Distopia atual é achar que o autoritarismo é normal, diz Alexey Dodsworth

Alexey Dodsworth, pesquisador do transumanismo, avalia o momento presente no Brasil e no mundo frente às obras clássicas do gênero que projetavam uma vida de regressões e opressão

Por Helder Lima, da RBA

De Veneza, onde reside atualmente, o escritor, filósofo e pesquisador ítalo-brasileiro Alexey Dodsworth, ex-assessor especial do Ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff, Renato Janine Ribeiro, concordou em realizar uma conversa por e-mail com a Revista do Brasil sobre o tema ‘distopia na política e literatura’. A ideia da entrevista foi discutir se o que escritores como George Orwell e Aldous Huxley, entre outros clássicos da ficção científica, projetaram em suas obras estaria acontecendo hoje frente ao desalento provocado por governos autoritários e segmentos da sociedade que claramente defendem retrocessos nas áreas sociais, e são altamente manipulados, como as obras desses escritores previram. 

“Todos esses autores perceberam o que deveria ser mais óbvio para todos nós: a história se repete. E o mal, conforme pintado nessas obras, não é um monstro alienígena pandimensional. O mal, em todas essas obras que você citou, brota de nossa própria banal humanidade, é o autoritarismo cotidiano que se normaliza, a um ponto em que nos tornamos indiferentes a ele.”

Com doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Dodsworth pesquisa o transumanismo, um campo que ele define como “um movimento científico, político e cultural cujo objetivo maior é a superação das limitações humanas a partir da utilização ética da ciência e da tecnologia. O objetivo dos transumanistas se harmoniza com a criação de eutopias: lugares, sejam eles em nosso planeta ou fora dele, onde os seres sencientes, sejam eles humanos ou não-humanos (animais ou artificiais), possam viver bem”.

Dodsworth tem três livros de ficção publicados. O primeiro deles, Dezoito de Escorpião (Novo Século, 2014), foi contemplado com o Prêmio Argos (2015) na categoria “melhor romance de literatura fantástica”. Seu outros títulos são O Esplendor (2016, Draco Editora) e Extemporâneo (Editora Presságio, 2017), este selecionado pelo Programa de Apoio à Cultura do Estado de São Paulo.

Ao falar sobre o tema, Dodsworth encontra significados para a distopia em diferentes campos, um deles especificamente sobre o Brasil: “Infelizmente, temos sido muito dedicados na construção de uma sociedade distópica, a despeito de nossas condições naturais vantajosas”.

E nas redes sociais: “Eis a distopia: nós temos a internet e, com ela, poderíamos aprender sozinhos um monte de coisas interessantes. Aprender idiomas. Fazer cursos à distância. Ler livros. Mas a maioria de nós usa a internet apenas como uma rede social de contato com pessoas que, em sua maioria, não são realmente nossas amigas. Estamos simplesmente futricando a vida uns dos outros, mas poderíamos estar aprendendo grego, ou fazendo um curso online de astrofísica”.

“A distopia de nossos tempos é muito bem demonstrada na série Black Mirror: tecnologias incríveis sendo utilizadas para viabilizar nossa mesquinharia, nossa capacidade de oprimir, nossa priorização de coisas ridículas”, diz ainda Alexey.

Sobre os movimentos contra a corrupção: “Claro que não são ‘contra a corrupção’. Ficaram e ficam quietos diante de exemplos bizarros de roubalheira, de abuso de poder e denúncias gravíssimas. O nível intelectual é tão baixo, que conseguem chamar o PT de ‘comunista’, um dos partidos que mais favoreceu bancos e empresários na história desse país.”

Alexey considera o MBL praticamente um agente da distopia: “…o MBL não está preocupado com arte, nem com os museus (duvido que frequentem, mesmo quando há exposições de Rembrandt), não está preocupado com as crianças, com nada disso. Esses protestos são um espantalho: eles criam um demônio a ser combatido, e dançam loucamente em torno deste demônio, proferindo insultos. É uma forma de angariar poder político. Quando gritam “pedofilia”, se valem de uma palavra poderosa, capaz de arrastar as emoções dos outros e conduzi-los à fúria, sendo que poucos são os que irão pensar “será que havia, de fato, pedofilia?”. Indignação e ódio são emoções que se multiplicam e se propagam como fogo em palha, é só ver como isso funciona em redes sociais.”

