Da Rádio Yandê
“Às vezes é preciso ser louco para se dizer o óbvio”, essa é uma frase que lembro ser dita por uma professora do ensino médio que algum tempo depois aqui no Facebook descobri que era do Erasmo de Roterdã, escrito em um livro chamado “O elogio da loucura”.
Mas, o que isso quer dizer? Não sei. Não consigo dormir há alguns meses: a cabeça com mil pensamentos, ansiedade, medo de falhar e cair? Não sei ao certo!
Hoje acordei em 1998 com uma tristeza tão grande, uma solidão… Pensando em algo que não li nos textos antropológicos, nem em matérias de jornais. Um sentimento ruim de ser adulto cedo e se ver sozinho contra o mundo.
Lembrei dos meus 15 anos, quando saí do Rio Negro pela primeira vez. Ao mesmo tempo que me despedia de um amigo da mesma idade, morto por um acidente, praticamente um suicídio. Aliás, o final dos anos 90 foram de muitas dores por suicídios. Quinze anos, sabe! Quinze anos e ele nem tinha visto o básico da nossa capacidade. Eu nem sei se o que estou relatando faz sentido para as pessoas desta rede social, mas sei que faz sentido para vários jovens indígenas que estão com 15 anos e os da minha idade agora.
Os antropólogos não sabem, mas nós vivemos um rancor contra tudo e contra o mundo, que até poderia explicar várias coisas que a antropologia tenta entender faz tempo: O porquê dos jovens não quererem mais falar a própria língua ou estarem com vergonha de serem indígenas, por exemplo. Temos que fazer uma revitalização cultural, dizem os pesquisadores, tal como jesuítas falando que deveriam ensinar Tupi aos índios, para que estes não perdessem sua cultura. Tudo muito sem sentido pra quem é indígena.
Ninguém fala da violência, das gangues, da raiva contra os brancos que nos torturam com chacotas, só pelo fato de sermos diferentes. Da raiva dos meninos contra as meninas que preferem os brancos, da raiva que as meninas têm dos meninos indígenas porque não se parecem com os brancos. Não se fala das drogas que são um alívio, da 51 que é um lazer, dos pequenos furtos como “Capitães da Areia Amazônicos” tentando encontrar um jeito de burlar a miséria humana, das brigas e mortes violentas. Ninguém fala das cicatrizes dos combates entre gangues de crianças, nem do choro das mães e dos irmãos levando marmita para crianças de quatorze, quinze anos presos na delegacia.
Querem falar de suicídio de um ponto de vista cristão, querem falar da violência por culpa dos mais velhos não ensinarem a cultura para os mais novos. Eles querem tudo, sabe? Mas e o que nós queremos? O que os jovens indígenas querem? Talvez, não sei, um par de tênis? É complicado né, morrer por um par de tênis em Santa Isabel do Rio Negro, ou por um boné em São Gabriel da Cachoeira ou numa briga por causa de ciúmes em Barcelos.
Ah, sei lá! Esse texto nem faz sentido, sabe. Eu só queria escrever, desabafar. As pessoas acham que por ser indígena a gente é mais feliz, tudo é maravilhoso, tudo é diferentemente melhor: melhor água, melhor comida, melhores relacionamentos, melhor mundo. Mas, não sabem o que se passa de verdade: o desespero e a falta de perspectiva. Talvez a melhor saída seja mesmo o abuso de drogas, o suicídio, a prisão, é o que o mundo preparou pra gente, né? É essa realidade que precisa ser vista.
As aldeias estão cercadas por cidades, por gente querendo explorar, por jovens cada dia mais desesperados sem saber o que será no futuro. Não há possibilidades na aldeia porque daqui a pouco tudo estará acabado. De que adianta demarcar uma terra, se o rio que passa por ela vem com veneno ou se a caça está acabando?
Meu amigo tinha o sonho de sair do Rio Negro, talvez ser ator, igual ao Bruce Lee ou ao Van Damme, o Dragão Branco. Ele seria o Dragão Maku, a gente ria. Era engraçado e a gente brincava de boxe e Telecatch. É, Telecatch! A TV era mesmo uma vitrine de possibilidades, e essa possibilidade não era para nossa gente, talvez nem para os brancos. A TV era uma ideia, uma possibilidade de mudança real e a gente pensava em como seria legal ter um filme, um programa de TV, um espaço. Mas, ao desligar o aparelho, tudo o que sobrava era a realidade, onde não tínhamos que lutar contra um vilão, mas contra vários vilões, que se transvestiam de escárnios de professores e colegas, da miséria, da impossibilidade de mudança.
Sem superpoderes as gangues, ou galeras, como são chamados no Amazonas, eram de bairros diferentes, como naquele filme The Warriors, de 1979 (ainda hoje é assim em várias cidades por lá), lutavam pelo espaço de poder imaginário. Dos vários amigos que eu tinha, hoje somos uns cinco resistindo neste mundo, outros estão presos ou jazem. Sabe o que isso trouxe de benefícios pra gente? Nada.
Que solução seria boa pra resolver isto? Não sei. Se soubesse eu tentaria, mas não sei!
Talvez posso falar: estudem! Talvez a solução seja estudar mesmo, pois os meus amigos que estão vivos foram os que estudaram. Mas eu sei que não é só isso, é preciso que se tenha uma oportunidade também. Não adianta o desejo, a vontade de mudar. É preciso que se tenha referências, as quais nos identifiquemos, para olharmos e esperançarmos.
Dessa forma, penso que os antropólogos, indigenistas e comunidades podem trabalhar juntos para encontrar e mostrar possibilidades. Foram as possibilidades mostradas para mim que me fizeram mudar o caminho. Em 1999, eu fui mandado pra FOIRN para fazer um curso de Comunicação e Multimeios, isso me mostrou um caminho diferente a seguir. Outros amigos também puderam seguir caminhos que lhes tiraram dos problemas. A palavra é possibilidade! Oportunidade e possibilidade! Infelizmente isto só é possível com ajuda externa, pois não temos mais força nem autoestima que nos faça vislumbrar a possibilidade de futuro.
Não sei ao certo, repito, o que quero com este texto, talvez segurar a caveira do meu amigo como Hamlet fez com a de Yorick e falar:
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja. Ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono, a angústia e as mil pelejas naturais, herança do homem: Morrer para dormir… é uma consumação que bem merece e desejamos com fervor”.
Às vezes, é preciso ser louco para ver além do que nos mostram e enxergar a vida real, lugar onde podemos de verdade fazer as mudanças, e que, solitários, possamos vislumbrar o futuro para onde as nossas escolhas de hoje nos levarão.
Jovens, de quinze anos hoje: Estudem!
A felicidade pode não ter sido feita pra nós, mas a vitória sim. Então aprendam a usar as ferramentas, aprendam o que puderem, pois a luta será intensa todos os dias e se você tiver conhecimento sobre as ferramentas e suas forças, você terá uma chance de manter-se em pé.
–
Destaque: Tela de Denilson Baniwa
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Renata Machado.