Boulos tem razão quando diz que todo o sistema político pós-ditadura faliu. Mas falta dizer que não foi apenas por culpa dos “golpistas”…
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel* – Outras Palavras
No dia 6 de setembro, o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz publicou no seu site o texto da palestra que dois dias antes o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, havia pronunciado nessa instituição.
Boulos tornou-se, com justiça, uma figura proeminente no debate político brasileiro atual, não apenas como ativista, mas também como formulador (ou, ao menos, sintetizador) de discurso, pontuando possibilidades alternativas, na perspectiva das esquerdas, à discursividade hegemônica do progressismo lulista.
Nesse sentido, o presente artigo visa expressar uma certa inquietação sobre a efetiva alternativa que as proposições políticas de Boulos pretendem anunciar, e se os recursos discursivos de que ele lança mão, a partir do texto publicado, não se circunscreveriam ainda a velhos estratagemas discursivos da esquerda, inclusive aquela da qual ele parece querer se distanciar.
Não se trata aqui de reivindicar um pensamento ainda mais “radical” ou “revolucionário”, como gostam de se posicionar os alinhados às correntes trotskistas. Trata-se apenas de um esforço por tentar desvelar os marcos da lógica simbólica que pauta boa parte da percepção progressista corrente da política e da governança nos últimos vinte anos no Brasil, e, com isso, ponderar alguns elementos, talvez ainda não muito explicitados, para o que seria um reposicionamento de uma perspectiva de esquerda, tal como insta Boulos, diante da “crise da representação”.
Boulos busca descrever e caracterizar a conjuntura mais recente dessa crise, um fenômeno, na verdade, que já havia saltado aos olhos dos cientistas sociais a partir dos eventos de junho de 2013. No entanto, é possível objetar que o achatamento da percepção do fenômeno (ou sua ênfase decidida) ao quadro político posterior à manobra institucional que afastou a presidente Dilma Rousseff, retira-lhe a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento e, com ela, também, a da possibilidade da especificação mais precisa de uma perspectiva progressista, diante de uma perspectiva conservadora.
A construção da narrativa de Boulos a propósito da “crise de representação” e das forças políticas em confronto parece, irremediavelmente, recorrer à imagem de uns quantos demônios, para, sob uma vertigem infernal, pintada sobre o tropo da “derrota da esquerda”, pretender, por contraste, bafejar a possível miragem dos anjos: a saída “pela esquerda”. E se não for bem assim? E se os elementos em jogo na simbologia política forem mais complexos que as clivagens que ele opera?
O diagnóstico de Boulos de que o “governo golpista” desmontou rapidamente três pactos nacionais (o pacto trabalhista do getulismo; o pacto assim chamado “cidadão” da Constituição de 88; e o pacto lulista das “oportunidades”, o da transformação de cidadãos em consumidores) seria de fato verdade? E o que aqui se questiona não é tanto a substância do desmonte (ela parece razoavelmente evidente), mas sim a substantivação do seu sujeito sob a forma de “governo golpista”. Também não se trata de questionar se houve ou não golpe. A questão está na delimitação do “governo” como sujeito suficiente e (valha a redundância) delimitável, mais que apenas retórico, da ação política.
O primeiro indício evidente de que as coisas não funcionam de acordo com as reduções da narrativa do Boulos é de que não foi meramente um governo de turno, e ainda por cima espúrio, que conquistou a acachapante maioria parlamentar para aprovar uma emenda à Constituição que impôs a “obrigatoriedade de uma política de austeridade por vinte anos” (expressão de Boulos). Foi toda uma força política. Ninguém conquista mais de dois terços do Congresso senão como poderosa força política. E pouco importa seu modus operandi, mas sim a constatação de que, como força política agregadora, qualquer que seja sua lógica, ela foi efetiva. Menosprezar essa força política, a pretexto de demonizar um governo (que já está mais para espantalho ou cachorro morto), é o primeiro dos erros estratégicos capitais de uma esquerda que não se queira ingênua. Porque “força política” não é uma corriola; é um dispositivo que visa, antes de mais nada, conquistar legitimidade de mando.
