Mamadeiras de refrigerante: ‘vício’ em bebida agrava desnutrição em indígenas

Os índios venezuelanos da etnia warao, cada vez mais presentes no norte do Brasil, estão enfrentando graves problemas de saúde e de alimentação, como desnutrição, diarreia e outras complicações devido ao alto consumo de refrigerante

Os indígenas vivem basicamente de pedir esmolas e vieram ao país para fugir da fome. Começaram a chegar em massa no ano passado, entrando pela fronteira com Roraima. Um dos motivos da migração é crise econômica e política da Venezuela, o que dificultou o acesso a alimentos.

Inicialmente, centenas se abrigaram em cidades de Roraima, como Boa Vista e Paracaima. Mas também no Amazonas.

Algumas famílias desembarcaram há poucas semanas em cidades do Pará, como Belém e Santarém, e se abrigaram em prontos próximos a áreas de tráfico de drogas e de prostituição.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), as crianças enfrentam grave estado de desnutrição devido à alimentação escassa ou, por vezes, à má qualidade da comida. O órgão afirma que houve casos de morte por problemas de saúde em Manaus e Belém.

Por outro lado, funcionários da prefeitura que acompanham os grupos têm enfrentado outra complicação: os indígenas consomem altas quantidades de refrigerante. Os servidores suspeitam que o excesso do produto está causando diarreia nas crianças.

A BBC Brasil acompanhou um grupo de 44 índios no centro de Belém, 23 deles crianças. A comunicação com eles é bastante difícil, porque os warao falam apenas seu próprio idioma e não dominam a língua espanhola ou portuguesa.

De fato, as crianças beberam altas quantidades de refrigerante em poucas horas. Bebês carregavam mamadeiras cheias da bebida. Quando conseguiam algum dinheiro, os índios compravam a bebida em barracas do Ver-o-Peso, tradicional mercado popular no centro de Belém.

Segundo Rita Rodrigues, psicóloga que acompanha a tribo na cidade, esse grupo de 44 warao chega a beber 20 litros de refrigerante por dia. “A gente tenta falar para os pais não darem refrigerante para as crianças, que poder ser ruim, mas é um hábito que eles aparentemente têm há tempos. Eles bebem o dia inteiro”, diz Rodrigues.

Há duas semanas, devido à situação precária dos índios na capital do Pará, o MPF e a Defensoria Pública entraram na Justiça solicitando um abrigo emergencial para a etnia. Eles foram encaminhados a um albergue dentro do estádio Jornalista Edgar Augusto Proença, conhecido como Mangueirão.

Poucos dias depois, os índios decidiram deixar o local e voltar às ruas e à mendicância – parte está vivendo em cortiços. Segundo os funcionários da prefeitura, os motivos alegados por eles foram a dificuldade de conseguir doações e até o acesso difícil ao refrigerante.

Diabetes entre os índios

A alimentação ruim e o aumento do consumo de produtos com alto teor de açúcar tornou-se uma preocupação entre médicos que acompanham indígenas no Brasil.

Uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, mostrou que 21% dos índios xavantes do Mato Grosso apresentavam diabetes – o índice na população brasileira é de 8%.

O estudo apontoou ainda que 31% dos membros da tribo têm risco de desenvolver a doença caso continuem com hábitos alimentares levados pelo homem branco.

Segundo o endocrinologista João Paulo Botelho Vieira Filho, autor da pesquisa, a diabetes tornou-se comum entre a tribo depois que a dieta tradicional indígena, formada principalmente por mandioca, milho e batata, passou a ser acompanhada por produtos industrializados distribuídos em merendas escolares e cestas básicas de programas de combate à fome.

“A genética dos índios é propensa a diabetes quando a alimentação tradicional é trocada pelo açúcar. O homem branco, através dos séculos, passou por uma seleção natural: sobreviveram pessoas resistentes a diabetes. Os índios não passaram por isso, eles não foram acostumados a ingerir açúcar cristalizado”, explica Vieira Filho.

Segundo ele, além da diabetes, a mudança da dieta causou outras doenças entre os membros, como obesidade, problemas renais, vasculares e cardíacos.

“A dieta tradicional indígena é uma das melhores do mundo. Não houve preocupação por parte dos governos em retirar alimentos com açúcares das cestas básicas e da merenda. A proposta dos programas era acabar com a fome de qualquer forma, sem pensar nas consequências nutricionais dos alimentos que estavam sendo distribuídos”, diz.

Para Érika Blandino, nutricionista e mestre em saúde pública pela USP, há risco para saúde quando crianças substituem alimentação rica em nutriente por produtos com alto teor de açúcar, como o refrigerante.

“O ideal é retardar esse contato da criança com refrigerante o maior tempo possível, não tem uma idade certa. Quando ele introduzido precocemente, de forma alguma é um alimento para substituir o leite materno”, explica.

Os alimentos distribuídos nos abrigos públicos que receberam os warao venezuelanos também tem sido alvo de críticas.

“De forma emergencial, para matar a fome, os índios receberam alimentos que não fazem parte de sua dieta. Ocorre que essa alimentação continua sendo distribuída. A longo prazo, ela é inadequada. O ideal seria oferecer uma dieta em que eles pudessem preparar seus próprios alimentos, com base na sua cultura tradicional”, afirma João Akira, procurador da República que vem acompanhando os grupos venezuelanos.

Para Vieira Filho, a tomada de territórios indígenas pelo agronegócio ou madeireiros também influencia na saúde das tribos. “Os índios precisam de terras e de espaço para produzir seus alimentos. No momento em que eles perdem essas áreas, sua alimentação piora, pois passam a depender da dieta do homem branco”, diz.

Akira também critica a estrutura dos abrigos oferecidos por prefeituras e governos estaduais. “Os abrigos são inadequados do ponto de vista sanitário, de segurança, de alimentação. O Estado brasileiro está confinando centenas de pessoas em ginásios de esporte insalubres. É uma situação dramática que não está ganhando a devida atenção do Estado brasileiro”, diz Akira.

Migração e retorno

Segundo um relatório antropológico do MPF, que passou a acompanhar os warao desde o ano passado, as famílias que chegaram ao país viviam anteriormente em regiões próximas do Orinoco, o principal rio da Venezuela. Eles são o principal grupo indígena do país, com aproximadamente 49 mil integrantes.

Durante o governo de Hugo Chávez, a etnia dependia de doações e ajuda de programas sociais. Muitos viviam nas ruas, em cidades como Tucupita e Barrancas. Depois, diante da crise econômica no governo Nicolás Maduro, tanto os benefícios sociais quanto as doações nas cidades rarearam a ponto de obrigar os índios a se mudar.

“Nas cidades venezuelanas, o comércio é o principal meio de acesso dos warao aos bens alimentícios, o qual ficou comprometido com o aumento substancial dos preços de itens básicos da alimentação local, como arroz, farinha de trigo, banana e mandioca”, diz o relatório. “A escassez de comida e seu alto custo na Venezuela eram constantemente ressaltadas como as principais causas para saírem de seu país de origem.”

A migração para fugir da fome e encontrar melhores condições de vida é uma das características dos warao, segundo o MPF. Tem sido comum, por exemplo, algumas pessoas retornarem à Venezuela depois de uma temporada no Brasil.

Entre os warao, é comum encontrar crianças carregando mamadeiras com refrigerantes | Foto: Leandro Machado/BBC Brasil

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