Mar indígena

Índios fazem curadoria e criam obras comissionadas para o MAR. Encontros com curadores do museu definiram o que é urgente mostrar

 Márion Strecker, em seLecT

Dja Guata Porã é uma expressão guarani, uma das mais de 270 línguas faladas ainda hoje no Brasil sem que a maioria dos brasileiros se dê conta. Significa “caminhar junto”, “um coletivo de caminhar bem”, explica a cocuradora Sandra Benites, ela mesma guarani. A expressão deu título tanto aos encontros preliminares entre indígenas e curadores quanto à exposição que ocupa o terceiro andar do Museu de Arte do Rio (MAR), até março de 2018.

O Brasil não conhece o Brasil, ainda que, dos 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro, 89 tenham pessoas que se declarem espontaneamente indígenas, segundo registro do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Tijuca, Ipanema, Jacarepaguá, Paraty, Niterói e Itatiaia são alguns exemplos dos nomes indígenas que herdamos dos nativos. Carioca é o nome de um rio que hoje passa escondido debaixo das ruas da cidade. A palavra vem da aldeia tupinambá Kariók, localizada aos pés do que depois foi chamado de Outeiro da Glória.

A exposição do MAR veio para mostrar um pouco do pensamento, da arte, da vida e da história dos indígenas que residem atualmente no estado do Rio de Janeiro e resistem à violência dos que se acham donos da nação, embora pouco saibam da história pregressa do Brasil. Assim é que a breve e ainda atual história da Aldeia Maracanã aparece.

A Aldeia Maracanã fica num prédio de arquitetura eclética do século 19, ao lado do Estádio do Maracanã. Esse edifício foi cedido, em 1910, ao Serviço Nacional de Proteção ao Índio (SPI) do Marechal Rondon, que lá ficou por longos anos. Em 1953, ali se instalou o Museu do Índio, do antropólogo Darcy Ribeiro, que na época trabalhava no SPI. Em 1977, o Museu do Índio mudou-se para Botafogo e o prédio do Maracanã voltou a ficar vazio e abandonado, até que, em 2006, um grupo heterogêneo de indígenas resolveu simplesmente ocupá-lo. O prédio e seu entorno foram chamados então de Aldeia Maracanã, embora o local não se pareça quase nada com a ideia que temos de aldeia.

Então o Brasil ambicionou sediar novamente uma Copa do Mundo de futebol, esse esporte tão brasileiro, embora seja inglês de nascença. O Maracanã e seu entorno brilharam de novo aos olhos de governantes, corruptos e corruptores, empresários da construção civil e especuladores em geral.

O governo federal, que havia comprado o prédio, anunciou, em 2012, que iria demoli-lo para facilitar a saída dos torcedores do estádio, por exigência da Federação Internacional de Futebol (Fifa) – que negou ter feito tal exigência. O então governador Sérgio Cabral disse que era um deboche chamar a comunidade que se formou ali de aldeia indígena. Mas os indígenas resistiram e foram apoiados por partidos de esquerda e movimentos da sociedade civil tão diversos quanto anarco-punks, negros e LGBTs. Até que, em 2013, a tropa de choque da polícia chegou, com sua delicadeza habitual.

Os indígenas foram expulsos com bombas e parte deles acabou alocada em pequenos apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida, no Estácio. Mas como seria viver comunitariamente e fazer rituais indígenas dentro de um bloco de condomínio? Seja como for, os indígenas não só fazem seus rituais como também questionam valores que os governantes tentam impor.

Oca do Futuro (2017), de Sallisa Rosa, realizada especialmente para a mostra no MAR (Fotos: Divulgação)

Dessacralizar a arte
Uma das instalações comissionadas da exposição Dja Guata Porã é a Oca do Futuro, de Sallisa Rosa. Trata-se de um cubículo minúsculo, com paredes rebocadas como são as paredes do condomínio do Estácio, só que com uma maravilhosa rede guajajara colorida ali dentro. Quem for à exposição e se der ao trabalho de se deitar nessa rede, poderá fechar a porta estreita e apreciar com calma um álbum de fotos da vida dos indígenas que moram no Minha Casa Minha Vida.

Um dos hábitos da sociedade dominante que indígenas questionam é justamente o de sacralizar a arte, em que objetos são apartados da vida social cotidiana, tornando-se intocáveis. Na exposição, o indígena Edson Kayapó dá seu depoimento sobre a não existência de uma ideia de arte nas culturas indígenas.

Parece um paradoxo fazer tal exposição num museu de arte. Afinal, o museu considera arte o que está expondo dos indígenas? “Do ponto de vista do museu, a gente não está entrando nessa discussão”, responde a curadora do MAR, Clarissa Diniz, cocuradora da exposição. “A gente não está denominando as pessoas como artistas, mas como participantes. Tirar as culturas indígenas do código da antropologia e colocá-las no código da arte seria uma troca muito ruim. Insistir nessa questão seria como fechar os olhos, os ouvidos e o coração para o que essas pessoas estão nos dizendo, que de alguma maneira é uma crítica à própria ideia de arte. Se a gente insistisse em nominar arte ou jogar sobre culturas tão radicalmente distintas o peso de uma concepção como essa, estaríamos cometendo um erro de interculturalidade”, argumenta.

