Racismo à portuguesa: As várias faces do activismo negro

Estamos num momento histórico do activismo anti-racista? Da violência policial à educação, do feminismo aos media, eis a diversidade do movimento. Penúltimo capítulo da série Racismo à Portuguesa.

Por Joana Gorjão Henriques, no Público

Em Dezembro, 22 associações uniram-se na plataforma Afrodescendentes Portugal para enviar uma carta ao Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. Objectivo: criticar o Estado por não reconhecer que são necessárias políticas específicas para estas comunidades e por fazer “um silenciamento político do racismo”. Sublinhavam a necessidade de recolha de dados étnico-raciais para conhecer a dimensão das desigualdades no país, como a própria ONU recomenda há anos.

Nove meses depois, à saída de uma reunião com vários dirigentes associativos que reiteraram estas reivindicações, o ministro adjunto Eduardo Cabrita afirmou ao PÚBLICO que iria trabalhar com o INE para incluir uma pergunta optativa no Censos 2021 sobre a composição étnico-racial da população. Disse que o Governo estava empenhado em desenhar políticas públicas sectoriais para cada grupo étnico-racial, em conjunto com as associações.

Racismo à Portuguesa

Há quem, diga por isso, que estamos num período de renovação e fortalecimento do movimento anti-racista em Portugal. A história, porém, começa em finais de 1980, e tem como ponto alto a mobilização em torno da morte de Alcino Monteiro pela extrema-direita em 1995. O activismo é feito de rostos e de agendas diversas, alguns em nome colectivo, outros em nome próprio. Estes são apenas alguns exemplos do seu vigor e diversidade.

Grupo de Teatro do Oprimido e Consciência Negra

Quem é português?

Na hora de escolher um nome para a sua filha, o que é permitido? Que nomes a lei proíbe? Isaíra não, mas Jacqueline sim. Jailson não. Mas James sim. Anabela Rodrigues, 40 anos, vice-presidente do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO), que existe desde 2002, tem sede no Cais do Sodré, em Lisboa, dirige vários espectáculos que colocam no debate questões ligadas ao racismo. Tem um espectáculo sobre os nomes. “O nome define e coloca-nos em determinado lugar. A criança ainda é recém-nascida e os pais são logo confrontados com a questão se é estrangeiro.”

É esta dinâmica que o GTO põe em palco, fazendo o espectador reflectir sobre a maneira como o sistema funciona. No fundo, aliam arte e política. “Não somos apenas entretenimento e isso permite abordar temas que são conflituosos, percebendo que questões como o nome podem ser racistas porque perpetuam uma determinada cultura e uma forma de viver que começa desde que se nasce.”

O GTO tem vários espectáculos, um deles sobre a lei da nacionalidade, que mudou em 1981 e não permite automaticamente a quem nasce em Portugal ser português, tendo assim criado uma geração de imigrantes portugueses a viver em Portugal.

Apesar de ter vindo a sofrer várias alterações, a lei foge ao cerne da questão, diz: “Quem nasce em Portugal devia ser português, ponto final.” Quando mudou em 1981, a “ameaça” era da imigração africana, nota. Ao privilegiar o sangue, está a perpetuar uma mentalidade colonialista, refere. “A mim perguntam se sou portuguesa. Só é considerado português quem tem determinadas características e a lei respeita essas características.”

Também sobre a lei da nacionalidade, com as mesmas reivindicações, tem trabalhado o grupo Consciência Negra, que nasceu da militância de estudantes-trabalhadores não-brancos. Promoveram debates com “as pessoas que são vítimas de racismo institucional”, diz um dos membros, Yussef. Mais recentemente a face mais visível do seu trabalho foi a dinamização da campanha e petição Por outra Lei da Nacionalidade.

