A Décima Terceira Emenda à Constituição havia abolido a escravidão. Na teoria, todos os homens eram iguais. O Civil Rights Act conferia a brancos e negros os mesmos direitos. A Décima Quarta Emenda, 1868, estabelecia que qualquer pessoa nascida em território nacional seria considerada cidadão americano. Enquanto de Décima Quinta Emenda, 1870, afirmava que o direito de voto do cidadão era inalienável e não poderia ser suprimido em nenhuma circunstância, incluindo brancos e negros.
Mas o processo de integração do negro à sociedade não seria simples. Nenhum país passa por séculos de escravidão e sai impune. As heranças desse sistema são muito profundas e as feridas demoram séculos para cicatrizar. A esfera política é muito mais dinâmica que a cultural. As instituições mudam, assim como o sistema legal, mas os valores arraigados permanecem. O racismo e o ódio são o substrato mais perverso desse sistema político.
O negro era visto como inferior e não seriam algumas emendas constitucionais que mudariam tais convicções. É importante destacar que, apesar de ser mais forte no sul, o racismo era disseminado e amplamente aceito por toda a sociedade americana. Inclusive entre os abolicionistas. Ser contra a escravidão não é sinônimo de considerar brancos e negros iguais. Para que isso ocorresse levaria muito tempo. Ou melhor, como vimos recentemente, esse caminho ainda está distante do fim.
O conceito de liberdade é plástico e muitas vezes ele é usado para esconder formas de coerções. Conforme os Estados do Sul fossem recuperando a autonomia, os direitos civis dos negros iam sendo revistos.
As Leis de Jim Crow (1876–1950), que vigoraram por quase um século, impuseram um apartheid social. Negros e brancos não frequentariam os mesmos espaços públicos. A justificativa era que ambos eram livres, porém deveriam ser mantidos separados. Na prática, ao contrário do que o discurso sugere, tal legislação não separou o país em dois, mas serviu para institucionalizar o racismo, a segregação e para negar os direitos civis para boa parcela da população.
Os radicais americanos não estavam satisfeitos. Para eles, os negros serviam apenas como mão de obra; sem escravidão não haveria mais utilidade. Eles deveriam, portanto, ser eliminados ou expulsos. Movimentos fundamentalistas como a “Camélia Branca”, “Irmandade Branca”, “Associação dos 76” e a famosa “Ku Klux Klan” (KKK), datam desse período e pregavam abertamente a superioridade da raça branca.
A lógica da KKK era muito parecida com a do nazismo e nos ajuda a perceber a dinâmica do radicalismo. Ambos, KKK e nazismo, emergem após uma derrota militar — a Guerra Civil (no primeiro caso) e a Primeira Guerra Mundial (no segundo). Diante da frustração com a derrota e vendo o mundo em acelerada transformação, os fundamentalistas se agarravam às tradições. A um suposto passado glorioso. Ao comparar esse passado idealizado, mítico, com a realidade imperfeita do presente, chegava-se a uma conclusão bastante simples: a nação está se degenerando; culpa de certos grupos que não sabem o seu lugar e não respeitam as hierarquias naturais.
Essa é a estrutura mental dos movimentos radicais. Há uma ordem metafísica e perfeita que precisa ser respeitada. Esse modelo pode vir do passado idealizado, momento em que todos viviam em harmonia; de uma realidade transcendental, divina; ou de um futuro no qual se almeja. No nazismo, por exemplo, mais próximo do cientificismo (sem obviamente desconsiderar o forte componente mítico), a eugenia “provava” que os arianos eram a raça superior. No universo mental da KKK, mais místico, deus dera superioridade moral ao homem branco.
Se os arianos eram superiores, como explicar o caos que a Alemanha vivia nos anos 1930? O mesmo pode ser dito em relação à derrota dos confederados na Guerra Civil. A culpa naturalmente seria do outro. Dos grupos estigmatizados. Para os supremacistas brancos, a abolição havia quebrado a ordem natural, sendo os negros, que não respeitavam os desígnios divinos, os responsáveis pela degeneração social.
Essa lógica está presente em quase todos os movimentos extremistas. Invariavelmente, são grupos que acreditam ter uma verdade, seja de natureza divina, seja de origem científica. Porém, há um problema. Como uma verdade evidente só é reconhecida por uma pequena seita? A resposta desses movimentos é: há uma conspiração que impede os homens comuns de enxergarem a verdade. É nesse momento que os grupos estigmatizados são fundamentais para a organização do cosmos extremista.
