Patricia Fachin – IHU On-Line
“A tese do ‘pragmatismo radical’ é uma tentativa de escapar dos dilemas infinitos e entediantes sobre a unidade ou o futuro da esquerda”, afirma Moysés Pinto Neto à IHU On-Line, ao explicar o “oximoro provisório” que vem adotando em suas análises políticas. Segundo ele, “a palavra ‘pragmatismo’ quer dizer que temos que realmente querer aquilo que dizemos. (…) O pragmatismo a que me refiro não é do acordão com o PMDB, mas o que efetivamente quer derrotar o PMDB. E para isso temos que pensar estratégia, temos que ler os pontos fracos, temos que estudar os movimentos do adversário e fazer o que é necessário”.
Além do pragmatismo, Moysés Pinto Neto aposta no “perspectivismo político”, que tem raízes em Nietzsche e “consiste na concepção de que o mundo é habitado por diferentes sujeitos, humanos e não-humanos, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”, explica.
Na avaliação dele, a identidade da esquerda que mantém a luta de classes como horizonte, e a manutenção de um posicionamento próximo do centro nas campanhas eleitorais e concessões à direita durante as gestões dos governos progressistas, foram alternativas adotadas nos últimos anos, mas “não vêm funcionando”. Na direção contrária, Moysés sugere o pragmatismo e uma aproximação com o centro político. “O centro é relevante por duas razões: primeiro, para fechar a janela e resistir, com um bloco majoritário, contra a ascensão dos discursos fascistas; segundo, porque durante esse tempo ainda precisamos aprimorar um programa alternativo, que está longe de estar bem definido. Precisamos ganhar tempo. (…) Quanto mais desprezamos o centro, a mais distância ficamos da maioria e por isso menor a chance de espaços na democracia representativa”, defende.
Moysés Pinto Neto também chama atenção para “o déficit teórico e a falta de alternativas” à esquerda. “Você vê muita gente compartilhando críticas ao neoliberalismo, mas existem poucas reais alternativas”; entre elas, pontua, a “crítica pura e simples”, uma proposta “desenvolvimentista” que aposta na “volta do Estado de bem-estar”, ou a sugestão da instituição de uma “renda mínima”. Entretanto, assegura, “não há saída econômica enquanto persistir a ideia de crescimento”. E adverte: “A solução não é acelerar o crescimento, mas buscar transformar nossas formas de vida de modo que transformemos o próprio conceito de desenvolvimento (por um envolvimento, quem sabe). Repensar o Estado, nossa organização política, nossa organização espacial entre as cidades, os modos de produção e organização do mercado, as possibilidades de encontrar em outras referências respostas aos nossos problemas. Não há estratégia econômica dentro do quadro atual que possa contemplar e garantir a qualidade de vida de todos. É só colocando em xeque as premissas, os valores do crescimento, que poderemos pensar em alternativas para além da instrumentalização do que anda em piloto automático”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pinto Neto diz ainda que o pragmatismo radical e o perspectivismo político ainda não são compreendidos pela esquerda por conta de uma “atitude de superioridade moral” que dispensa “inclusive a compreensão dos motivos do outro. Dispensa-se a participação dos aliados potenciais. Hoje, para você entender as motivações do “outro lado”, tem que pedir uma série de desculpas, quando não sai confundido junto com ele e potencialmente linchado”, diz.
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra Canoas.
Na semana passada, ele esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrou a palestra Perspectivismo Político e Pragmatismo Radical. Possibilidades para a reinvenção da política.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você tem dito que é impossível desenvolver uma saída para a crise sem o mínimo de perspectivismo político. Como chegou a essa proposta? Pode nos explicar melhor em que consiste essa ideia? Por que o perspectivismo é a melhor saída?