Para desmontar aquela redução explicativa do Boulos, bastaria lançar mão de um contrafactual hipotético: e se fosse a esquerda que “impusesse” uma emenda constitucional que fizesse baixar algum paraíso socialista sobre a terra? Seria isso um “golpe” sobre os “pactos nacionais”? Seria isso um novo pacto sagrado, lido como “avanço”, conforme a teologia do “progresso social”? Ou seria isso apenas política, suscetível à permanente luta por conquista de legitimidade simbólica e construção de hegemonia discursiva?
Quer dizer então que, lido tudo sob o espectro do golpismo, os mecanismos legislativos formais do jogo democrático, quando não contemplam os meus interesses são irremediavelmente espúrios?… Para que democracia então, se a percepção política pode ser reduzida a um exercício narcísico? Esse parece ser um velho vício entranhado no modo de pensar das esquerdas, desde que abraçaram a teologia do progresso social.
Em termos mais genéricos, a democracia supõe dispor a presença do Outro numa mesma arena regulada de decisões sobre a vida comum, onde, como regra elementar, ficam afastadas tanto a sumária eliminação do Outro quanto a instrumentalização formal do próprio mecanismo (a democracia) para, tão apenas, clausurar aquela arena.
Sim, é verdade, o comportamento político das nossas castas senhoriais, no seu aspecto lógico, sempre apontou para esses dois termos da negação elementar da democracia. A racionalidade de fins das castas senhoriais brasileiras jamais pensou a política sob a forma democrática. A racionalidade de meios, desde que se preste apenas à enunciação retórica, talvez. A bem da constatação histórica, é preciso dizer que as castas senhoriais brasileiras sempre pensaram a política sob a forma da subjugação “do resto”, qual seja, ou o autoritarismo em último termo ou a guerra sem quartel contra eventuais insurretos à sua ordem. Esse é um quadro cultural característico das sociedades ordenadas pela lógica do privilégio, cerne cosmológico, por exemplo, da sociabilidade política ibero-americana há mais de cinco séculos.
Não se trata de buscar alguma explicação classista sobre a reprodução do capital, tampouco de empacotar magicamente sob a fórmula da “conciliação de classes” as “contradições do lulismo”. É a lógica do privilégio que por estas plagas continua estruturando e dando estofo semântico ao regime de poder; é a ela que se subordina a “reprodução do capital” (e não o contrário), por meio de dispositivos como o patrimonialismo (cf. Raymundo Faoro e Simon Schwartzman), a articulação entre vida privada e organização nacional (cf. Nestor Duarte), ou uma ontologia política da desigualdade, fundada exemplarmente sobre o coronelismo, a enxada e o voto (cf. Victor Nunes Leal).
A grande ameaça simbólica do cinismo sinuoso (alguns o chamam de pragmática) da política das castas senhoriais, hoje plenamente no poder, é a de praticar um golpe de Estado de fato para, em seguida, fazer valer os mesmos mecanismos constitucionais que elas rasgaram meia hora antes. Não é que tudo seja golpe! E aí está o segredo do neogolpismo ― esse, operado por via parlamentar, jurídica e midiática.
A questão chave, portanto, é a de não se render narcisicamente às armadilhas daquele cinismo sinuoso. Fazê-lo, corresponderia a instrumentalizar a democracia de forma igualmente farsesca: “a emenda constitucional deles, aprovada por mais de dois terços do Congresso, só pode ser filha de um golpe”. Tirada a ideia do contexto do Boulos, ela caberia muito bem na boca de um Aécio Neves, por exemplo. Afinal, não foi, por analogia, fundamentalmente isso o que ele disse tão logo encerradas as eleições? O único refúgio que restará às vítimas incautas das armadilhas instrumentalizantes da democracia será o de um moralismo ingênuo da ação política (não importa seu pretexto), cujo termo e encerro discursivo não é outro que o do maniqueísmo.
