“Organizemos um ato de desagravo à família do Elton. Encontremo-nos com quem foi ultrajado de forma a mais vergonhosa pela festa organizada em homenagem ao sargento que o assassinou. Levemos nossa solidariedade e tratemos de mostrar-lhe em que medida a dor do seu luto não deve aumentar por isso, mas sim desconsiderar essa estupidez como própria da ignorância, da falta de educação, da raiva e do preconceito estimulados ideologicamente por todo o desprezo que fermenta e azeda a cultura de quem já se convenceu de que gente pobre é inferior e manter essa desigualdade uma condição de prestígio”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos
O número de agricultoras/es sem-terra mortas/es nesses frequentes conflitos por terra em todo o Brasil já entrou para a nossa história como um dado estatístico praticamente ignorado pelo Poder Público, por grande parte tanto da sociedade civil como da mídia. Defensoras/es dos direitos humanos já morreram 62 neste conturbado ano de 2017, segundo a CPT.
O nível do ódio inspirador e promotor desse massacre é tão grande que, quando um assassino mata uma pessoa integrante de multidão pobre – com o seu direito de acesso à terra eternamente prorrogado – é saudado como herói, organizam-se comitês de recepção onde ele mora, enfileira-se uma carreata de admiradoras/es, portam-se faixas de gratidão e reconhecimento pelo seu feito.
Mesmo no caso de o assassino exercer as funções públicas de policial militar, ter sido condenado por um júri a cumprir pena de reclusão em regime fechado, por 12 anos, comprovado o fato de a morte ter sido provocada por arma de fogo disparada pelas costas da vítima, sem chance de defesa, portanto, essa covardia é interpretada e saudada como virtude, festejada por muita gente com estardalhaço, garantida até por cortejo público escoltado pela Brigada militar…
Foi o que aconteceu em Bagé, segundo notícia publicada pelo jornal Folha do sul, circulando pela internet e por outras fontes:
“O sargento da Brigada Militar Alexandre Curto dos Santos, condenado em primeira instância a 12 anos de prisão, em regime fechado, pelo assassinato do sem-terra Elton de Medeiros Brum em São Gabriel, foi libertado no sábado, 30 de setembro, e recebido com festa e carreata na cidade de Bagé, onde mora. Curto foi beneficiado por um habeas corpus concedido pelo desembargador Manuel José Martinez Lucas na sexta-feira, 29, a pedido da defesa. Com a decisão, o PM deverá responder em liberdade ao recurso contra a condenação.”
“A recepção a Curto foi emblemática: colegas de farda, familiares, ruralistas e apoiadores o levaram em carreata até a Sociedade Rural de Bagé, escoltado por três viaturas da Brigada Militar, duas motos e um carro da Polícia Civil. Lá, foi homenageado com discursos e fogos. Mais de 200 pessoas e aproximadamente 120 veículos aguardavam o PM, segundo relato da reportagem do jornal Folha do Sul. Curto, que segundo a Justiça matou Elton pelas costas, sem lhe dar chance de defesa, continuou negando a intenção de cometer o crime.”
“O policial militar foi condenado por um júri popular no último dia 21 de setembro. O crime ocorreu no dia 21 de agosto de 2009, durante a reintegração de posse da Fazenda Southall – um latifúndio em torno de 10 mil hectares localizado em São Gabriel, na Fronteira Oeste. A ação da Brigada Militar contra cerca de 500 famílias do MSTresultou em dezenas de feridos e na morte Brum, aos 44 anos de idade. Ele deixou a esposa viúva e uma filha menor de idade.”
“O júri confirmou que Elton foi assassinado de forma brutal e sem qualquer possibilidade de defesa, com um tiro de espingarda calibre 12 desferido pelas costas. Na sua defesa, o PM alegou que houve uma troca inadvertida de armamento com um colega que estava usando munição letal. Os jurados não se convenceram da versão e, além da prisão em regime fechado, determinaram a perda imediata do posto.”
Quatro consequências dessa estória precisam e devem ser sublinhadas, somando-se a tudo quanto o povo pobre sem-terra e sem-teto do Brasil padece em confrontos da espécie que matou o Elton.
Em primeiro lugar, o Elton e suas/seus muitas/os companheiras/os não correriam qualquer risco de algum/a delas/es perderem a vida, se quem presidia a jurisdição relacionada com a ação possessória que o matou não exercesse a sua autoridade sem medir um efeito tão despropositado que, como o país tem testemunhado quase diariamente, mais do que previsível é sabidamente provável.
Em segundo lugar, não era necessário matar um agricultor sem-terra para qualquer integrante do Poder Público ser advertido de que o protesto das/os sem-terra era tão legítimo, em ocupando o tal latifúndio visivelmente descumpridor de sua função social, que hoje lá se encontra um dos assentamentos de reforma agrária neste Estado, provando quão despida de qualquer motivação minimamente jurídica foi a violenta repressão imposta ao grupo do qual participava o agricultor assassinado. Fosse considerado o atraso histórico com que a União trata a implementação da reforma agrária, reforçado pela extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário, por mais um dos golpes do golpe de Estado aos direitos humanos fundamentais sociais dela dependentes, toda a justiça pelas próprias mãos presente em ocupações de terra rural, como a que reunia o grupo das/os sem terra ao qual se juntou o Elton, haveria de ser reconhecida como legítima.
Em terceiro lugar, como acontece sempre no caso de as indenizações devidas a gente pobre receberem um tratamento desconfiado e preconceituoso, à ela não se confere a agilidade do habeas corpus que colocou em liberdade o assassino do Elton. O Estado do Rio Grande do Sul continua usando de todos os meios ao seu alcance para retardar o pagamento às/aos suas/seus familiares da indenização a elas/es devida, exatamente por força da forma como um dos seus agentes agiu. Por sinal, uma indenização mutilada por um acórdão de uma das Câmaras do tribunal gaúcho, que deu provimento a um recurso do Estado contrário ao valor que tinha sido fixado em primeira instância.
Em quarto lugar, a festa de recepção do sargento assassino parece não comportar outra qualificação como a de um despudorado deboche da morte do Elton e, por tabela, de quantas/os sem-terra com direito de acesso à ela são mortos no Brasil. O chão do país está sendo aprisionado por mãos endinheiradas daqui e de fora, cada vez mais esbulhadoras, gananciosas, grileiras, fabricantes de leis capazes de dar garantia e segurança aos seus desmandos. O sargento assassino, portanto, não passa de um cúmplice. O dedo com o qual puxou o gatilho é acionado e empurrado também por gente como a que o recebeu festeira em Bagé e pela Sociedade rural de lá.
Por isso, aqui se oferece uma sugestão a todas/os sem-terra integrantes do MST e de outros movimentos populares que apoiam as reivindicações de direitos saciais que elas/es fazem, em defesa também da reforma agrária.
Organizemos um ato de desagravo à família do Elton. Encontremo-nos com quem foi ultrajado de forma a mais vergonhosa pela festa organizada em homenagem ao sargento que o assassinou. Levemos nossa solidariedade e tratemos de mostrar-lhe em que medida a dor do seu luto não deve aumentar por isso, mas sim desconsiderar essa estupidez como própria da ignorância, da falta de educação, da raiva e do preconceito estimulados ideologicamente por todo o desprezo que fermenta e azeda a cultura de quem já se convenceu de que gente pobre é inferior e manter essa desigualdade uma condição de prestígio.
Com a honra e a grandeza que lá esteve ausente, quem sabe um desagravo como esse recorde para quem homenageava o assassino um Outro Morto e Crucificado que perdoou os seus algozes por eles não saberem o que estavam fazendo.