No caso americano, haveria uma cultura superior que estaria sendo ameaçada por grupos inferiores, representado pela imagem do homem negro. O negro seria uma ameaça a toda a sociedade, pois ele carregaria o germe da degeneração social. Não bastaria, portanto, mantê-los segregados. Seria preciso subjugá-los e humilhá-los. Para redimir a afronta dessas pessoas e resgatar um equilíbrio idílico. No limite, eles deveriam também ser eliminados.
A KKK seria responsável por centenas de morte nas décadas seguintes. Alternando períodos em que era extremamente atuante e outros em que ela praticamente desaparecia. Segundo o historiador William Randel, a organização chegou a contar cinco milhões de membros na década de 1920. Auge do movimento.
O Movimento Conservador Radical e o Ultraliberalismo
A partir da década de 1930, a política americana sofre outra inflexão. Com o advento do New Deal, em resposta à crise de 29, o Estado de bem-estar social americano começa a ser formado e, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, há um predomínio do pensamento progressista dentro do país.
Isso obviamente não quer dizer que não havia conservadores. As políticas sociais, de matriz keynesiana, sempre causaram desconforto. Mas o mundo acabara de passar por um desastre e eram tais medidas que estavam atenuando os efeitos da crise. Ser contra o Estado de bem-estar social seria o mesmo que perder as eleições. Portanto, as críticas dos partidos eram muito tímidas. Definitivamente o pensamento conservador estava em baixa.
Porém, o incômodo aumentava conforme as medidas progressistas avançavam. Esse desconforto criou uma demanda reprimida por alternativas conservadoras. Isso ficou evidente quando, em 1951, um jovem de apenas 25 anos, Wiliam Buckley, publicou um livro intitulado “God and Man at Yale”. O livro não trazia nenhuma teoria sofisticada, na verdade ele não propôs nada, apenas reclamava da influência do pensamento keynesiano nas universidades e do afastamento dos princípios cristãos. A publicação, contudo, rapidamente se espalhou pelo país.
O livro de Buckley é importante, pois indica alguns aspectos daquilo que mais tarde seriam as marcas do novo conservadorismo radical. Primeiro, ele foi impulsionado por jovens insatisfeitos, que, orientados por uma cultura conservadora, sentiam-se excluídos do mainstream acadêmico e não eram representados pelos partidos políticos. Essas pessoas se apresentavam como outsiders.
Segundo, o forte financiamento. A falta de base social foi compensada desde o início pelos amplos recursos que esses grupos recebiam. Os empresários compraram essas ideias desde o início, pois viram nesses jovens insatisfeitos o caminho para a desregulação econômica, que obviamente os beneficiaria.
Em 1955, o mesmo Buckley fundou uma revista para disseminar as ideias conservadoras. Como Paul Krugman mostra, estudar o início do movimento é fundamental para entender as raízes do novo conservadorismo radical. No início, os conservadores não tinham a pretensão de disputar o espaço público, mas de criar uma identidade e um pensamento coerente capaz de dar unidade aos membros. Portanto, os assuntos eram tratados sem nenhuma forma de dissimulação.
Segundo Krugman, com o tempo, os conservadores desenvolveriam uma linguagem cifrada, inalcançável para pessoas de fora dos círculos extremistas: “Hoje figuras importantes da direita americana são mestres no que os britânicos chamam de apito de cachorro: eles dizem coisas que agradam a certos grupos de modo que apenas os grupos visados possam ouvir — e de modo que os extremismos da sua posição se torne óbvio para todos. (…) Reagan foi capaz de sinalizar simpatia pelo racismo sem nunca ter dito algo abertamente racista”.
Portanto, aquilo que mais tarde se autointitularia “movimento libertário”, que pregava uma política ultraliberal, desde a sua fundação estava próximo dos grupos racistas e autoritários. Nas páginas da National Review, por exemplo, há referências à superioridade da raça branca e elogios a ditadores, como o general espanhol Francisco Franco. “A comunidade branca do sul tem o direito de adotar as medidas necessárias para prevalecer, política e culturalmente, em área onde não predomina numericamente? A resposta sensata é sim. A comunidade branca tem o direito porque é a raça superior”. “O general Franco é um herói nacional. É amplamente admitido que ele, acima de outros, reunisse em si, a combinação de capacidade, perseverança e senso de justiça” (ambas as citações são da revista National Review e foram retirados do livro “A Consciência de Um Liberal”, do economista Paul Krugman).
A origem do “libertarianismo” (ou “anarcocapitalismo”) estadunidense, portanto, não está na luta contra a opressão, como alegam os adeptos da ideologia, mas no esforço de resgatar o modelo aristocrático de sociedade, que estava sendo abalado pela social democracia.