Moysés Pinto Neto – A ideia de perspectivismo, que remete a Nietzsche, recebeu novas cores quando os antropólogos Tânia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castro propuseram interpretar o pensamento indígena a partir dessa chave. Para Viveiros de Castro, o perspectivismo é irredutível ao relativismo (com o qual mantém uma relação ortogonal) e consiste na concepção de que o mundo é habitado por diferentes sujeitos, humanos e não-humanos, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. No contexto da virada especulativa (tanto na Antropologia quanto na Filosofia), essas ideias vão se desdobrar até uma dimensão em que não estão em jogo apenas questões epistemológicas, mas a própria pluralidade imanente de mundos que são habitados de acordo com diferentes pontos de vista, multiplicando o próprio conceito de “natureza”, cuja oposição à “cultura” mantinha, mesmo no pós-modernismo, uma reserva para a filosofia ocidental.
Somado a isso, um ensaio do filósofo Rodrigo Nunes (“Geração, Perspectiva, Acontecimento”), com insights fundamentais acerca da relação entre transição geracional e os acontecimentos de 2013, sustenta a necessidade de “perspectivarmos” — à época — as relações entre a esquerda institucional, mais voltada à Realpolitik, e os novos movimentos autonomistas, desenvolvendo uma espécie de dialética interna como resposta à progressiva erosão que ia se estabelecendo mediante feedbacksrecíprocos. Algum tempo depois, publiquei um texto chamado “Juventude em Chamas“, também sobre 2013, no qual debatia com Rodrigo e sustentava que teríamos que levar esse perspectivismo até mesmo a segmentos identificados com a “direita”, rapidamente descartados pela esquerda na época como “coxinhas”, politizando as lutas contra a corrupção, saúde e educação que eram as pautas quase universais de 2013. Isso não aconteceu. Na realidade, foram think tanks de direita que, na crise do segundo governo Dilma, capitalizaram essa energia revoltada e hoje sentimos o reflexo mais doloroso, que é — diante do descrédito geral das instituições — o surgimento do fascismo enquanto “pessimismo desorganizado” tal como Walter Benjamin dissera — e já constava como possibilidade aberta naquele ensaio.
Ecossistemas virtuais
A profusão de linhas de subjetivação formadas a partir da política do algoritmo em que vivemos, vulgarmente chamadas de “bolhas”, proporcionou uma espécie de versão reduzida desse multicosmo de pontos de vista nas redes sociais. Ao longo dos últimos três anos, ecossistemas virtuais têm sido reforçados na direção de proporcionar uma composição altamente heterogênea, mas organizada em torno de significantes vazios. A polarização formada nas eleições de 2014 entre direita e esquerda, resultado de uma campanha marcada por essa ortopedia de linhas transversais que haviam se formado no ano anterior, vai dividir o largo ecossistema de 2013 em dois, formando o universo vermelho e o universo azul. Ainda lembrando os trabalhos de Rodrigo Nunes, a distinção que ele faz entre “sistema-rede” (que chamo ecossistema) e “movimento-rede”, que seria uma graduação da escala entre organização e consistência, mostra que uma paleta heterogênea de movimentos-rede se articularam em torno a um eixo e flutuam, conforme o assunto, sem se desconectar necessariamente de todo resto nas divergências.
O ruim desse processo é que as próprias análises feitas pelos intelectuais se fecharam nos respectivos ecossistemas. A narrativa que costuma acompanhar o golpe parlamentar, por exemplo, é uma análise conglobante de tentar abranger de ponta a ponta – do macro ao micro – todos os espaços de imponderabilidade e jogo que existiam no tabuleiro político até então, funcionando rigorosamente a partir de todos os marcos referenciais do ecossistema vermelho. Ela pretende explicar “de fora”, como se o analista dispusesse de um ponto de vista alheio aos pontos de vista, possibilitando ligar da geopolítica até a micropolítica, do Pré-Sal até a alergia da classe média ao pobre. O efeito disso é um abismo ontológico cada vez mais profundo e amplo entre perspectivas, fazendo com que as próprias pontes de diálogo sejam substituídas por um discurso bélico que pressupõe a adesão a uma identidade rigidamente marcada pelo campo de origem. Isso vira condição de entrada. O próprio debate mais ou menos cômico de se a esquerda “deve aceitar” o apoio de artistas que apoiaram o golpe na resistência ao fascismo que ataca obras de arte, é indicativo disso.