O que é distopia? Entre os séculos 20 e 21 a significação desse termo se altera? Ou: a dinâmica de transformação da sociedade impõe a necessidade de ressignificar o conceito de distopia de tempos em tempos?

As expressões “distopia” e “utopia” têm em comum o termo grego “topos”, que significa “lugar comum”. A um primeiro olhar, é possível dizer que a expressão “distopia” é oposta à expressão “utopia”, posto que esta última significa – em um sentido mais superficial – um lugar ideal, bom, agradável.

Distopias, por sua vez, seriam realidades horríveis. Desde que John Stuart Mill usou – até onde se sabe, pela primeira vez – a expressão “distopia”, seu significado em nada se alterou. A ideia de um lugar (topos) de dor e sofrimento (dys) não se altera, o que muda são os mecanismos que fazem valer uma sociedade infeliz e dolorosa. Dentre tais mecanismos, o mais sutil e eficiente é aquele que faz os cidadãos acreditarem que vivem uma vida boa. Um bom exemplo é o discurso saudosista “na ditadura militar, as coisas eram melhores”. Não eram. Havia corrupção, tortura, ausência de liberdade de expressão. O fato de você não ter sofrido isso, não significa que tais coisas não ocorressem.

Mas aí que entra o problema: o significado literal de “utopia” é “lugar nenhum” (em grego antigo, o “u” é uma negação: u+topos, não-lugar). O que podemos ter é o desejo ou a esperança de um lugar maravilhoso, ideal, mítico. Só que este lugar não se realiza em canto algum, é um lugar que não existe, que pertence à esfera da imaginação, pertence ao porvir, localiza-se sempre num futuro possível ou uma lenda fantástica.

Deste modo, aprofundando a questão, o oposto de “utopia” não é “distopia”, pois o oposto de “lugar nenhum” não é “lugar ruim”. O oposto de “lugar nenhum” é, simplesmente, “algum lugar”: os topoi, as cidades. E a dinâmica das cidades muda: ora elas estão melhores, ora estão piores, na comparação consigo mesmas e com outros lugares existentes. E falo de “melhor” e “pior” num sentido objetivo, sem relativismos: liberdades individuais respeitadas, boas condições de saúde e educação, segurança etc. Estes lugares, as cidades, nunca se tornam “utopias”. Seria contraditório, pois, se utopias se tornassem, deixariam de ser “lugares”, para serem, por definição, “não-lugares”. Se a cidade existe, ela é um topos e, na qualidade de lugar existente, está sujeita à mutabilidade, está sujeita a se degradar, mas também a melhorar. Vivemos no devir, onde tudo muda.

Eu gosto da expressão pouco conhecida “eutopia”, que sinaliza um lugar (topos) bom (“eu”, em grego, significa “bem”, “bom” e “belo”). Eutopias, diferentemente de utopias, são lugares existentes, lugares possíveis porque não se pretendem perfeitos, mas em busca de melhorias. Dito isso, as cidades podem ser mais ou menos distópicas ou mais ou menos eutópicas, e isso pode ser avaliado a partir de critérios, como eu já disse, bem objetivos e mensuráveis: como é a saúde da população? A taxa de assassinatos e crimes? E a educação? E o índice de felicidade? Tudo isso se mede, e é claro que podem haver defeitos e vieses nos processos de medição, mas é importante buscar modos objetivos de mensurar a qualidade de vida.

É fato que existem, em nosso planeta, lugares mais eutópicos ou mais distópicos. Há também lugares com maior potencial natural de eutopia, como é o caso do Brasil, onde não ocorrem terremotos de grande monte, onde não há vulcões, onde a natureza é farta e os recursos, abundantes. Infelizmente, temos sido muito dedicados na construção de uma sociedade distópica, a despeito de nossas condições naturais vantajosas.

Sobre a distopia ressignificada, eu diria que o maior perigo jaz nas distopias que não envolvem sofrimento evidente e são mantidas por servidão voluntária. Renato Janine Ribeiro, meu orientador de doutorado, sempre diz – e com razão – que todo mundo sabe quando está com má saúde, mas é difícil para o mal educado ter consciência de sua ignorância. O ignorante vive na distopia e a sustenta, a embasa, vota nela, a aplaude e faz propaganda.