A política não é necessariamente redutível à luta do Bem (meus interesses) contra o Mal (os interesses dos outros), regida por alguma Razão Transcendente que justifique que o Bem está sempre do meu lado. Isso, além de miopia unilateral (porque despreza a objetividade de sair do lugar egocêntrico do Eu político-desejante), é apenas miragem messiânica. Quem não tem medo do relativismo cultural e da imensidão da história sabe que a justiça social pode ser tão legítima quanto qualquer dominação fascista, autocrática ou o que seja, de mussolinis, czares ou faraós. A diferença está na conquista da legitimidade que sustenta a regulação societária. Não, não é a economia, estúpido! São os “valores” ― o que inclui aqueles pelos quais a “economia” é percebida (e concebida). Valores que não são sempre e necessariamente atávicos; e faz exatamente um século que isso foi demonstrado de forma bastante contundente ― “revolucionária”, como então se dizia.
Em termos sintéticos, não foi um “governo golpista” que derrotou a esquerda por meio de mera artimanha procedimental, e, por consequência lógica, está levando a cabo o desmonte da regulação social preexistente. Talvez nunca seja demais lembrar que quem elegeu esse Congresso (que derrubou o executivo Dilma e “impôs” vinte anos de austeridade neoliberal) foi o “povo”. Povo domesticado, politicamente lobotomizado, posto diante de um sistema eleitoral que privilegia a máquina do marketing? Provavelmente. Mas… e o que precedeu esse Congresso eleito? Não foi uma década de um governo pretensamente reformista que, afinal de contas, reformou o quê, para cair de podre dessa forma tão melancólica e acachapante, diante de um Congresso ― reitere-se ― eleito? Qual foi o conteúdo de relações (simbólicas e institucionais) com o qual, no fim das contas, o Partido dos Trabalhadores tratou a “política”?
Se quisermos ir ao coração da “derrota”, temos que colocar a equação em outros termos que não os de reduções maniqueístas como aquelas nas quais incorre o companheiro Boulos. Aliás, perdoe-se-me a redundância, porque todo maniqueísmo é reducionista.
E se alguém quer realmente entender a apatia política que dá lastro ao desmonte pacífico de presumidos “pactos históricos” (seriam eles da ordem mineral da imutabilidade?), terá também que abrir mão dos maniqueísmos pétreos, para poder explorar o espaço mais complexo das mediações discursivas e da conquista dos terrenos simbólicos ― terrenos que a própria “esquerda” abandonou… ou entregou ao inimigo por meio de suas próprias políticas. Até mesmo porque a melhor constatação que se possa fazer agora a respeito dessa apatia é que, provavelmente, muito de uma certa militância (ou, digamos apenas: quadros de participação política) que poderia se mobilizar contra o descalabro dos desmantelamentos, ao invés de simplesmente se render à perda da esperança, como se suporia a princípio, pode ter apenas constatado que o que perdeu foram velhas ilusões. E até o momento, em termos de discurso público, não há nada para substituí-las, senão o renovado blefe de igualmente velhos messianismos, desses que sonham com o sertão transformado em um mar de gente atrás de um líder carismático… e vazio de projetos.
Miragens, miragens, miragens! As famosas miragens de uma retórica que não acaba…
Ou a esquerda, em última instância, não foi “derrotada”, porque ainda não dá para supor que o critério da justiça social como termo societário tenha sido definitivamente invalidado (como sonham os ultraliberais), ou então a “derrota” não é mais que a rendição ao pacto fáustico das velhas ilusões e à fantasmagoria das novas miragens, para que o vazio e o cinismo sigam seu curso pretendidamente angelical.
Tomar consciência de alguma derrota, como reclama Boulos, não significa refugiar-se na condenação cômoda aos golpistas e numa vitimização igualmente cômoda da esquerda. Condenar o escorpião por ser escorpião não vai salvar sapo algum. Isso, pelo contrário, é apenas a racionalização (no sentido propriamente freudiano) dos impasses, ou então uma espécie de onanismo das platitudes.