Yolanda Tati

O humor é uma arma

Quem já viu os seus vídeos sabe que começam assim: “Hey friendz.” Yolanda Tati, 25 anos, tem um canal no Youtube onde fala de maquilhagem mas também de racismo, do que é ser negra em Portugal, de preconceitos. Nos vídeos Kit para ser negra em Portugal ou Três mitos sobre negras que têm de acabar já usa o humor para desconstruir clichés sobre as mulheres negras. Em Os negros são os mais racistas revê a escravatura e a hierarquização racial e dá uma aula sobre o equívoco do “racismo reverso”.

A engenheira civil e de petróleo, dona de uma guest house em Lisboa diz que faz um “activismo ninja”. “Quando falo de racismo falo também em auto-estima, em prestar atenção às singularidades e diferenças. O racismo e a xenofobia não é só dizer ‘sai daqui preto’. Nota-se quando não se vê representatividade ou proporcionalidade na sociedade portuguesa.” Recorrendo ao humor, explica que pega no absurdo “actuando e narrando” as histórias na “pele de mulher negra”.

Com milhares de seguidores em Portugal, Angola e Brasil, tem “um clã que dá regularmente “feedback”. Quer mudar “a ideia de que a mulher negra é empregada ou promíscua e está constantemente disponível ou é agressiva e inacessível”, afirma. “E não é por aparecer uma mulher negra numa novela que ficamos contentes, isso não é proporcionalidade”, diz. O objectivo é dar a conhecer às pessoas que estas mulheres pertencem “a diversas camadas da sociedade” — “Temos diferentes credos, temos interesses, gostamos de ler e não ouvimos só quizomba ou kuduro.”

Neste momento tem, além do canal no Youtube, um programa na Rádio Cidade.

Plataforma Gueto

Activismo tem um preço

Não é igual fazer activismo no centro de Lisboa ou na periferia. Ser activista em bairros como a Cova da Moura (Amadora) tem um preço, diz Flávio Almada, 34 anos, tradutor, um dos membros da Plataforma Gueto, criada em 2005. “A tua vida vai estar em risco nos espaços em que a única face do Estado que aparece é a polícia.”

Na Plataforma, com núcleos em cidades nacionais e internacionais (Berlim ou Londres, por exemplo), há uma preocupação com a violência policial, por isso divulgaram um Manual de Sobrevivência: como te defenderes da violência policial, que explica direitos e deveres.

Há cerca de quatro anos que desenvolvem um programa de formação política na zona da grande Lisboa, baseado na ideia de educação popular, ao qual chamam de “universidades”. Jakilson Pereira, 32 anos, formado em Educação Social, justifica: na escola “há um branqueamento e silenciamento dos negros como pensadores” e “isso tem reflexo nas crianças”.

Os dois são cautelosos sobre o aparecimento de novos grupos. Jakilson Pereira considera que há “potencial para crescer”, mas diz: “O meu medo é que haja uma apropriação partidária.”

Como se resolve o racismo? Primeiro é preciso assumir que há um problema, afirma Flávio Almada, mas o discurso oficial “é de avestruz”. E sublinha: “Existe responsabilidade quando se age e quando não se age. Transformam esta questão numa questão que apenas afecta a população negra: não, afecta a sociedade toda.” Jakilson Pereira sintetiza: “Envolvo-me em lutas para retirar obstáculos da vida de negros em Portugal.”

Fazendo uma crítica a todos os espectros políticos, Flávio Almada desafia: “Quero é ver a esquerda a fazer campanha anti-racista junto dos jovens que estão a entrar nos partidos de extrema-direita.”

Associação Afrolis

Mais representatividade nos media

Sentia falta de ver mais negros portugueses nos media, de ter histórias de afrodescendentes na primeira pessoa. Por isso a jornalista Carla Fernandes, 37 anos, tradutora, criou a Radio Afrolis em 2014. “O português negro não faz parte da norma e somos arrumados em caixas que ainda nos põem em caixas mais pequenas”, diz a jornalista, que trabalhou na rádio Deutsche Welle.