ARQUIVO PESSOAL / FACEBOOKEx-ministro Renato Janine e Dodsworth: experiência no MEC durante o governo de Dilma Rousseff

Considerando o seu envolvimento na pesquisa sobre o conceito de ‘transumanismo’, você diria que a ‘distopia’ representa algumas das possibilidades de vislumbrar o futuro da humanidade? De outro modo: o transumanismo transforma o conceito de distopia?

Creio que cabe iniciar a resposta explicando – sinteticamente – o que é transumanismo. Trata-se de um movimento científico, político e cultural cujo objetivo maior é a superação das limitações humanas a partir da utilização ética da ciência e da tecnologia. O objetivo dos transumanistas se harmoniza com a criação de eutopias: lugares, sejam eles em nosso planeta ou fora dele, onde os seres sencientes, sejam eles humanos ou não-humanos (animais ou artificiais), possam viver bem.

Começo respondendo que um dos mais recorrentes mal-entendidos experimentados por nós, transumanistas, é quando nos deparamos com a crítica que nos acusa de favorecer distopias a partir de uma “veneração por tecnologia”. O filósofo Francis Fukuyama é um dos que sustentam essa crítica, que pode ser lida em seu texto Transhumanism – The World’s Most Dangerous Idea (em tradução livre: Transumanismo – A ideia mais perigosa do mundo). Em síntese, Fukuyama chama a atenção para o risco de criarmos duas humanidades: uma com dinheiro suficiente para pagar por melhoramentos tecnológicos, capaz de estabelecer um grupo de “super-humanos”, e outra de humanos normais, sem recursos para gozar dessas maravilhas tecnológicas. A distopia seria este mundo dual, composto por humanos aperfeiçoados e humanos comuns.

Há dois pontos, aqui, que considero importantes a destacar: Fukuyama tem razão quando fala em segregação da humanidade em dois tipos, o problema é que isso que ele critica não é algo que “pode vir a ser criado pelos transumanistas”. É algo que efetivamente já ocorre! Nosso mundo é dividido entre alguns poucos que possuem recursos para uma vida boa, e muitos que vivem em uma constante situação de distopia. Ora, já existem os que estão em melhores condições do que os outros, que não o são necessariamente por mérito, mas por sorte de terem nascido em determinadas conjunturas. O avanço científico e tecnológico não vem aprofundar esta desigualdade, e sim diminuí-la. Quanto mais conhecemos sobre o mundo e quanto mais avançamos cientificamente, mais baratas e acessíveis se tornam as tecnologias que permitem viver bem. Coisas que eram caríssimas há dez anos, hoje são acessíveis a quase todos. Veja o exemplo dos remédios que controlam tumores do tipo GIST. Custavam dezenas de milhares de dólares na virada do século. Hoje, são fornecidos pelo SUS, e o governo os viabiliza por algumas centenas de dólares. Outro exemplo: em 1970, meu pai teve um filho que nasceu com distúrbio congênito cardíaco. A criança morreu. Na época, não havia tecnologia capaz de melhorar as condições dessa criança. No fim dos anos 90, um de meus sobrinhos nasceu com o mesmo problema cardíaco que matou meu irmão mais velho. A tecnologia, então, permitiu a correção do problema, e meu sobrinho tem hoje vinte anos, e já é pai. A tecnologia que salvou meu sobrinho está disponível para qualquer criança brasileira. Quando eu visitava meu sobrinho na casa de apoio à criança cardíaca, me deparava com crianças provenientes de lugares pobres, enviadas pelo SUS a São Paulo para serem operadas no Incor. A tecnologia permitiu, de forma objetiva, a diminuição do sofrimento e barateou com o tempo. Se há alguns que podem hoje pagar por tecnologias melhores, é questão de tempo até que tais tecnologias barateiem.

Por outro lado, posso citar o filósofo Jürgen Habermas. Em síntese, ele diz que a tecnologia muitas vezes não soluciona necessidades humanas, a tecnologia as cria. Além do que, mesmo tendo acesso a tecnologias incríveis que nos fariam parecer deuses para nossos bisavós, ainda assim tendemos a utilizá-las de um modo tosco. Eis a distopia: nós temos a internet e, com ela, poderíamos aprender sozinhos um monte de coisas interessantes. Aprender idiomas. Fazer cursos à distância. Ler livros. Mas a maioria de nós usa a internet apenas como uma rede social de contato com pessoas que, em sua maioria, não são realmente nossas amigas. Estamos simplesmente futricando a vida uns dos outros, mas poderíamos estar aprendendo grego, ou fazendo um curso online de astrofísica. E nos sentimos contentes com isso. Eis a distopia que não se percebe como tal.