Tomar consciência de alguma derrota implica se perguntar por que a força política a serviço das castas senhoriais conquistou tão eficientemente tanto terreno e o converteu em espaço dócil, como também por que as forças corporativas ideologicamente alinhadas a essas mesmas castas colonizaram de forma tão eficiente as instâncias institucionais do Estado, sem que qualquer vislumbre de alternativa tivesse sido insinuada. A resposta estaria na insuficiência das táticas de reação? Ou ela se esconderia nas possibilidades e interesses dispostos (ou, antes, pré-dispostos) por uma certa visão de mundo?
Alguns vão insistir: “foi a mídia!”; “foi junho de 2013!”; “foram a CIA, a rede Atlas e a nova direita!”; e há até quem diga: “foram as redes sociais!”. Minha pergunta é: Que resposta se tinha e se deu a isso tudo? E não se trata de resposta retórica, mas política e institucional (que não é a mesma coisa que “gestorial” ou “administrativa”). É ilusório e quase hipócrita reivindicar agora o imperativo do trabalho de base se não se pergunta antes: Onde foi parar o primado político da participação? o horizonte ideal da ampliação do espaço público? Com que lastro de projeto de sociedade se pretende que eles possam vir a ser viáveis, depois de terem sido fragorosamente inviabilizados?
Não se trata simplesmente de pôr a mão nas massas, mas de se perguntar o que legitima e dá sentido ao “trabalho de base”. Além de seguir o líder vazio, a outra receita para um reerguimento da esquerda seria, por casualidade, o simples voluntarismo? Será que o pânico da urgência está embotando a mente dos estrategistas? Ou eles não entenderam ainda o sentido profundo da “apatia”, que pode ser sintetizado em uma constatação singela, ao gosto popular: “Perdeu, mané!”?
Miragens, miragens, miragens! Se fossem pamonhas, seriam uma rima, e não uma solução.
Boulos parece ter mais razão ao sugerir que a crise da representação (note-se: da representação e não da representatividade!) ― ou o seu colapso, como prefere expressar meu velho professor Luiz Eduardo Soares ― não é exclusividade do governo Temer. Numa primeira aproximação, por conta desse colapso, Boulos até parece verossímil no diagnóstico de que é todo o sistema político pós-ditadura que faliu. Mas não parece ser tão simplesmente por culpa dos “golpistas” que ele faliu.
O problema, por um lado, é delimitar o que é esse “todo”. Ponderar uma “antipolítica” depende de se reconhecer qual a dimensão desse presumido “sistema político”. Quem garante que aquilo que uns possam reconhecer como excrescência não lhe é igualmente constitutivo? Depois do fenômeno Collor, dizer taxativamente o que é um outsider a esse sistema pode ser uma grande temeridade. Mesmo os outsiders podem simplesmente fazer parte da lógica de funcionamento do sistema. O recurso impressionista à imputação de antipolítica como expediente de demonização, e não como diagnóstico lógico, pode não ser mais que incorrer ainda outra vez naqueles mesmos mistérios maniqueístas.
Por outro lado, se cabe diagnosticar a extensão da derrota de uma certa esquerda nesse contexto, então é forçoso reconhecer que a crise da representação também lhe diz respeito, e o que aconteceu em junho de 2013 também não foi nem mera casualidade, nem mera armação.
O programa de ação política colcha-de-retalhos que Boulos defende logo em seguida (desculpando-o sob o título de “programa de enfrentamento”), como caminho de saída para a crise da representação, na verdade pouco articula o que possa ser uma percepção do espaço público como proposição reconhecível. Reincidir na (e legitimar a) solução liberal-individualista da regulação social por meio da lógica das oportunidades corresponde a relegar esse espaço público à condição de imponderável.
Já se viu o que é um programa colcha-de-retalhos (toda ela de muito boas intenções) ser anunciado como projeto de redenção. Lula faz isso desde 1989. O que aconteceu é que, com o passar do tempo, esses programas foram assumindo versões cada vez mais diet, até chegarmos na sua versão Levy-Abreu (de Joaquim Levy e Kátia Abreu). Se a ambição do Boulos se basta em restaurar um programa colcha-de-retalhos em uma versão mais hardcore, então pode ser que ele continue apenas presa da mesma velha miopia política da falta de clareza ideológica para confrontar o cânone liberal-predatório da regulação.