Com as centenas de entrevistas que já fez foi percebendo a importância de falar de portugueses negros, separando-os da categoria de imigrantes. “A Afrolis veio dar um discurso à experiência de ser negro a viver em Lisboa. As vozes foram-se organizando.”

Todas as entrevistas relatam situações muito diferentes, mas “a experiência de exclusão” é comum. “Vamos a sítios onde entram duas pessoas negras e ficam a olhar. Por isso, depois quisemos fazer o Djidiu – encontros de poetas — em Lisboa onde ditávamos a agenda.”

A Afrolis tornou-se associação activista, criou o espaço para as pessoas sentirem que “existem”, permitindo posicionarem-se sem terem que estar sozinhas, diz.

Carla Fernandes analisa o aparecimento de novos grupos: estamos na Década dos Afrodescendentes, declarada em 2014, há as redes sociais que ajudam a espalhar a palavra e existe “o efeito contágio”. No conjunto, estes grupos “reflectem mais especificidades sobre o que é ser negro: temos movimentos ligados ao feminismo, LGBT, mais culturais, mais virados para a política”, observa. “Nota-se uma complexidade e uma profundidade: nós não somos personagens-tipo de uma história.”

Femafro

A diversidade do feminismo

Há mais de um ano que nasceu a Femafro, a primeira associação de feministas negras, criada por Raquel Rodrigues, Joana Sales e Dary Carvalho. Nasceu primeiro através do Facebook e depois com encontros — o primeiro foi a 30 de Abril de 2016 em Lisboa e tiveram uma enorme adesão.

Têm feito acções de sensibilização nas escolas sobre igualdade de género e sobre discriminação racial porque “dentro do género há várias formas de ser mulher e no movimento feminista a mulher dominante é branca, de classe média e média-alta”, explica Raquel mestranda em Estudos de Desenvolvimento, 32 anos. “Falamos de mulheres negras, ciganas, intersexo. E aí aparece a interseccionalidade — são realidades distintas.”

Passado um ano, algumas das constatações a que chegaram foi que existem vários tipos de feminismo negro e que elas não podem ter “a ambição de representar toda a gente”, nem cair no erro de “englobar tudo no mesmo saco”. A Femafro tem pessoas de direita e de esquerda, religiosas e não religiosas, casadas com filhos e mulheres sem filhos que não querem casar-se. “É bom que assim seja, que se perceba que a população negra não é homogénea.”

Incluem mulheres de origens muito diferentes: basta pensar que podem ser portuguesas ou imigrantes de países como o Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e outros. “Estamos a descobrir essa diversidade. Temos consciência de que sermos mulheres e negras é a nossa condição social no espaço laboral, académico.”

Costumam ouvir como exemplo positivo a referência à ministra da Justiça, Francisca Van Dunem: “Ficamos muito contentes e é muito importante para nós porque é uma questão de identidade. Mas é pouco porque não nos vemos em mais lado nenhum. E não vemos porque as mulheres negras estão em três ou quatro empregos, ou estão a trabalhar sem contratos.”

Lolo Arziki

Tirar da invisibilidade ser negra e lésbica

Aos 25 anos, Lolo Arziki, realizadora, tem ido a vários fóruns debater o que é ser negra e ser lésbica. É autora do vídeo performance Relatos de Uma Rapariga Nada Púdica, onde fala da sua experiência com o objectivo de tirar da invisibilidade questões pelas quais muitas outras pessoas passam. “Não tinha a intenção de ser activista”, confessa. Mas várias coisas confluíram para aí. Estudou três anos cinema, na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes, e em momento algum passou pelo cinema africano. “Isso incomodou-me imenso.” Agora leva também o seu activismo para as aulas de mestrado em Estética e Estudos Artísticos na Universidade Nova de Lisboa.