Então, se há um risco para o transumanismo, eu diria que é este: uma tecnologia que nos converta em crianças superpoderosas cada vez mais mimadas e dadas a chiliques quando uma máquina quebra. Outro dia, eu testemunhei um escândalo protagonizado por um rapaz no momento em que o wi-fi do avião caiu, num voo Europa-América do Sul. Ora, até ano passado eu nunca tinha visto wi-fi num voo que cruzasse o Atlântico, e vivi muito bem sem isso. O escândalo que ele fez só seria justificável se tivesse faltado água no avião.

A distopia de nossos tempos é muito bem demonstrada na série Black Mirror: tecnologias incríveis sendo utilizadas para viabilizar nossa mesquinharia, nossa capacidade de oprimir, nossa priorização de coisas ridículas.

Considerando as obras clássicas de ficção científica, como os romances Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; A Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess; 1984 (1949), de George Orwell; Nós (1921), de Ievguêni Zamiátin – este é considerado o pai da distopia na literatura; e Admirável Mundo Novo(1932), de Aldous Huxley, você diria que as distopias previstas nesses livros estão acontecendo hoje no mundo de algum modo?

Eu diria que todas essas obras refletem coisas que ocorreram, que são contemporâneas aos autores e foram por eles testemunhadas. Estamos muito longe de podermos nos comparar com o nazismo ou o fascismo e, embora existam sementes disso em todo o mundo e eu as reconheça, eu fico sinceramente preocupado em gritar “fascismo” para tudo o que eu não goste. Sinto-me como na alegoria do menino que gritava “lobo!” a torto e a direito, até que um dia o lobo apareceu de verdade e ninguém acreditou. A semente da distopia sempre existe e sempre existirá, pois a degeneração é um risco constante no mundo real. Por isso mesmo essas obras que você citou são clássicas, elas são atemporais: elas falam de coisas que nunca cairão em desuso, justamente porque vivemos em um mundo real, e não em uma utopia.

Você concorda com a tese de que a concretização da distopia hoje se reflete nas escolhas políticas que reabilitam governos conservadores e de algum modo preconceituosos, como estamos vendo no Brasil, com Temer, que ataca os direitos dos pobres e trabalhadores, e nos Estados Unidos, com Donald Trump, que exerce a xenofobia? Faz sentido a pergunta: o que está acontecendo no mundo hoje?

Concordo parcialmente. Explico: não existe “concretização da distopia”, no sentido de algo que se estabelece e não pode ser mudado.  Qualquer distopia pode ser combatida e revertida, embora algumas sejam mais difíceis de solucionar do que outras. Se o Brasil está mais distópico, e eu acredito que de fato esteja, não há nada que não possa ser mudado. A resistência existe, de várias formas e em vários fronts. Esta resistência é individual e coletiva, eventualmente atrapalhada, eventualmente acertada, mas no Brasil ela é manipulada. Basta observar alguns dos ditos movimentos “contra a corrupção”. Claro que não são “contra a corrupção”. Ficaram e ficam quietos diante de exemplos bizarros de roubalheira, de abuso de poder e denúncias gravíssimas. O nível intelectual é tão baixo, que conseguem chamar o PT de “comunista”, um dos partidos que mais favoreceu bancos e empresários na história desse país.

Aponto também para o uso do termo “conservador” em sua pergunta. Embora eu me defina como progressista, não vejo com bons olhos a demonização dos conservadores. Progresso e conservação não são opostos inconciliáveis, são disposições que se completam e que demandam sabedoria para decidir o que deve progredir e o que deve ser conservado. Há coisas conquistadas em nosso processo civilizatório que demandam conservação. A própria preservação da natureza, os movimentos ecológicos trazem em si aspectos conservadores, em contraposição a um desenvolvimentismo a todo custo – este sim, distópico. Dito isso, entendo que muitos dos que se definem como “conservadores” nem isso são. Eles são regressistas, isto sim. Eles não querem conservar o que é bom para a polis, eles querem retroagir a um estado de coisas que era bom apenas para alguns. É o caso, por exemplo, dos que lutam para cancelar o direito aos homossexuais de se casarem no civil. No que muda a vida de alguém se duas pessoas do mesmo sexo decidem se unir por contrato civil? A partir de argumentos toscos que bebem de fontes das falácias mais vergonhosas, esses regressistas exploram o sentimento do medo para criar espantalhos – inimigos imaginários que justificam a gritaria por regressão.