Afinal, de que vale juntar todos os retalhos bem intencionados, se a concepção de bem-estar social a que se chega com esse ajuntamento se sintetiza em “um carrinho na garagem e uma televisão de plasma na sala”? E, claro, acrescente-se: um plano de saúde privado, porque SUS não é exatamente “direito”, SUS é apenas “para o caso de necessidade”. Não era esse o objetivo último da política das oportunidades, essa de quotas e financiamentos universitários? O horizonte dessa política não é exatamente o da saída dos cidadãos do espaço público? Assim, o espaço público fica reduzido ao espaço dos “sem direitos” (porque sem “oportunidades”), o daqueles que “retornaram para o SUS”, esse novo lumpesinato cidadão sob as asas da misericórdia, o antípoda da “nova classe média”.
Um programa colcha-de-retalhos, sem nenhum lastro mais denso daquilo que se vislumbre como espaço público e como avanço da cidadania, não significaria tão apenas reincidir na insuficiência de uma esquerda que se esgotou como todo o resto, ou seja, reincidir na impossibilidade da política se apresentar como um campo de possibilidades (bye bye representação)? Não significaria, no íntimo, recair na essência do mais-do-mesmo, ainda que a pretexto de recusá-lo? Esse parece ser o estratagema discursivo da política transformada em retórica sem fim: miragens, miragens, miragens!…
Dito em outras palavras, a verdadeira derrota política das esquerdas consistiu em que o lulismo, ao fim e ao cabo, não fez outra coisa que produzir as condições ideais para que a direita venda com grande eficiência sua pauta ideológica, sua visão de mundo. A miopia bem intencionada do lulismo nutriu, no fim das contas, o ambiente simbólico de legitimação da direita. A “apatia” destes dias de desmantelamento não é mero “estado de espírito”; é, antes, o reconhecimento implícito da esterilidade do sentido, do exílio da política.
Quando Lula declara orgulhosamente que não é socialista, isso precisa ser realmente levado a sério, porque isso significa que, como liderança, ele está predisposto a prostituir qualquer veleidade política que insinue a precedência regulatória do público sobre o privado. Sua política será a dos “campeões nacionais” (como a JBS e a Odebrecht), e não a do bem-estar social. Socialistas têm clareza e orgulho daquilo que são. Se a esquerda não sair do armário, continuará travestida de lulismo, para vender apenas uma farsa saltitante, condenada ao descarte rápido por aqueles para quem essa farsa pode ora ser útil, ora apenas inconveniente.
Sair do maniqueísmo impressionista corresponde a retornar à lógica: ou se supõe a precedência regulatória dos direitos individuais (e, com ela, o velho mapa cultural implícito da lógica do privilégio) ou se supõe a precedência regulatória dos direitos coletivos. Falar de algum projeto de sociedade imprescinde de que se decida clara e honestamente sobre isso. Não se trata de nenhuma abstração inefável. Isso é apenas o que vem antes (em termos lógicos) da enunciação de uma pretensa regulação do mercado financeiro, por exemplo, que para muitos seguramente soa como uma notável abstração. O mesmo se diga sobre o sistema tributário, as políticas públicas e outras “abstrações”.
A expectativa apocalíptica pintada por Boulos, de que daqui a pouco as massas oprimidas virem a mesa numa convulsão social, pode não ser mais que outra sedutora miragem desejante (ou delirante?). O mundo da predação individualista não é o mundo da indignação coletiva; é o mundo do salve-se quem puder. Indignação insurrecional se cultiva sobre valores compartilhados, reconhecidos como legítimos, e que estariam sendo vilipendiados. Não é nesse ponto aonde chegamos. O ponto a que chegamos é o da insubsistência de valores coletivos como fonte de investimento de sentido à ação política (qualquer que seja, a insurreição incluída). Essa é a grande derrota da esquerda. Não foi um governo golpista que a impingiu. Foi parte dela mesma.
Já não basta querer transformar o mundo. É urgente refletir sobre ele. Ou as boas intenções não serão mais que miragens.
*Antropólogo (mestre e doutor nessa área), pesquisador, viajante, cinéfilo, melômano.