Por outro lado, Viveiros de Castro também coloca o “xamanismo” como uma das características do perspectivismo indígena. O xamanismo é “a habilidade de certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades aloespecíficas, de modo a administrar as relações entre estas e os humanos” (“A Inconstância da Alma Selvagem“, p. 358). Nesse momento, dada essa imensa distância, talvez uma das possíveis vias seja tentar imitar (seguir o exemplo) dos xamãs e habitar o ponto de vista alheio. Como Viveiros afirma, isso não significa um autocancelamento, uma vez que o xamã não quer “objetivar”, mas “personificar” o conhecimento, maximizando a intencionalidade. Desse modo, em vez de lutarmos contra as forças invisíveis da catástrofe por vir, faríamos um escrutínio das intencionalidades que habitam esses outros pontos de vista, possibilitando visualizar o tabuleiro político como uma conjunção de pontos de vista heterogêneos que se cruzam sem que um intelecto exterior e unificador possa, desde fora, julgá-los simplesmente.
Um exemplo disso tem sido a difícil tarefa de compreender, no âmbito das “guerras culturais“, como funciona o outro polo. Contribuições como de Nancy Fraser, Dale Beran e Angela Nagle, entre muitos outros, têm tentado trazer esses elementos. Nesse ponto, não concordo com Rodrigo, quando disse, na entrevista em que também concedi ao IHU, que Nagle sofreria de “déficit de perspectivismo”, uma vez que projetaria um “bom senso” nos trolls que, no fundo, rejeitariam qualquer tipo de crise dos seus privilégios. Por um lado, entendo e concordo que a própria ideia de “guerras culturais” pode passar uma imagem de simetria quando, a rigor, trata-se de minorias lutando por direitos iguais. Entretanto, é preciso ver isso a partir de dois componentes: em alguma escala, e isso Nancy Fraser, por exemplo, destaca, existe um cruzamento de ressentimento de classe que complica os vetores oprimido/opressor que a política de identidades costuma usar. Há um encontro entre a revolta contra as elites políticas e econômicas que, em certo momento, respinga nas elites culturais. Isso é até mais visível no Brasil, provavelmente.
Segundo, a dinâmica de feedbacks que forma uma estrutura oposicional entre o “Tumblr Liberalism” e os trolls do 4Chan se estabelece não apenas no nível básico de afirmação de direitos, mas justamente a partir do destaque em torno aos exageros. Estruturalmente, e esteticamente, esse movimento de resposta que dá ares transgressores a pautas conservadoras e por vezes até fascistas abastece-se dessas curvaturas. Portanto, não acho que Nagle sofra de déficit de perspectivismo, mas o contrário: ela conseguiu visualizar o que é o combustível que alimenta trolls, mesmo que isso signifique algo moralmente inaceitável para nós. Devem ser publicados em breve dois ensaios – um sobre um episódio da série Black Mirror (“The Waldo Moment”), e outro sobre o filme “Taxi Driver” -, nos quais tento inclusive formalizar essa estrutura, mostrando como os sinais invertidos proporcionam uma forma de reforço infinito.
O potencial do perspectivismo, entre muitos outros, é o de poder desenhar saídas desses impasses nos quais parece que todos os recursos que utilizamos não dão conta.
IHU On-Line – Por que seria melhor para a esquerda se aproximar de uma visão de senso comum? Considerando o senso comum, que ideias deveriam compor uma proposta de esquerda?
Moysés Pinto Neto – Primeiro, teria que dizer que cada vez me sinto menos confortável teorizando sobre a “esquerda”. A tese do “pragmatismo radical” já é uma tentativa de escapar desses dilemas infinitos e entediantes sobre a unidade ou o futuro da esquerda. Em geral, hoje em dia a esquerda não tem sido um atalho cognitivo para posições políticas, como deveria ser, mas um lugar de não-pensamento.