Essas são as afinidades entre os velhos conservadores racistas e o novo conservadorismo ultraliberal. Como a revista El Coyote mostrou, um dos fundadores dessa corrente, Murray Rothbard, além de racista e de defender a separação das raças, era admirador de David Duke, político ligado à KKK.
A contradição é apenas aparente. Como dissemos no início deste texto, o conceito de liberdade é plástico e pode esconder formas de coações. A santificação do mercado substituiu o racismo no discurso conservador. Os autointitulados “libertários” — cujo termo foi tomado dos anarquistas, admitido pelo próprio Rothbard; e que por tal razão passaremos a chamar de ultraliberais, termo mais apropriado para o que de fato sua ideologia significa — não idealizam o passado como os conservadores tradicionais, mas o futuro. Ou melhor, um futuro possível desde que as forças econômicas possam agir livremente.
Essa é a realidade metafísica dos ultraliberais. Se o mundo está longe do ideal é porque há uma conspiração que impede que tal modelo seja concretizado. Tal conspiração viria da “esquerda”, dos “keynesianos”, dos “marxistas”, dos “fascistas” e dos “totalitários”. Esses conceitos são arrancados do seu sentido original e empacotados sob o rótulo de “coletivismos”. São os coletivistas os responsáveis pela degeneração dos valores e pelo atraso econômico. Como podemos perceber, não estamos muito longe da mentalidade conservadora tradicional.
Como o economista André Guimarães Augusto destacou, os efeitos da política “libertária” são opostos à liberdade. Os ultraliberais defendem a propriedade privada como o único direito inalienável, sendo inclusive entendida como uma extensão do corpo individual. Ora, pessoas não possuem os mesmos bens, há ricos e pobres. Portanto, os indivíduos não seriam iguais, haveria aqueles com mais direitos. Ora, tal proposta nada mais é que uma representação de um modelo aristocrático de sociedade.
Segundo Murray Rothbard, as posses individuais seriam expressão da superioridade moral dos indivíduos. Eu poderia lembrar que ladrões também enriquecem; mas o objetivo não é discutir o pensamento desse autor, que tem mais furos que uma peneira, e sim as semelhanças entre os ultraliberais e os antigos conservadores. Assim, limito-me a destacar que esse argumento não está muito distante do conservadorismo tradicional, seja o racista, que pregava a superioridade moral da raça branca, seja o religioso, ou seja, da ética puritana da predestinação.
Rothbard chega a defender a escravidão como forma de pagamento de uma dívida. Segundo o autor, o direito à propriedade estaria acima da liberdade individual. Ora, era justamente esse o argumento dos defensores da escravidão no século XIX, que defendiam o direito individual de ter escravos, afirmando que o Estado não poderia intervir no direito à propriedade.
Foi tal embate que iniciou a Guerra Civil. Os estados confederados queriam a secessão justamente para ter o direito de legislar sobre o trabalho compulsório. Era essa a liberdade que os conservadores defendiam. Entenderam agora o motivo de tanta briga em torno da figura do general Lee? Os racistas admiram Lee pela defesa da escravidão; os ultraliberais, porque ele, “teoricamente”, lutou contra a “opressão” do Estado.
Como veremos, uma das estratégias desses grupos é a manipulação do passado para dar sentido teleológico às suas ideias. Se o pensamento ultraliberal é infalível, a realidade não pode desmenti-lo. Assim, há dois caminhos: ou recusa-se o método empírico (como fazem os ultraliberais da escola austríaca), ou constrói-se uma narrativa alternativa do passado, à imagem e semelhança da teoria.
Algumas pessoas chamam esse movimento de revisionismo. Este termo não é correto, pois eles não produzem uma interpretação alternativa, mas uma falsificação grosseira. Os Guias Politicamente Incorretos que viraram moda nos EUA, e recentemente chegaram ao Brasil, são o exemplo mais conhecido desse esforço.
Enfim, o discurso ultraliberal reafirma os valores conservadores para justificar o modelo social aristocrático.
Após construírem um corpo teórico coerente e de fácil assimilação, ainda faltava o segundo passo. Conquistar uma base social sólida e concorrer nas eleições. Em 1964, o movimento conservador radical assumiu o controle da convenção republicana. A candidatura de Barry Goldwater foi um fracasso eleitoral, mas eles aprenderam uma maneira eficiente de se comunicar com a população. Ronald Reagan, famoso ator e galã de cinema, e que futuramente seria eleito presidente pelo Partido Republicano, fez um discurso na televisão para a campanha de Goldwater. Nele, Reagan usava pela primeira vez uma estratégia que seria a marca desses grupos: a manipulação estatística para dar um falso embasamento científico às suas afirmações.