Quanto ao que acontece no mundo, não é diferente do que sempre ocorreu. A existência é uma dança constante entre progresso, conservação e regresso. Não existe sofrimento que não possa ser repetido, nem mal que não possa ser combatido. Mas, tudo somado, estamos melhores enquanto humanidade do que estávamos antes. Sofremos regressões no Brasil? Sim. A condição de muita gente piorou individualmente? Sim. Nada irremediável, porém. Enquanto humanidade, e mesmo enquanto brasileiros em geral, a vida que levamos hoje é objetivamente melhor do que a vida que levavam os nossos ancestrais do século 20 (ou dos anteriores). O saudosismo que muitos sentem é uma forma sofisticada de autoengano, a não ser em alguns casos individuais em que o sujeito pode dizer “minha vida era objetivamente melhor antes”. O mais comum, contudo, é o tipo que vê no passado essa perfeição que jamais existiu – é exatamente a utopia, o lugar imaginário.

Governos distantes dos interesses da classe trabalhadora, que não precisam da força bruta, mas apenas do poder midiático para colonizar a consciência das pessoas são um sinal de que a distopia prevista pelos escritores, como George Orwell, está acontecendo?

Uma das principais inspirações de Orwell para escrever 1984 foi Nós, do russo Zamiátin. Ambos criticam o autoritarismo do Estado. A consciência das pessoas, em ambas as obras, está oprimida mais pelo medo do Estado do que pela sedução da mídia. Poderes autoritários intimidadores são mais fáceis de combater porque o mal está identificado. Mas o que fazer quando as pessoas estão seduzidas pelo poder midiático? É bem mais complicado, porque elas não sentem que estão sendo dominadas, e se convertem em papagaios de pirata.

Poderíamos dizer que no seu romance Dezoito de Escorpião a distopia se dá em algum plano, como no caso das doenças mentais?  

Dezoito de Escorpião tem como cenário principal uma eutopia que oferece nova oportunidade de vida para pessoas diagnosticadas com doença mental. Fica evidente que o mundo é apenas o mundo, mas para aqueles indivíduos singulares o mundo é mais que isso, é uma distopia, pois as correntes eletromagnéticas artificiais afetam sua sensibilidade especial. Um dos personagens, Ravi Chandrasekhar, capaz de antecipar perigos, usa essa capacidade como desculpa para tentar controlar tudo. Por considerar a humanidade incapaz de cuidar de si mesma, ele cria uma eutopia à qual as pessoas voluntariamente se submetem. O problema da eutopia de Ravi é que ela depende inteirinha dele e, por isso, é muito difícil sustentá-la.

O quanto a distopia é inerente ao gênero da ficção científica?

Não diria que a distopia é “inerente” à ficção científica, mas que se trata de um modelo recursivo bastante utilizado por autores diversos. O ato de retratar uma sociedade doentia confere carga dramática a uma história. Dificilmente alguém se interessaria por um romance destituído de um grave conflito central. Claro, há ficções eutópicas. O Esplendor, meu segundo livro, se passa em um mundo eutópico. Mesmo esse tipo de história, contudo, tem um ponto: o quanto dura uma eutopia? O que pode destruí-la? Quais são as sementes do mal, e de que forma elas brotam?

Nós, que escrevemos, contamos histórias, sabemos que elas precisam de sofrimento para existir. Uma história ficcional sempre será, em maior ou menor grau, uma história de sofrimento. Seja ele o combate contra o sofrimento que já se instalou, seja o susto diante do que tenta se instalar.

Por que o futuro é pensado de forma distópica pelos escritores que mencionamos?

