Em livro lançado na França, Jacques Rancière faz diagnóstico preciso da atualidade

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“O raciocínio desmascara a retórica dos que proclamam as vantagens do neoliberalismo como remédio contra a corrupção (como se não tivessem o exemplo recente de uma crise mundial provocada pela voracidade de bancos e mercados desregulados), quando no fundo apenas combatem a igualdade. Não é o Estado, mas o Estado de direito que mais os incomoda”, escreve Bernardo de Carvalho, romancista, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 03-09-2017. Eis o artigo:

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Em que Tempo Vivemos? (“En quel temps vivons-nous?”, ed. La Fabrique) é o título de uma plaqueta publicada na França, com uma conversa entre o editor Eric Hazan e o filósofo Jacques Rancière . É um diagnóstico da atualidade.

Autor de um pensamento político original e sem concessões, Rancière revisita algumas de suas ideias fundamentais, como a diferença entre democracia e sistema representativo e a constituição de povo. Para o leitor brasileiro, a ironia é afinal poder se sentir parte do presente graças ao nosso atraso e ao nosso embrutecimento, pela sintonia com o que há de pior no mundo.

É claro que há uma brutalidade que é só nossa. No que diz respeito ao sistema representativo, por exemplo, ou mesmo judiciário, lidamos hoje no Brasil com figuras inconcebíveis na maior parte dos países considerados Estados de direito, mesmo aqueles em franca depressão democrática. É como se seguíssemos o roteiro de um filme ruim sobre o mundo dominado pelas forças das trevas.

“A democracia não é a escolha dos representantes; ela é o poder daqueles que não estão qualificados para exercer o poder”

A perplexidade diante do inconcebível exige esforço redobrado de pensamento para evitar a paralisia. Contrariando o discurso dominante, Rancière insiste em distinguir democracia e sistema representativo, o que talvez nos ajude a imaginar formas alternativas e mais eficazes para reagir ao pesadelo do impasse político brasileiro. “A democracia não é a escolha dos representantes; ela é o poder daqueles que não estão qualificados para exercer o poder.”

O fato de o sistema representativo em geral representar cada vez menos (ser cada vez mais oligárquico, reproduzindo desigualdade e injustiça crescentes, mesmo em democracias mais antigas e bem mais sólidas do que a nossa) não quer dizer que ele esteja em decadência ou moribundo, como alguns gostariam, apoiados na tese cômoda de que o capitalismo cairá de podre.

“É preciso acabar com a velha ideia marxista de que o mundo da dominação engendra a sua própria destruição. […] As instituições não são seres vivos: elas não morrem de suas doenças. Esse sistema encontra meios de lidar com as anomalias e os monstros que ele produz. Ele faz da sua própria mediocridade um princípio de resignação a sua necessidade”, esclarece o filósofo.

Se esse sistema segue firme e forte a despeito dos desmandos e dos abusos mais ou menos descarados (Rancière está falando da França, não do Brasil), é porque já não existe “povo” como sujeito político, com uma identidade, uma memória e objetivos comuns a favor dos quais lutar e resistir. E onde não há um poder democrático forte, autônomo e independente do sistema representativo, passa a imperar a lógica hierárquica dos “profissionais do poder”: “Hoje, essa ciência de reprodução das oligarquias governamentais se encontra identificada com o saber da produção da riqueza comum, ou seja, com a ciência econômica dominante. […] Os poderes econômico e do Estado estão entrelaçados como nunca antes”.

O raciocínio desmascara a retórica dos que proclamam as vantagens do neoliberalismo como remédio contra a corrupção (como se não tivessem o exemplo recente de uma crise mundial provocada pela voracidade de bancos e mercados desregulados), quando no fundo apenas combatem a igualdade. Não é o Estado, mas o Estado de direito que mais os incomoda.

Por outro lado, a ausência de um sujeito social, com uma identidade política comum, ao qual ainda seria possível dar o nome de “povo” é o que leva o chamado “populismo de esquerda” a reforçar, contraditoriamente, o jogo da desigualdade representativa, identificando a ideia de povo explorado e desprezado pelas elites a um dirigente que o encarna (Rancière está pensando em Maduro).

O capitalismo hoje não é uma fortaleza contra a qual investimos, é o ar que respiramos. “Mais que um poder, o capitalismo se tornou o mundo no qual vivemos.” Daí a urgência de repensar noções de estratégia e de resistência

“O problema já não é opor um grupo a outro, mas um mundo a outro: o mundo da igualdade ao mundo da desigualdade. […] O problema já não é tentar avançar mais, mas antes ir na contracorrente do movimento dominante. Já não temos a voz de um movimento, temos vozes singulares.”

O capitalismo hoje não é uma fortaleza contra a qual investimos, é o ar que respiramos. “Mais que um poder, o capitalismo se tornou o mundo no qual vivemos.” Daí a urgência de repensar noções de estratégia e de resistência.

Rancière as identifica às dissonâncias capazes de nos emancipar dos consensos e das formas dominantes: “A emancipação, ontem como hoje, é um jeito de viver no mundo do inimigo, na posição ambígua de quem combate a ordem dominante mas também é capaz de construir nela lugares onde pode escapar a sua lei” e à impostura da mediocridade justificada como necessidade.

 

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