Dito isso, não creio que a esquerda deva simplesmente reproduzir o senso comum, mas deveria estar atenta a ele. O falibilismo que costuma habitar as impressões baseadas na experiência não é desprezível. Ou seja, quando nos jogamos em caminhos muito arriscados para o qual não temos boas respostas, em geral o senso comum tende a nos abandonar. Esse conselho é uma prudência que não pode ser simplesmente desprezada.
Estrategicamente, esse debate está posto no mundo inteiro. Como simplificar nosso vocabulário numa época em que as demandas são prementes? Boa parte do desperdício da janela de 2013 está em não compreender como demandas simples, do senso comum, podem ser revolucionárias. Imagine-se, por exemplo, o que seria uma resposta à altura das demandas por saúde e educação que permearam 2013. Uma recuperação da escola pública, com investimento maciço e mudança de currículo, a universalização do saneamento básico e a construção de redes de saúde poderiam ter dado a tônica daquele momento. Em vez disso, a esquerda queria sua própria pauta, a reforma política, que estava na agenda – mas não sincronizou com as demandas.
Não quero dizer que o senso comum é infalível. O senso comum pode ser bastante equivocado. Mas o problema é transformar nossas pautas em senso comum. Como produzir condensações – memes, eu diria – que sejam capazes de multiplicar por contágio viral. Esse é o esforço a que me refiro.
IHU On-Line – Por que o centro político é tão importante na sua análise política e por que você aposta em trazer o centro para o lado da esquerda e não o contrário?
Moysés Pinto Neto – O centro é relevante porque é majoritário. Ele corresponde ao “indeciso”. A maioria não é necessariamente conservadora, mas simplesmente se baseia em parâmetros que possam ser aceitos com razoabilidade. Evidentemente, diante de uma perspectiva revolucionária isso parecerá conservador. Mas é mais ou menos um elemento de prudência.
Quanto mais desprezamos o centro, a mais distância ficamos da maioria e por isso menor a chance de espaços na democracia representativa. Eu até acho que debater a democracia representativa é uma das nossas tarefas, assim como debater a própria existência do Estado. Porém isso não elimina a necessidade de dar respostas agora. Quando você pensa no período de 2002 a 2008, existia uma preocupação substantiva de convencer quem pensa diferente. Os argumentos normalmente cortavam as pontas hiperbólicas, controlavam as figuras de expressão, afastavam as identidades e buscavam se comunicar com quem não necessariamente compartilha a mesma visão de mundo. A partir de um certo momento, com a alta popularidade dos governos Lula e Dilma, isso tudo começou a ficar em segundo plano. A afirmação identitária passou ao primeiro, colocando-se à frente do próprio tema debatido. A sensação de copertencimento passou a ser mais relevante que o conteúdo e os pontos frágeis não puderam mais ser levantados. Isso vai provocando o distanciamento do centro, da posição pragmática que só quer saber o que funciona. O centro é anti-ideológico. Ele não suporta que um pacote de crenças comande a deliberação, quer debater caso-a-caso. O centro prefere a razoabilidade à coerência. Ele é fragmentário.
O segundo ponto é que não temos um centro sólido no Brasil, o que nos coloca sempre sob risco de golpe das forças oligárquicas. O fato de não existir uma cultura de respeito à institucionalidade, um chão mínimo de direitos, faz com que estejamos sempre sob a espreita da violência fascista. O centro funciona muitas vezes como amortecimento das altas voltagens e permite certa dose de prudência necessária. Na maioria dos países do Norte, não existe ameaça, por exemplo, de uma virada militar. Isso não se discute. Então acho que esse é um papel interessante que o centro desempenha e que não pode ser simplesmente desprezado, porque a promessa do novo não é necessariamente redentora. O perigo não é só para melhor, também podemos piorar muito. A própria ficção científica nos apresenta cenários em que isso é visível.
O texto “Identidade de Esquerda ou Pragmatismo Radical?” é uma tentativa de esboçar, desde alguém com o ponto de vista de esquerda, um perspectivismo do centro, assim como os outros dois que mencionei acima são esboços de perspectivismo da direita.