Apesar de terem biografias bem distintas e terem vivido em contextos diferentes, há alguns pontos em comum nos autores que você citou. Eles mais falavam do presente e do passado do que antecipavam o futuro, ou, melhor dizendo, construíram mundos ficcionais nos quais o futuro se apresenta como repetição “vitaminada” do que eles mesmos testemunharam. Todos esses autores perceberam o que deveria ser mais óbvio para todos nós: a história se repete. E o mal, conforme pintado nessas obras, não é um monstro alienígena pandimensional. O mal, em todas essas obras que você citou, brota de nossa própria banal humanidade, é o autoritarismo cotidiano que se normaliza, a um ponto em que nos tornamos indiferentes a ele.

Orwell teve uma vida curta, viveu na primeira metade do século 20, tinha inclinações anarquistas e testemunhou a Segunda Guerra Mundial. Ele tinha horror a governos autoritários, e escreve 1984 tendo como pano de fundo a Inglaterra justamente como forma de alertar que o fascismo pode brotar em qualquer lugar, mesmo em um país tão civilizado. O próprio Orwell escreve isso em uma carta para um amigo, Henson. 1984 é um alerta: nenhum lugar está livre de virar uma distopia. Não se deve tomar a liberdade como garantida, nenhum povo está protegido da semente do fascismo.

Zamiátin, escritor russo que inspirou Orwell, começa como um socialista politicamente engajado, que apoia a Revolução de Outubro, mas que paulatinamente passa a se incomodar com a censura protagonizada pelos bolcheviques. Ele se inspira nas piores coisas do regime russo do início do século 20, e propositalmente se vale da literatura para ironizar os exageros. Escrever ficção passa a ser sua forma de engajamento político, tanto que sua obra mais conhecida, Nós, lhe rendeu a proibição de publicar qualquer coisa.

Bradbury, como Orwell, também escreve Fahrenheit 451 logo após a segunda guerra mundial. Diferente de Zamiátin, que usa o desapontamento com o socialismo russo como fonte de sua crítica, Bradbury diz, em mais de uma ocasião, que a distopia monstruosa e censuradora das liberdades individuais pode tanto vir da esquerda, quanto da direita ou do centro. Bradbury não está preocupado com uma orientação política específica. Ele se volta, isso sim, para as inclinações autoritárias humanas. Há algo em comum entre Bradbury e a filósofa Hannah Arendt: ambos veem males como o nazismo não como uma “monstruosidade”, mas como um mal banalizado.

Huxley escreveu Admirável Mundo Novo antes da Segunda Guerra Mundial, mas ilustra também as preocupações do escritor com o autoritarismo de Estado. Não me surpreende. Huxley viveu muitos anos na Itália da década de 1920, exatamente na época em que Mussolini arrebentou as proteções constitucionais que garantiam o direito de expressão e de associação.

Com as intervenções do Movimento Brasil Livre (MBL) fica claro que para as correntes conservadoras a arte só é aceita desde que não toque nos cânones da sociedade de consumo, como vemos nos casos noticiados pela imprensa, seja quanto à exposição em Porto Alegre, no MAM, em São Paulo, ou em outros casos. No livro Fahrenheit 451 a função dos bombeiros é queimar livros. E as pessoas que exercem a resistência acabam por decorar esses textos para mantê-los vivos. Como você vê essa desvalorização ou desejo de supressão da arte pelas sociedades distópicas?

Mas o mais irônico nisso tudo é que a própria arte dita pós-moderna, seja ela objetivamente boa ou ruim, também atende a uma sociedade de consumo. Quando movimentos conservadores acusam a arte pós-moderna de ser “esquerdista”, soam ingênuos. Se eu pego um bidê, pinto de cor de rosa e o ponho no meio de uma galeria conceituada e anuncio que a minha “obra de arte” custa trinta mil reais, haverá quem a compre simplesmente porque se sente adquirindo um produto diferenciado em um lugar cult, assinado por um artista cuja existência foi criada por empresários empolgadíssimos com a ideia de lucro fácil. Capitalismo escrachado. Não há nada de “socialista” nisso, é puro livre mercado: como há quem compre como forma de se sentir especial, da próxima vez ofereceremos um bidê sujo de vômito e pintado de azul.

