Massacre do Carandiru, 25 anos: Um serviço sujo em nome do “cidadão de bem”, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

O que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992, em que forças policiais executaram 111 presos no Pavilhão 9 da então Casa de Detenção de São Paulo, foi um servicinho sujo que parte de nós, brasileiros, desejava e ainda deseja em seus sonhos mais íntimos: que alguém que cometeu um crime, qualquer crime, seja morto e não reintegrado à sociedade.

Depois de um longo processo, os jurados condenaram 74 policiais militares envolvidos na operação entre 2013 e 2014, mas o Tribunal de Justiça anulou as decisões dos jurados e decidiu recomeçar do zero. Após a leitura da sentença de uma das condenações, uma das advogadas de defesa foi de uma sinceridade contundente: ”Não é essa a vontade da sociedade brasileira”.

Para muita gente, limpezas sumárias são lindas, sejam as realizadas pelas mãos da população (linchando suspeitos), pelas dos próprios encarcerados (em rebeliões em que cabeças se tornam bolas de futebol) ou pelas do Estado – ao caçar pessoas em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. Que, de fato, nem precisam ser traficantes de drogas. Jovem, negro e pobre já é suspeito. E para que correr o risco de manter suspeitos vivos por aí, não é mesmo?

Nunca esquecer de casos como o do Carandiru é importante para que a sociedade consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o. Para evitar que ele aconteça de novo. Mais do que um país sem memória e com pouca Justiça, temos diante de nós um Brasil que fomenta a violência como sua amálgama social.

Pois, ao contrário de outros países, o Brasil não conseguiu tratar suas feridas para que cicatrizassem em nossa redemocratização. Apenas as tapou com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que usar da violência, torturar, matar e esfolar não são coisas aceitáveis. Como eram durante a ditadura civil-militar.

O Estado deve nos proteger, não nos ferir ou nos matar, independentemente de quem sejamos ou do que tenhamos feito. A polícia não deve estar em guerra com seu próprio povo e o seu primeiro objetivo é proteger vidas e não patrimônio. Isso é difícil de entender no Brasil, onde pessoas são espancadas até a morte por roubar coxinha no mercado. Ou onde o risco de ser morto é inversamente proporcional à sua renda.

Não é de estranhar que boa parte da sociedade que grita que “bandido bom é bandido morto” também esteja entre os 9 em cada 10 que concordam com a redução da maioridade penal para os 16 anos, mas que não participa da discussão de políticas para garantir dignidade aos jovens.

Ou que muitos fiquem radiantes com as ações truculentas da polícia militar na Cracolândia do Centro de São Paulo e não queiram debater a questão sob uma ótica de saúde pública. ”Mata esses craqueiros, mata!”

São as mesmas pessoas que, no fundo, pensam “Bem feito! Quem manda invadir terra dos outros?” ao lembrar dos 19 sem-terra mortos na Chacina de Eldorado dos Carajás, em 1996, ou dos dez assassinados na Chacina de Pau D’Arco, neste ano. Ambas, no Pará, foram executadas por policiais militares, mas representando o poder da agropecuária local.

Ou escrevem coisas como: ”Ah, se esses morreram nas chacinas no Jaçanã, no Campo Limpo, em Osasco e Barueri é porque alguma culpa tinham. Inocente certamente não eram”, como circula pelas redes sociais sempre que ocorre uma matança na periferia. Não se incomodam com o fato de existirem cidadãos de primeira e segunda classes, com um abismo de direitos entre eles. São seguidores da doutrina: ”se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem” e sua variante ”se você passa fome é porque não trabalha”.

A verdade é que a polícia não faz o que quer. Ela mata e morre para executar o que programamos ela para fazer.

Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de ”alimentar bandido” em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo.

O que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV safados e estruturas que pregam a violência têm pavimentado dificilmente será desconstruído do dia para a noite. Ao criticar execuções públicas de pessoas que estão sob a tutela do Estado, não defendemos ”bandido”, mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. O Estado não pode se tornar pior do que a violência que combate.

Falta garantir Justiça aos executores do Massacre do Carandiru. Mas, como venho dizendo aqui, também falta julgar as autoridades nele envolvidas, os mandantes do Massacre de Eldorado dos Carajás, os envolvidos nos assassinatos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários, quem pagou policiais para serem jagunços e pistoleiros nas horas de folga, os que ordenaram massacres de sem-teto e de população em situação de rua, quem matou homossexuais e transexuais por não conseguir conviver com eles (e os que se negaram a investigar, arquivando muita coisa como ”suicídio” ou ”morte em briga” a fim de que os ”homens de bem” dormissem tranquilos), os que mandaram executar jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, os que aceitaram que tudo fosse registrado como ”autos de resistência”, as milícias matadoras de policiais que, não raro, encontram respaldo institucional.

Falta, na verdade, construir um povo. E um país.

Corpos de presos do Massacre do Carandiru (Foto Niels Andreas/Folhapress)

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