Há ainda um terceiro ponto: como uma recente reportagem da Vice mostrou, a extrema-direita cresce no mundo inteiro e sua grande aposta é aproveitar a “janela de Overton” para introduzir temas no debate público que haviam sido arquivados progressivamente ao longo do pós-Segunda Guerra Mundial. Para muitos da esquerda, isso é a morte do centrismo, que teria colapsado com o Brexit e a eleição de Trump. Nossa tarefa agora é radicalizar à esquerda e propor novas alternativas. Até certo ponto, concordo com o diagnóstico. No entanto, o centro é relevante por duas razões: primeiro, para fechar a janela e resistir, com um bloco majoritário, contra a ascensão dos discursos fascistas; segundo, porque durante esse tempo ainda precisamos aprimorar um programa alternativo, que está longe de estar bem definido. Precisamos ganhar tempo.
IHU On-Line – Como, na sua compreensão, a proposta do perspectivismo político é vista pelas esquerdas hoje no país? Quais são as dificuldades de entender ou aceitar essa proposta?
Moysés Pinto Neto – Não existe. E não existe por uma razão bem simples: certeza moral. Na verdade, não sei traduzir isso, mas seria: self-righteous. A atitude de superioridade moral é a predominante. Dispensa-se inclusive a compreensão dos motivos do outro. Dispensa-se a participação dos aliados potenciais. Hoje, para você entender as motivações do “outro lado”, tem que pedir uma série de desculpas, quando não sai confundido junto com ele e potencialmente linchado.
Com o tempo, comecei a perceber que esse problema traz pelo menos três consequências graves: o primeiro, uma percepção equivocada sobre o tamanho do “condomínio”. Ainda há quem defenda ideias como de uma revolução com base da força, quando a maioria simplesmente não se identifica com esses ideais, inclusive a parte mais pobre da população. Segundo, esse dimensionamento errado acaba provocando um progressivo ensimesmamento da linguagem que, ao mesmo em que se vangloria da sua superioridade moral, lamenta melancolicamente o isolamento social. Além da posição inócua (“vem, Meteoro”, “vou estocar comida” etc.), ainda pode ter o rebote de provocar o ressentimento popular canalizado contra elites culturais, como vimos no caso do MAM (Museu de Arte Moderna). Finalmente, a atitude também gera um enfraquecimento dos nossos argumentos. De tanto se considerar superior, começa-se a esquecer que é preciso fundamentar as próprias posições para convencer o outro. E isso tem servido como espécie de álibi para não reconhecer a própria fragilidade teórica ou incapacidade de formular alternativas positivas. É um modo de fugir de questões difíceis.
IHU On-Line – Você e outros autores têm chamado atenção para o déficit teórico da esquerda em relação à falta de propostas alternativas ao neoliberalismo. Por que há essa dificuldade, na sua avaliação? O que seria uma alternativa neste caso e que questões deveriam compor uma agenda econômica à esquerda?
Moysés Pinto Neto – O déficit teórico e a falta de alternativas vêm mais ou menos juntos. Você vê muita gente compartilhando críticas ao neoliberalismo, mas existem poucas reais alternativas. Eu citaria pelo menos quatro grupos aí.
O primeiro é o da crítica pura e simples. Pense, por exemplo, num Mike Davis. A lógica neoliberal soterra tudo e não deixa espaço para mais nada. Todo esforço micropolítico é capturado pela mesma máquina de produzir neoliberalismo. A totalidade sufoca, não resta espaço a partir para a própria crítica. Mas, em termos de uma imaginação alternativa, pouco ou nada resta. Muitas vezes esse discurso confunde-se com a demanda por resistir, que no fim das contas pode até ser prudente, mas não tem base para durar para sempre. Precisamos resistir às mudanças na CLT de um congresso apodrecido e completamente dominado pelas forças do capital? Sem dúvida. Porém, se não tivermos ideias alternativas sobre o mundo do trabalho, um dia – numa conjuntura desfavorável – a porteira cai. Acho que o livro de Naomi Klein “No is not enough” vai por aí. Todo mundo, depois de Trump, está inclinado a acreditar que o Occupy (e todas as analogias a respeito) foi importante, mas é preciso ir além da resistência e inventar algo novo.