Refiro-me, aqui, não à arte pós-moderna como um todo, porque existe a boa arte pós-moderna. O trabalho de Vik Muniz, por exemplo, lida com lixo, mas exige um altíssimo nível de domínio técnico e criatividade. Muniz é genial. Falo do “ruim” em um sentido objetivo: algo que não demanda nem um mínimo de domínio técnico. Qualquer um é capaz de pintar um bidê de cor de rosa, mas é preciso marketing para converter o banal em fenomenal. Marketing sem muito esforço, vale dizer. Bastam as validações impressionantes dos lugares e das pessoas para fazer algo tolo ser vendido por um preço tão alto.

Dito isso, quero aqui pontuar que o MBL não está preocupado com arte, nem com os museus (duvido que frequentem, mesmo quando há exposições de Rembrandt), não está preocupado com as crianças, com nada disso. Esses protestos são um espantalho: eles criam um demônio a ser combatido, e dançam loucamente em torno deste demônio, proferindo insultos. É uma forma de angariar poder político. Quando gritam “pedofilia”, se valem de uma palavra poderosa, capaz de arrastar as emoções dos outros e conduzi-los à fúria, sendo que poucos são os que irão pensar “será que havia, de fato, pedofilia?”. Indignação e ódio são emoções que se multiplicam e se propagam como fogo em palha, é só ver como isso funciona em redes sociais. A indignação é compartilhada sem que se verifique devidamente se o que se compartilha é real. E, sinto dizer, todos fazemos isso, sejamos de esquerda, de centro ou de direita. A estupidez se distribui farta e generosamente por todo o espectro político, e é mais desagradável ainda quando brota de nosso próprio lado – eu, por exemplo, me defino como de esquerda. O problema maior não é o escândalo dos burros, é o silêncio dos bons. Diante da estupidez recente do MBL, foram poucos os meus amigos de direita que se insurgiram e os criticaram. Fiquei feliz ao constatar que alguns, contudo, o fizeram. Do mesmo modo, creio ser uma obrigação moral reclamar quando a esquerda – meu lado do espectro – comete tolices. Ora, eu mesmo quero que me puxem a orelha se e quando eu cometer tolices. Só que, para muitos menos dotados intelectualmente, o ato de discordar já lhe converte em “traidor do movimento” e, por isso, há quem prefira ficar calado. Calar-se é uma forma de garantir o lugar na tribo. O lugar vale tanto assim? Eu acho que não. Nenhum lugar vale nossa submissão voluntária.

Palavras têm poder, e não é à toa que a literatura fantástica atribui poderes mágicos a elas. “Abracadabra”, por exemplo, talvez tenha origem hebraica, “aberah kedabar”, “criarei conforme falarei”. E assim é com gritos vazios: enquanto falo, crio efeitos mágicos. Como “pedófilo”, proferido por alguns movimentos de direita e, convenhamos, há o equivalente disso em alguns de esquerda, que gritam “nazista!” para seus desafetos, sejam lá quem forem. Há uma piada sobre isso: “todo mundo que eu não gosto é Hitler”. É bem verdade que muita gente de esquerda às vezes derrapa e faz isso. O equivalente, em alguns nichos da direita, é “todo mundo que eu não gosto é pedófilo”. Essa gritaria é uma forma de tentar exercer poder mágico por meio de palavras de efeito, justamente porque tais líderes não vicejam em um diálogo que demande maior elaboração mental. Eles são os prestidigitadores dos tempos atuais. Distraem você enquanto o truque é feito e, quando você se dá conta, arrancaram um coelho – no caso, um político instantâneo – da cartola.

Que outras características da distopia você vê na humanidade hoje?

Dentre todas as características que favorecem distopias, a maior delas me parece ser o nosso empenho em converter o planeta em um lugar inóspito para nós mesmos. Quando se diz que estamos destruindo o planeta, eu costumo corrigir, e respondo que não estamos. O que nós estamos destruindo são as condições que nos permitem viver bem neste planeta. Somos capazes de extinguir a nós mesmos e a muitos outros animais, mas a vida continuaria a existir, ainda que apenas na forma de bactérias extremófilas. Afinal, o que é distópico para nós pode perfeitamente ser eutópico para uma bactéria que adora radiação, como a Deinococcus radiodurans. Ou para baratas. Se isso vier a ocorrer (e talvez já tenha ocorrido inúmeras vezes ao longo da galáxia, em outras épocas e civilizações), o universo não sentirá a nossa falta.

Dodsworth em Veneza: pesquisa com o transumanismo para que a tecnologia seja aliada da qualidade de vida, Foto: arquivo pessoal

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