Os conservadores também passaram a financiar intelectuais para construir uma narrativa alternativa que, não raro, beirava o delírio. Milton Friedman foi um dos primeiros a iniciar essa tarefa. Para defender o liberalismo, seria necessário livrá-lo do seu maior carma, a Crise de 29. Nos anos 1960, Friedman desenvolveu uma interpretação para a Grande Depressão. Nela, o governo era apontado como o grande responsável pelo colapso. Segundo Krugman, tal afirmação beirava a desonestidade intelectual, mas não importava — não era a verdade que eles estavam buscando.
Nas décadas seguintes, os já referidos “Guias Politicamente Incorretos” dominariam o mercado editorial e massificariam tais ideias. Como Krugman destaca, os primeiros intelectuais ultraliberais, como Friedman e Kistrol, eram acadêmicos respeitados, que, antes de virarem propagandistas, construíram uma carreira sólida. Esse “pré-requisito” seria logo descartado. A ideia era simplificar e massificar. Discursos rebuscados teriam pouca utilidade. Ser conservador se tornou um ótimo negócio para intelectuais medíocres, que viam no pensamento ultraliberal a maneira de construir sua carreira e de lucrar com ela: “tornar-se um intelectual conservador passou a ser uma boa manobra para a carreira”. (Krugman).
A disseminação dos chamados think tanks também era parte do projeto. Estas instituições nasceram como centros de estudos. Após a década de 1970, elas começaram a adotar técnicas de marketing e a serem centros de propaganda do ultraliberalismo. Think tanks conhecidos atualmente, como a Heritage Foundation e o Cato institute, iniciaram suas atividade nesse período.
Nomes, antes esquecidos, como os do economista Ludwig von Mises, da “filósofa” Ayn Rand e do já citado Murray Rothbard foram resgatados do anonimato e alçados à categoria de grandes pensadores. As escolhas não foram ao acaso. Além de serem radicais, ao contrário dos rebuscados Milton Friedman e Irving Kristol, tais autores possuem um pensamento simplista, de rápida assimilação. Ideal para a massificação.
Enfim, há laços estreitos entre os chamados libertários e os antigos conservadores. E o ponto de convergência é justamente a defesa de uma sociedade aristocrática. Como vimos, a estrutura mental desse ultraliberalismo é essencialmente fundamentalista. Eles trabalham com a noção de verdade e possuem um adversário claramente identificável. O movimento conservador, portanto, deu nova vida ao extremismo americano. Mas ele, sozinho, não explica o atual recrudescimento da extrema direita. Para isso, é preciso olhar para fatos mais recentes.
Globalização e Recrudescimento do Conservadorismo
O início do século XXI é o auge desse processo iniciado nos anos 1950. Com a globalização, a informação passou a circular em ritmo acelerado. Logo os think tank ultraliberais, que antes precisavam disputar espaço nos jornais e revistas, tomariam conta das rede sociais com páginas próprias. E formando uma geração de jovens acríticos. Mas esse não foi o fator mais importante.
A atomização do sujeito e o individualismo exacerbado criam as condições adequadas para a proliferação do radicalismo. Esse fenômeno já vem sendo alertado há algum tempo por analistas mais sofisticados. Em 2010, portanto seis anos antes da vitória do republicano Donald Trump, o historiador Tony Judt escreveu: “As populações que sofrem com a crescente insegurança econômica e física se refugiarão nos símbolos políticos, recursos legais e barreiras físicas que apenas um Estado territorial pode oferecer”.
Durante muito tempo, o fascismo foi mal compreendido. O “totalitarismo” não advém do suposto agigantamento do Estado. O fascismo é um fenômeno que vem de baixo, das massas. Não é o governo que cresce até se tornar totalitário, mas o movimento que se espalha até tomar as rédeas da política. E isso ocorre no momento em que os homens percebem a sua fraqueza frente às vicissitudes da história.
O atomismo deixa o indivíduo vulnerável ao discurso fascista. A validade dessa afirmativa pode ser observada claramente no caso alemão. Os nazistas receberam um expressivo número de votos dos trabalhadores. Porém, diversas pesquisas têm demonstrado que os operários que haviam ingressado no nacional-socialismo eram justamente aqueles que não estavam sindicalizados e, portanto, mais vulneráveis aos efeitos negativos da crise econômica. Nos locais em que havia organização sindical estruturada, a resistência ao extremismo foi maior.