O segundo grupo é o desenvolvimentista e da volta do Estado de bem-estar. Aqui está o grande bloco da esquerda intelectual brasileira, mesmo discordando entre si (ex., André Singer, Chico de Oliveira, Jessé Souza). Já vimos que a coisa não funcionou bem devido ao patrimonialismo que confundiu desenvolvimento econômico com o enriquecimento dos oligopólios plutocráticos que saquearam o Estado, então por que não dizer simplesmente que não existe isso — o patrimonialismo? Ironias à parte, não vejo como isso pode vingar se as condições sociais e materiais são completamente diferentes do mundo industrial do fordismo, com domínio dos Estados nacionais, pacto entre burguesia e classe trabalhadora organizada, demanda por crescimento e outros elementos daquele momento. Há propostas mais interessantes dentro desse espectro, como o social-desenvolvimentismo do Marcos Nobre e da Laura Carvalho, mas ainda vejo limites bem substantivos nessas propostas.
O terceiro grupo, que acho bem mais interessante, é o que investe na ideia de renda mínima. Eles vão desde ideias mais radicais, como reestruturar todo Estado ou até ir além do Estado (inspirado nas ideias de Toni Negri), até usar como saída de emergência (dentro de um social-liberalismo). Curioso porque o próprio establishment, como gente como Mark Zuckerberg e Klaus Schwab, começa a bancar a ideia. No Brasil, temos muita gente que já defendia isso há muito mais tempo, como Giuseppe Cocco, Bruno Cava e outros. E há quem hoje pense isso em conexão com os que tentam recuperar o marxismo em diálogo com o novo populismo do Norte (Sanders, Corbyn, Melenchonetc.), como o Victor Marques ou o ecossocialismo, com a Sabrina Fernandes e o Alexandre Costa Araújo. O interessante do populismo é que ele é mais e menos radical que a esquerda brasileira (PT e PSOL): de um lado, evita a simbologia e a identidade, procurando equilibrar-se com o senso comum; de outro, procura ir além da conciliação dentro do neoliberalismo, pautando-se a partir de demandas que possam realmente transformar o consenso social – e colocando em questão a ideia de futuro. Nas vertentes não apenas social-reformistas (“neoliberalismo progressista“), a pauta do comum entra como elemento de construção de outra lógica de mundo.
O último grupo, no qual me incluo, diria que não há saída econômica enquanto persistir a ideia de crescimento. É impossível, no contexto atual, continuar produzindo e acelerando a fim de alimentar o imaginário consumista. Ele só produz frustração e é profundamente niilista, chegando a desprezar a própria subsistência da Terra e das outras espécies no seu limite. Para essa visão, enquanto perdurar o modelo atual, estaremos sempre diante do mesmo dilema. A solução não é acelerar o crescimento, mas buscar transformar nossas formas de vida de modo que transformemos o próprio conceito de desenvolvimento (por um envolvimento, quem sabe). Repensar o Estado, nossa organização política, nossa organização espacial entre as cidades, os modos de produção e organização do mercado, as possibilidades de encontrar em outras referências respostas aos nossos problemas. Não há estratégia econômica dentro do quadro atual que possa contemplar e garantir a qualidade de vida de todos. É só colocando em xeque as premissas, os valores do crescimento, que poderemos pensar em alternativas para além da instrumentalização do que anda em piloto automático. Porém, quando fomos chamados ao debate, a atual Presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, chamou-nos de “minorias com projetos ideológicos irreais”.
Evidentemente, não divido isso em grupos estanques e espero que as pessoas não fiquem chateadas comigo por as mencionar (foi um elogio). Muitos compartilham muitas coisas em comum: eu mesmo sou bastante simpático ao terceiro grupo.
IHU On-Line – Entre as saídas adotadas pela esquerda, você tem apontado duas possibilidades recorrentes: a) assumir plenamente a identidade e manter a luta de classes como horizonte; e b) a manutenção de um posicionamento mais próximo do centro nas campanhas eleitorais e concessões à direita durante os governos esquerdistas. Para além dessas duas, você sugere uma terceira, a qual denomina de pragmatismo radical. Por que essa visão é melhor e tem mais possibilidade de dialogar com os novos movimentos e coletivos que estão surgindo?
