O STF entre o céu e o inferno

Yuri Carajelescov* – Justificando

Anjos e querubins reportam que a recente decisão do STF foi muito bem recebida no Céu. Lembremos, conforme notícia oficial, que no último dia 11 o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que o Poder Judiciário tem competência para impor a parlamentares as medidas cautelares do artigo 319 do Código de Processo Penal. Apenas no caso da imposição de medida que dificulte ou impeça, direta ou indiretamente, o exercício regular do mandato, a decisão judicial deve ser remetida, em 24 horas, à respectiva Casa Legislativa para deliberação, nos termos do artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição Federal.

Entre um negroni e outro preparado com um verdadeiro gim dos deuses (sim, no Céu bebe-se e bebe-se bem), dois seres de luz comemoravam, o restabelecimento da ordem natural das coisas no Brasil com o respeito à regra fundamental da separação dos Poderes e a autocontenção judicial. O mais empolgado já apostava na melhora da nota do país pela agência God´s e lembrava que as garantias e imunidades dos parlamentares são as regras de ouro da própria democracia. O outro elogiava o trabalho feito há anos pelo “nosso pessoal em terra com a Carminha” e, esbanjando otimismo, arrematou do alto de sua onisciência “Não há mal que dure para sempre, nem mesmo lá no Brasil. Você vai ver só! Agora o STF vai criar coragem e anular aquele impeachment comprado a peso de ouro”.

O papo que fluía bem foi interrompido por uma terceira alma iluminada que já estava no quinto Daiquiri e foi logo alertando “é, tudo muito bonito, mas há pelo menos dois lá que votaram isso aí que estão fechados até a medula com o lá de baixo, o coisa ruim… Que o Chefe me perdoe!” e emendou “um deles, além de cultivar mutações constitucionais de proveta, criou até uma espécie normativa nova, a supralegalidade, e ainda outro dia impediu a posse de um ministro legalmente nomeado pela presidente da República. Vocês acham que esse espírito desenganado se ocupa de temas etéreos como separação de poderes e garantias do parlamento? Sem contar que esse mesmo Tribunal operou no timing político do impeachment no caso daquele deputado que se diz crente mas que tem acordo com o mafarrico… ”

O clima que até então era só de regozijo anuviou-se e embora no Céu não houvesse registro de ressaca só a euforia da embriaguez, um alertou o outro: “ó, manera que hoje, na certa, vai ter comemoração e balada lá no Charlão”. Com a intimidade que só mesmo a eternidade propicia, referia-se a Charles-Louis de Secondat, ou seja, Montesquieu. Era a senha para se despedirem antes que o (sic) entrevado beberrão contaminasse o ambiente.

Já no inferno a notícia chegou por meio de um grampo que o Sete-peles mandou instalar no céu sem ordem judicial e vazou para a imprensa. A notícia mereceu apenas uma nota escondida no painel da folha, coluna destinada a notícias realmente relevantes.

A verdade é que entre diabinhos de primeira instância, cramunhões de órgãos superiores e assessores especiais que aguardavam na antecâmara para despachos ordinários com Satanás reinava a mais absoluta tranquilidade e quase nada se falava sobre o recém anexado Brasil. Sabia-se que por lá mandava e desmandava o Michel discípulo de Antero, mestre e doutor aprovado com louvor pelos mais afamados lentes do nono círculo e só.

O final do expediente havia sido reservado para avaliar o teor das escutas no Céu. Satanás visivelmente incomodado com irrelevância do assuntado mandou chamar um seu assessor especialista.

Tratava-se de um constitucionalista de currículo respeitável para os padrões locais, já que havia dado forma jurídica ao menos a duas ditaduras, engendrado golpes de estado, escrito textos e mais textos a favor de todo tipo de arbítrio os quais poderiam ser lidos e reproduzidos pelas novas gerações de grandes juristas brasileiros que, com as ressalvas de praxe, jamais decepcionaram. Juízes e Ministros não se cansavam de citar o “escólio sempre atual do inexcedível e saudoso fulano de tal” em suas sentenças e acórdãos.

O assessor especial ao entrar na sala um pouco fria para os padrões mefistofélicos teve o ímpeto de pedir para diminuir a intensidade do ar condicionado, mas foi imediatamente dissuadido por um Asmodeus ainda mais rubicundo: “Parece que pescamos só um bagrinho com essas escutas que me deram um trabalho dos diabos! Desembucha!”

O constitucionalista, que jamais havia perdido o vezo e que havia aconselhado o grampo em parecer exarado em 25 laudas rubricadas e assinada ao fim, começou a responder em linguagem forense: “Veja bem, Excelência, pelo que depreendemos do R. Julgado, cujo V. Acórdão ainda não se encontra disponível para consulta no sítio eletrônico do Egrégio Supremo Tribunal Federal, o Areópago Máximo, por maioria, houve por bem aplicar corretamente a constituição de sorte a garantir as prerrogativas constitucionais do Parlamento e evitar uma crise institucional que se avizinhava o que não seria bom para o nosso homem, digo, aquele que Vossa Excelência colocou lá.”

Satanás o fitava cada vez mais impaciente enquanto massageava entre as duas mãos um Cohiba contrabandeado via Panamá. “De mais a mais, agora o parlamento poderá dizer que não existe governo de juízes e salvar o nosso outro homem no senado que, como Vossa Excelência bem sabe, estava com a cabeça a prêmio.” Neste momento, como se fosse a gota d´água santa, o Diabo saltou por sobre o próprio rabo e se pôs em pé: “Ora, homem, deixe de tolice, o mineirinho nunca esteve ao Deus-dará e nem nunca estará!”

“O seu tempo acabou” disse o Tinhoso enquanto apanhava o paletó que se encontrava pendurado no tridente para não amassar. Mas antes de dispensar o adiposo constitucionalista e embora não devesse se ocupar desses temas menores, o Rabudo pontuou como quem pedisse a concordância do outro (e quem haveria de discordar do próprio Belzebu?), “então a parada é a seguinte, tirando uns poucos que não são nossos, uns votaram para garantir o governo dos juízes, o que vocês pedantes chamam de juristocracia, e outros para salvar o pescoço de um correligionário. O resto é cortina de fumaça”. O assessor acedeu fortemente “Mutatis mutandis, Excelência, exatamente isso…” e antes que começasse o discurso laudatório à sapiência e sagacidade do Diabo foi por este definitivamente interrompido: “Ah se é assim, nossos homens lá no Brasil estão em boas mãos. Adeus, então!”

*Mestre e doutor em Direito.

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