Outro fato fundamental para a compreensão da dinâmica do fundamentalismo é o que os nazistas chamavam de Lebensraum, ou seja, espaço vital. Essa acepção pode ter dois significados: o “espaço vital” pode ser tanto físico (área necessária para o desenvolvimento de um povo) quanto metafísico (relativo às condições necessárias para a reprodução de uma cultura ou de um modo de vida). A primeira acepção era muito forte no nazismo, por isso a política expansionista do Reich. No caso dos EUA, o segundo sentido também tem mostrado a sua força para impulsionar o fanatismo.
Desde os anos 1980, a fecundidade da população americana está em queda. Essa defasagem está sendo preenchida pela imigração. Em outras palavras, o percentual de brancos na população está caindo. Para os racistas e conservadores, esse fenômeno significa a decadência do país.
A “raça superior”, que desde o pacto do May Flower estava destinada a construir a maior potência mundial, está perdendo o controle para os povos “bárbaros”. Trata-se, portanto, de algo além do mero preconceito, trata-se de uma “luta pela sobrevivência”, de um “espaço vital capaz de preservar uma cultura superior da decadência trazida pelo multiculturalismo”. E claro que tais percepções são aguçadas em momentos de crise.
Esse era o sentido do discurso de campanha de Donald Trump. O republicano dizia que iria fazer a “América grande de novo”. Em vários comícios a palavra “grande” foi substituída por “branca” e o sentido das duas se confundia. Fazer a América grande era fazer a América branca e vice-versa. Era a este fato que os radicais de Charlottesville se referiam quando afirmavam que chegara o momento de cumprir as promessas da campanha.
Considerações Finais
Vou iniciar essas considerações iniciais apontando um erro proposital. O título deste artigo é um engano. Ele foi construído de forma maliciosa para chamar a atenção do leitor. O título correto seria: História da Extrema Direita Americana: da escravidão à escravidão.
Como vimos, o pensamento ultraconservador americano é muito diverso. Porém, há uma linha de coerência entre essas correntes: a defesa de uma sociedade aristocrática. E a raiz desse pensamento está na escravidão.
Paul Krugman concorda com essa hipótese: “uma mensagem chave e que muitos leitores podem achar incômoda, é que o conceito de raça está no âmago do que aconteceu no país em que cresci. O legado da escravidão, o pecado original americano, é a razão de nós sermos a única economia avançada que não garante assistência médica a todos os cidadãos”.
De fato, a mensagem do economista toca e incomoda. O país em que nós crescemos é muito diferente do dele, mas a escravidão também está no âmago da nossa cultura política. Isso ajudaria a explicar o motivo do pensamento ultraliberal ter tido tanta aderência no Brasil e ter provocado tanta fascinação.
Há cem anos, Joaquim Nabuco escreveu: “Não nos basta acabar com a escravidão; é preciso destruir a sua obra”. A estátua do general Lee era uma reminiscência da “obra da escravidão”. Por isso, ela suscitou paixões e ódios. Lutar contra esse passado é uma missão política e ética que precisa ser perseguida por aqueles que querem um mundo mais justo. Tanto lá quanto aqui, tal tarefa permanece inconclusa. Derrubar os monumentos que glorificam um passado bárbaro é uma medida importante, mas sozinha ela não basta. O caminho é longo, mas devemos continuar em frente, a despeito daqueles que recusam-se a aceitar o fim da escravidão.
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Referências
• Pedro Tota – Os Americanos
• ________ – Origens do Bipartidarismo
• Mary Grant – História Concisa dos Estados Unidos da América
• Marcel Novaes – O Grande Experimento
• Jaime Pinsky e Carla Pinsky – História da Cidadania
• A Consciência de um Liberal – Paul Krugman
• Leo Strauss e Joseph Crospsey – História da Filosofia Política
• Leandro Karnal – Estados Unidos da América: das origens ao século XXI
• Roger Osborne – Nova História da Democracia
• Erik S Reinert – Como os países ricos ficaram ricos e por que os pobres continuam pobres
• James West – Uma Breve História dos Estados Unidos
• John Keane – Democracia: vida e morte
• V.G Kiernan – Estados Unidos: o novo imperialismo
• Martin Diamond – The Federalist
• Aurora Bosh – História de Estados Unidos
• David Harvey – O Neoliberalismo: história e implicações
• Michael Mann – O Império da Incoerência
• Álvaro Bianchi – Bluckley Jr, Kirk e o renascimento do conservadorismo americano
• Reinaldo Moraes – A organização de células conservadoras de agitrop: o fator subjetivo da contra revolução
• Camila Rocha – Direitas em rede: think tanks de direita na América Latina.
• Jaime e Carla Pinsky – Faces do Fanatismo
• Maria Luiza Carbeiro – Ku Klux Klan: a seita da supremacia branca