Entretanto, por essa exposição ocorrer dentro de um museu de arte, a curadoria pode valer-se das formas de relação que principalmente a arte contemporânea instituiu, explica Clarissa. “A arte como algo que acontece na relação entre as pessoas, entre práticas deslocadas no tempo, sem a necessidade de se materializar numa coisa. Esse tipo de prática, que é tão próxima da arte a partir dos anos 1960-1970, é o que a gente convocou para fazer um processo de concepção curatorial”, diz Clarissa Diniz.

Se não importa discutir se é arte ou não o que está exposto no museu, a pergunta subsequente é: o MAR vai comprar obras dessa exposição para seu acervo artístico? A resposta oficial é talvez. O museu pagou aos participantes para realizar os trabalhos, mas o comissionamento não transfere ao museu a propriedade das obras. Incorporar algumas delas ao acervo implica uma negociação à parte, a ser feita se as finanças permitirem.

Vista da exposição Dja Guata Porã, que reúne 260 peças de etnias que vivem no estado do Rio de Janeiro

Tempo da invasão e da usurpação
A exposição Dja Guata Porã não é fácil, embora apresente forte preocupação informativa e didática. Não é fácil a começar por sua grandeza, com cerca de 260 peças, entre depoimentos, muitos textos, vídeos, instalações, performances, maquetes, desenhos, fotografias, recortes de jornais e revistas, livros, adornos, utensílios, artefatos e mapas. Não é fácil também porque trata de muitas questões que mal conhecemos, quando não desconhecemos por completo.

Uma linha do tempo perpassa as duas salas da exposição e inclui, além de muitos documentos, dimensões como o tempo da autonomia, o da invasão, o da usurpação e o das retomadas, baseadas em dimensões temporais huni kuin. O tempo das malocas, o tempo das correrias, o tempo do cativeiro, o tempo dos direitos e o novo tempo são eras estabelecidas pelo povo huni kuin (nome que significa algo como “homens verdadeiros” ou “gente com costumes conhecidos”) e exigiriam mais do que este artigo para ser explicadas. Esse povo, que habita regiões do Peru e do Acre, mas que também pode ser visto eventualmente no Rio de Janeiro, também é conhecido como kaxinawá (“povo morcego”, “povo canibal” ou “povo que anda à noite”).

Pataxós, puris, guaranis e indígenas em contexto urbano são os quatro núcleos da exposição. Além dos núcleos, há o que chamam de estações, que são espaços para temas específicos, como educação, comércio, mulheres e arte. Na frente do museu, na Praça Mauá, está sendo mantida uma horta indígena, considerada a estação natureza. As cinco estações foram concebidas com a colaboração de Josué Kaingang, Eliane Potiguara, Anari Pataxó, Niara do Sol e Edson Kayapó.

O núcleo puri é dedicado a um povo declarado extinto no século 19, mas registrado pelo censo de 2010. “Hoje, uma puri me falou que a Funai os procurou para falar da língua, porque eles estão retomando a língua puri e a Funai quer apoiar”, conta Clarissa Diniz. Com os pataxós, foram produzidos três vídeos para a exposição: um sobre pintura corporal, outro sobre a ocupação da aldeia de Iriri e outro sobre o patxohã, a língua também considerada morta que eles insistem em falar. Um mapa da aldeia foi desenhado em pirografia sobre uma gamela.

A exposição foi planejada durante um ano e custou cerca de R$ 800 mil. Ninguém trabalhou de graça. Na linha do tempo foram incluídos alguns poucos Debret originais da coleção do MAR, mas as demais obras consagradas pela história da arte ou pela história colonial aparecem em reproduções. Assim, a verba da exposição não foi consumida em empréstimos, transporte e seguros, mas sim com a viabilização das ideias atuais dos indígenas, contribuindo, desse modo, para a economia de cada um desses povos.

Nos corredores de entrada e saída da exposição estão dispostas caixas de som com gravações em diferentes línguas indígenas. Temos assim uma demonstração da dimensão linguística do Rio de Janeiro e somos lembrados que os estrangeiros aqui somos nós, imigrantes e descendentes de imigrantes de outros continentes. No corredor da saída, as vozes indígenas falam em português. “A liberdade que a gente teve para expor aquilo que gostaríamos mesmo de colocar foi a grande diferença dessa exposição. Cada um vai contar como vê o mundo, como pensa o mundo. Cada povo pensa de um jeito”, diz Sandra Benites, que trabalhou com o espanhol Pablo Lafuente e José Ribamar Bessa, além de Clarissa Diniz, da equipe do MAR. Para estimular a visitação do museu por Indígenas, debates têm sido promovidos e o MAR tornou a entrada gratuita até o ano que vem para qualquer um que se diga indígena. Inclusive você ou eu.

Serviço
Dja Guata Porã
Museu de Arte do Rio
Praça Mauá, 5 – Rio de Janeiro
Até 18/2/2018

Imagem destacada: Kunhã´i ovy´a vaipá, que significa menina muito feliz, 2017 (Foto: Miguel Verá-Mirim)

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