Os desafios em Portugal são imensos, por vezes “há um sentimento de não-lugar”, diz. “Chegou a um ponto em que tinha que me deixar de preocupar com ser mulher lésbica para me preocupar com ser mulher africana, imigrante”, confessa. Resume: “Durante muito tempo nós, negros, tivemos medo de falar. De falar e de estar errado, de ser apontado, de apanhar. Temos medo de nos ver porque aprendemos que a nossa aparência física é feia. É como se o cinema me retribuísse a humanidade, é uma arma poderosa para mudar. Tenho muito cuidado pois tenho noção do quanto ajudou a construir estereótipos.”

Ana Tica

Pensar em colectivo

Membro de grupos como a Roda das Pretas (RP), criado em 2016 para discutir temas sobre feminismo, ou da Plataforma Gueto, Ana Tica refere que é importante “estar em colectivo” e perceber que há outras pessoas disponíveis para pensar em soluções. Também co-realizou um filme sobre jovens afrodescendentes na periferia de Lisboa, Nôs Terra, onde aborda várias questões sobre a identidade e desigualdades raciais. Recentemente começou a interessar-se pelo feminismo e a participar na RP, grupo informal que não tem encontros fixos, vai-se vendo conforme a agenda.

Para Ana Tica, ser activista resultou da experiência de vida. “Nasci portuguesa e ao longo da minha vida fui-me descobrindo negra.” Formada em Animação Sócio-Cultural, ligou-se à área social em bairros onde havia necessidade de trabalhar a favor da qualidade de vida das comunidades. “Sinto que há muita gente a fazer coisas em diferentes áreas e juntar essas experiências torna-nos mais fortes. Dá-nos poder para ouvirem a nossa voz.

Djass — Associação de Afrodescendentes

Ter protagonistas políticos

Em 2016, os irmãos Dias, três mulheres e um homem, decidiram passar as discussões sobre racismo que tinham à mesa para a esfera pública. Criaram, com outros membros, a Djass — Associação de Afrodescendentes. Beatriz Dias, 46 anos, professora de Biologia, tem sido a porta-voz.

Além da reflexão sobre o que é ser negro em Portugal querem discutir “de forma mais explícita o racismo”. Um dos temas que tem em cima da mesa é a necessidade de ser anti-racista, ou seja, “ser activamente promotor de igualdade”. Defende “que o racismo não pode ser analisado numa única dimensão”, e não se explica apenas com “a classe social”. Beatriz Dias, que cresceu no centro e Lisboa e numa família de classe média, conta uma história para ilustrá-lo: estava a passar na Praça da Figueira com uma amiga branca e uma sem-abrigo pediu-lhe uma moeda. Beatriz Dias disse que não tinha. “Ela imediatamente começa a insultar-me, a chamar-me ‘preta, vai para a tua terra’”, conta. “Mostra claramente que ela usou o seu privilégio branco para me insultar, diminuir, subalternizar. Apesar de as classes sociais estarem bem definidas, sentiu-se superior porque eu sou negra e ela é branca.”

Membro da comissão política do Bloco de Esquerda, confessa: “Reivindico uma maior representação nas listas do meu partido e nas medidas que propõe. Embora a esquerda tenha tido uma intervenção anti-racista, isso não se traduz plenamente em medidas concretas. Ter negros nas listas vai permitir ampliar o debate em torno da negritude e do racismo, assim como ter mulheres também permite ampliar o debate sobre as questões de género.” Neste momento, nenhum partido de esquerda tem um deputado negro na Assembleia da República.

Nu Sta Djunto

Solidariedade em rede

Estamos juntos. É a tradução para português do grupo que Mário Monteiro dinamiza e que é “uma alternativa para as pessoas se sustentarem sem dependerem de instituições”. Começou por apoiar cidadãos que têm necessidade, mas que por não terem autorização de residência não podiam ser apoiadas formalmente. No Nu Sta Djunto existe entreajuda: e pode ir de alimentos ou de ajuda na pintura da casa.

Mário Monteiro trabalha com vários bairros e com doentes que vêm de países africanos e ficam hospedados em pensões em Lisboa. Funciona em rede: “Se alguém tem alguma coisa para dar fazemos as coisas chegar a quem precisa: quem dá e quem recebe tem uma ligação, porque é uma das formas de quebrar o preconceito.”