Moysés Pinto Neto – A expressão “pragmatismo radical” é o oximoro provisório que venho adotando. A palavra pragmatismo traz a ressonância do acordão, da concessão, da conciliação. Já a palavra “radical” traz a ressonância do sectarismo. Usei uma para equilibrar a outra. Mas não sei se essa construção funciona realmente. Talvez precise de outra expressão melhor.
Sobre os pontos a) e b), o problema é que ambos não vêm funcionando. Sempre se pode dizer “mais um esforço”, e considerar que é a visibilidade da esquerda que está promovendo a reação — e, portanto, estamos no caminho certo. Como sou um pacifista (para muitos isso é defeito), não consigo visualizar nas metáforas bélicas a saída. Por ali, em geral, só nos vejo esmagados pelos que dominam a linguagem e a prática da violência. Minhas saídas em geral são pela evasão.
Porém, ao mesmo tempo, a palavra “pragmatismo” quer dizer que temos que realmente querer aquilo que dizemos. Como disse atrás, a atitude de “self-righteous” da esquerda é sua ruína. Nós queremos realmente que nossas ideias vençam ou entramos em um debate apenas para asseverar nossa superioridade moral? Pode parecer meio banal isso, mas fico impressionado com a quantidade de interações em que visualizo o desprezo pela prática da esquerda. Ou seja, entra-se na disputa apenas para “marcar posição”. O pragmatismo a que me refiro não é do acordão com o PMDB, mas o que efetivamente quer derrotar o PMDB. E para isso temos que pensar estratégia, temos que ler os pontos fracos, temos que estudar os movimentos do adversário e fazer o que é necessário.
O que mais vejo nas redes sociais é a pessoa postar coisas radicais que eu me pergunto: “ok, mas o que você quer com essa postagem?”. Tenho quase certeza que é só narcisismo mesmo. A pessoa não quer efetivamente construir nada. Nesse ponto gostei muito das últimas intervenções da Tatiana Roque ao IHU e El País Brasil, em que ela mostra a impostura dessa atitude radical que só fala para si mesma, que é quase uma estetização consumista das ideias de esquerda, mais ou menos como vestir camiseta do Che.
IHU On-Line – Nesta semana o PSOL anunciou que possivelmente Guilherme Boulos será seu candidato à presidência em 2018. Ainda se especula em torno de outros nomes à esquerda, como Lula e Ciro Gomes. Como vê essas possibilidades?
Moysés Pinto Neto – A entrada de Boulos para mim diria duas coisas ao mesmo tempo: primeira, que o PSOL se abriria pela primeira vez a uma liderança social com base real. Com isso, a imagem associada à política impetuosa de Diretório Acadêmico sem conexão com o resto da sociedade, que acabou prevalecendo na candidatura de Luciana Genro, fica modificada para melhor. O MTST é um movimento de peso e ator político relevante do cenário nacional. No entanto, ao mesmo tempo a ligação de Boulos com Lula e o PT é intensa e isso leva o partido novamente ao dilema que constantemente tem que enfrentar: de se tornar realmente uma força independente, com programa e estratégia própria, ou continuar como satélite/superego do PT. Desde 2013, parecia que PSOL e REDE se tornariam novas forças políticas capazes de expressar a multiplicidade da esquerda irredutível ao projeto petista, com o PSOL tendo um viés mais radical e a REDE mais voltado para o centro-esquerda ecológico.