No total, apoiam mais de 200 famílias, em mais de 15 bairros sociais na Área Metropolitana de Lisboa. Contam com a ajuda de uns dez voluntários fixos por bairro. Fazem recolha de alimentos mas não querem ser comparados ao Banco Alimentar, mas “era bom porque isso permitiria angariar” muito mais fundos.

Organizam concertos, por exemplo, recolhem fundos: e cada um contribui com o que pode. Mário Monteiro, que trabalha de noite numa empresa de retalho e de dia se dedica ao Nu Sta Junto, conta que costumavam participar em debates, chamar a atenção “para os buracos” da sociedade como a desigualdade e o racismo. “Chegou a uma altura em que pensei: não será melhor ir tapar os buracos? Convoquei amigos. O mais importante é a causa. Não queremos alimentar divisões, queremos fazer uma coisa na horizontal.”

No mínimo, percorre uns 70 quilómetros por dia “para desbloquear várias necessidades”. “Não sou nenhum herói, tenho é a sorte de conhecer pessoas que querem ajudar.”

Tabacaria Tropical

Trabalhar em comunidade

É uma casa e Vítor Sanches, 38 anos, fez parte dela, a Tabacaria Tropical, espaço multidisciplinar onde se vendem livros, pastilhas elásticas e se organizam debates. Não tem alvará porque o bairro da Cova da Moura é ilegal — embora ele seja obrigado a pagar taxas e Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI). Nascido na Cova da Moura, Vítor viveu anos em Londres mas sentia falta das conversas, de falar crioulo, de ver os putos a brincar. Quis criar um lugar que oferecesse serviços úteis à comunidade — e recebê-la com amor.

Depois decidiu criar ainda a Bazofo, a marca de roupa street wear para a qual mobiliza uma série de pessoas do bairro: costureiros, criadores das etiquetas, designers. Com uma paixão por t-shirts, decidiu usar a palavra “bazofo” como marca porque “significa resistência, estar sempre bem vestido, representa uma certa auto-estima e é uma celebração cultural”. Cada t-shirt tem um nome relacionado com o bairro, ou seja uma história. O material é sustentável, biológico e reciclável. Com elas leva a Cova da Moura a espaços como feiras e bazares no centro de Lisboa.

A Bazofo e a Tabacaria são “activismo”, afirma, permitem desconstruir o pensamento sobre “os bairros”. O simples acto de abrir as portas neste lugar e de promover o comércio local já é activismo. De qualquer forma, diz Vitor Sanches, quem vive na Cova Moura “nasce activista”.

Nina Vigon Manso

Em nome próprio

Uma das frases que Nina Vigon Manso ouviu ao longo da vida sobre ataques racistas foi: “Não ligues, é o hábito.” A activista e cientista social questiona: “Qual hábito? Chamam-se micro-agressões.”

Mais do que em grupo, Nina Vigon Manso é uma activista anti-racista em nome próprio. Passou por vários desafios, na escola e no mercado de trabalho, até porque nasceu no centro de Lisboa, onde fez o seu percurso, e muitas vezes era a única negra nos espaços. Assim se foi habituando a combater sozinha. “Não cheguei a um ponto em que disse ‘não me associo’ a um grupo. Sem dar por isso, se decidirmos que vamos dar luta, ao mesmo tempo que resolvemos as situações, vamos ganhando competências. E, do nada, uma pessoa torna-se activista.” É que “a partir do momento em que fecham a porta da escola e não posso ir às aulas porque tenho piolhos, acende-se uma luz dentro de mim”, explica. “As outras pessoas têm alternativa [a ser activistas]. Eu não.”

A ideia que a colonização foi branda e a despolitização do racismo, alimentadas por “narrativas românticas”, diz, fizeram com que o racismo se tenha tornado um tabu em Portugal. Exemplifica: “As pessoas fazem questão de visitar locais em que aconteceram crimes do Holocausto. Porque não fazem o mesmo relativamente à escravatura, porque não há o mesmo género de sensibilização?”

Vanessa Fernandes

Cinema comprometido

Realizadora, a viver no Porto, Vanessa Fernandes, 39 anos, não faz parte de um grupo específico, mas a sua obra tem um lado activista. A curta-metragem Mikambaru, sobre as relações familiares de um homem branco e de uma mulher negra, aborda justamente o racismo.

Formada em Som e Imagem na Universidade Católica do Porto, nascida em Bissau, cresceu em Macau e chegou a Portugal aos 19 anos. Um dia, numa festa popular em Guimarães, separou-se do grupo de amigos com quem estava; juntaram-se uns jovens que começaram a persegui-la e a chamar-lhe “dos piores insultos”. Ficou assustada. “Fui sugada energeticamente e dali para a frente deixou-me a pensar bastante.”

Nos anos mais acentuados da crise económica em Portugal, sentiu agressividade na rua, ouvindo de “preta vai para a tua terra”. Até saber que a mãe tinha recebido uma carta com uma cruz suástica e vários insultos no correio — e teve medo. No Porto houve quem a tivesse questionado sobre a razão de fazer um filme sobre racismo se “esse não era um problema em Portugal”.

Mas a Internet trouxe a possibilidade de aceder a informação que já não é exclusivamente controlada pelos media tradicionais, afirma. Tomar consciência “é fundamental”.

SOS Racismo

O debate vai crescer

Nenhum partido político “assumiu o risco” de ter um candidato negro cabeça de lista numa eleição. Até lá, “vamos levar tempo a derrubar barreiras”, diz Mamadou Ba, desde 1998 activista na SOS Racismo.

A SOS tem como prioridades intervir do ponto de vista político, desconstruir o racismo ou promover a interculturalidade. Vem insistindo numa lei de combate ao racismo que o criminalize e na criação de políticas públicas direccionadas para o combate às desigualdades raciais. “Precisamos de um Estado que queira conhecer a realidade do racismo e as suas formas de expressão”, analisa Mamadou Ba, que é a favor da criação de quotas em várias áreas da sociedade, da educação à administração pública. É necessário “que a diversidade se reflicta em vários espaços para que, quem está à margem, possa ter direito à palavra e direito a decidir”.

Como a primeira associação anti-racista em Portugal, a SOS Racismo, com sede em Lisboa e com núcleos no Porto, Coimbra, Braga e Portimão, criada em 1990, já assistiu a vários momentos no activismo. Agora, “parece que estamos em refundação”, diz Mamadou Ba, tradutor. É um “momento histórico”, afirma.

Há uns quatro anos que vê nascer novos grupos, marcadamente mais afirmativos na identidade racial e “na disputa pelo agendamento” das suas questões. “O que os distingue é serem muito mais heterogéneos e terem uma maior capacidade de influência”, analisa. Esta é uma geração que tem na agenda a criação de legislação favorável a uma maior igualdade, mas que também “traz o confronto político e ideológico sobre a sua própria condição”, considera. “O debate vai crescer e ganhar intensidade. O nível de confronto político vai ser muito mais exigente, ninguém se basta com migalhas e promessas.”

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Série racismo à portuguesa

A série Racismo à Portuguesa é um trabalho sobre como se manifestam as desigualdades raciais em Portugal em diversas áreas, da habitação, ao emprego ou à educação.

Falámos com procuradores, advogados, professores, activistas, investigadores, artistas. Analisámos estatísticas, recolhemos testemunhos de quem se sente vítima de diversas formas de racismo, cerca de 50 pessoas de várias classes sociais. Encerramos com uma reflexão sobre as marcas do colonialismo em Portugal.

Esta é, assim, a quarta parte da série Racismo em Português com reportagens sobre o colonialismo em África. Centra-se, por isso, no racismo contra os negros.

 

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