Ambos os projetos, no entanto, continuam com dificuldade de decolar: a REDE vem desempenhando um papel importante na interpelação judicial dos absurdos que vêm promovendo Governo e Congresso, mas cada vez mais se conecta exclusivamente ao Poder Judiciário e demora para se aproximar de bases sociais sólidas; o PSOL, por outro lado, paga um preço caro pelo papel que escolheu em 2014, quando lança uma candidatura apenas para “marcar posição” e imediatamente adere, por meio de nomes importantes do partido e sem qualquer contrapartida do PT, ao “voto crítico”. A diminuição do apoio a Marcelo Freixo nas eleições de 2016 é o preço que a associação custou, na medida em que não conseguiu se firmar como campo independente e com isso acabou preso ao nicho universitário da esquerda cultural. Por mais fortes e coesos que possam ser esses coletivos e movimentos, são uma minúscula, irrisória fatia da população no nível eleitoral. A escolha de Boulos reforçaria a ambiguidade da posição política do PSOL em relação ao PT. Para crescer, o PSOL terá que ser salvo de si mesmo por movimentos de ocupação da política que, desde fora, encontrem no partido um lugar para introduzir-se no cenário eleitoral e consigam movimentar as energias que a burocracia partidária não dá vazão — como aconteceu com o Muitas em BH.
Ciro Gomes eu não votaria, mas acho um nome respeitável. É um desenvolvimentista típico e esse segmento da sociedade mereceria representação. Ele e Marina representam as duas alas do lulismo, sendo ele a vencedora (via Dilma). É justo que ainda haja essa alternativa na eleição; porém não é a minha. Além disso, Ciro parece bastante desconectado das lutas pós-2013 na sociedade brasileira, muito especial das políticas de identidade, seguidamente utilizando metáforas falocêntricas para expressar sua competência e a necessidade de uma liderança masculina na política. Os recentes comentários recíprocos entre ele e Bolsonaro, assim como elogios antigos do ideólogo da extrema-direita Olavo de Carvalho, mostram que essa relação é nítida. Apesar disso, jamais simplesmente nivelaria Ciro com esses boçais.
Finalmente, sobre Lula, acho lamentável a candidatura, porque é um imenso déficit de renovação política, um nome que nos paralisa na mesma cena e inclusive põe em risco a radicalização de setores que deveriam ficar em silêncio. Teria muito mais outras coisas para dizer, mas fico por aqui. Se Lula conseguir concorrer, contudo, é fortíssimo candidato. Acho que ganha o pleito, inclusive.
IHU On-Line – Você reconhece uma espécie de perspectivismo político em algum dos possíveis candidatos à presidência ou em algum político brasileiro?
Moysés Pinto Neto – Não, em nenhum. Ainda, ao menos. Lula, na verdade, mantém alguma capacidade plástica de fazer muitos jogos simultaneamente, como afirmando que Dilma provocou o sentimento de traição dos seus eleitores ao fazer o ajuste fiscal (agradando a base de esquerda), mas tendo pouco tempo atrás dito que teria nomeado, no lugar dela, o próprio Henrique Meirelles como ministro da Fazenda (agradando o mercado). Esse jogo, no entanto, não provoca um diálogo frutífero (como se espera do perspectivismo), mas o inverso: uma manipulação suja em que a militância cobra tudo dos adversários e tolera todos os erros do seu candidato, exatamente como acontecera em 2014 com Marina Silva. Assim, todos os “pecados” do PT são veniais, enquanto qualquer um dos outros é mortal. Como vimos logo após a eleição, parece que o problema não eram os bancos, mas o banco certo: Bradesco, não Itaú.
IHU On-Line – Estamos comemorando 100 anos da Revolução Russa. O que a esquerda reproduziu da matriz dessa Revolução que não deveria ter reproduzido?
Moysés Pinto Neto – O estalinismo, sem dúvida, que continua vivíssimo entre nós. A patrulha, o policiamento e a ideia de que criticar é ser contrário, são indicativos de que isso ainda é bem atual. É o que acontece com quem acha que 2013, por exemplo, é responsável pelo fascismo, como se quem ousa contestar a burocracia governamental estivesse cometendo uma forte heresia e provocando o enfraquecimento da unidade necessária. Tem um texto que escrevi chamado “Para uma esquerda sem Vaticano Vermelho” em que vou nessa linha.
Além disso, também o imaginário crescimentista da Modernidade precisa ser colocado em questão. É uma longa história.
Assista à integra da palestra de Moysés Pinto Neto no IHU, em 25/10/2017.