‘É um pacote de medidas que desconstrói a Reforma Psiquiátrica’. Entrevista com Pedro Gabriel Delgado

Katia Machado – EPSJV/Fiocruz

Uma proposta de reformulação da Política Nacional de Saúde Mental foi redigida pelo Ministério da Saúde e vem provocando uma onda de manifestações de instituições ligadas ao Movimento de Luta Antimanicomial. Entre as alterações, está a manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, a ampliação de recursos para comunidades terapêuticas e a limitação na oferta de serviços extra-hospitalares. “É um pacote de medidas que desconstrói a Reforma Psiquiátrica, a proposta de desinstitucionalização e a atenção comunitária”, garante Pedro Gabriel Delgado, militante da luta antimanicomial, à frente do processo de desinstitucionalização psiquiátrica prevista pela Lei 10.216/2001, e professor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em entrevista ao Portal da EPSJV às vésperas de a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) votar a reformulação da Política, o ex-coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2000- 2010) explica que se trata da desconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) na medida em que as alterações privilegiam o atendimento hospitalar, aumentam os recursos para os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas. Reunida na última quinta-feira (14), a CIT vetou a ampliação da capacidade já instalada de leitos psiquiátricos em hospitais especializados, reafirmando o modelo assistencial de base comunitária. Por outro lado, autorizou a ampliação da oferta de leitos hospitalares qualificados para a internação de pacientes com quadros mentais agudos. “Há um jogo de palavras entre ‘capacidade instalada’ e ‘ampliação de leitos’. Na prática, isso significa que autoriza a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos, o que vai contra a Lei 10.216”, alerta. Uma das novidades da resolução da CIT é a criação da modalidade de Centro de Atenção Psicossocial com funcionamento 24 horas, para o atendimento de usuários de drogas em cena de uso. “Conversei com outros colegas do campo de Álcool e Drogas e eles entendem que esse serviço servirá como porta de entrada para tratamento em regime fechado”, realça.

O que significa essa minuta divulgada pelo Ministério da Saúde neste início de dezembro, alterando a Política Nacional de Saúde Mental? Entre as modificações propostas pelo Ministério está a manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, a ampliação de recursos para comunidades terapêuticas e a limitação na oferta de serviços extra-hospitalares.

Eu acho que esse pacote proposto pelo ministro [da saúde] Ricardo Barros tem que ser entendido no seu conjunto. É um pacote de medidas que desconstrói a reforma psiquiátrica, a proposta de desinstitucionalização e a atenção comunitária, ou seja, toda uma rede de saúde mental que acompanha o processo de saída dos pacientes dos longos períodos de internação. É um pacote que privilegia o atendimento hospitalar, que aumenta os recursos para os hospitais psiquiátricos e destina recursos muito volumosos para as comunidades terapêuticas, que já vêm recebendo recursos volumosos desde 2016, e, consequentemente, diminui os recursos da rede comunitária de atenção. Nós já estamos com sete mil vagas em comunidades terapêuticas, e isso tende aumentar, na contramão da Lei da Reforma Psiquiátrica nº 10.216.

Que interesses estão por trás da proposta do Ministério da Saúde?

O processo brasileiro de reforma psiquiátrica conquistou o apoio dos usuários — se você conversar com os usuários que passaram pelo sistema manicomial e que hoje estão no sistema comunitário, observará depoimentos enfáticos de melhoria das condições de vida —, bem como dos familiares, embora ainda haja por parte de alguns certa ilusão de que o tratamento no regime de hospitalização poderá resolver o problema, especialmente quando se trata das questões do uso de álcool e outras drogas. Mas, ao mesmo tempo em que se reconhece um grande apoio à reforma psiquiátrica, há também grupos e segmentos que não apoiam a proposta há bastante tempo, por várias razões, inclusive em face de um conservadorismo no campo da saúde mental, de que o tratamento tem que ser pela via da institucionalização. Mas, certamente, residem nessa proposta outros interesses. E o focal é o desmonte do SUS, tanto que este governo que está aí é o mesmo que propôs e está fazendo mudanças na Política Nacional de Atenção Básica, que diz que o SUS é maior do que deveria ser.  É o mesmo ministro que diz que não é ministro do SUS, que é ministro da saúde, e que é publicamente ligado aos interesses dos planos de saúde privados, ligado ao sistema financeiro. O atual ministro [da saúde] não esconde sua preferência pelo setor privado, fala inclusive em planos populares de saúde. Além disso, ao propor a hospitalização, você aumenta a prescrição irracional de psicotrópicos. Trata-se de um modelo ambulatorial que não se presta à organização de um sistema comunitário de atenção em saúde mental. Esse tipo de proposta restringirá o acesso ao modelo de atenção multidisciplinar, ou seja, ele ampliará o que se chama no mundo inteiro de “lacuna de tratamento”.

Essas medidas afrontariam as diretrizes da política de desinstitucionalização psiquiátrica, prevista na Lei nº 10.216/2001, e violariam as determinações legais em relação à atenção e ao cuidado de pessoas com transtorno mental, estabelecidas na Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão?

Esse conjunto de medidas afronta diretamente a Lei 10.216. São, portanto, ilegais. A Lei da Reforma Psiquiátrica aponta que o tratamento tem que ser feito em base comunitária, assegura a desinstitucionalização como um eixo da política de saúde mental. Afronta, também, as convenções relacionadas aos direitos da pessoa com deficiência, incluindo as pessoas que sofrem com transtornos mentais. Esse conjunto de medidas está sendo hoje (14) apresentado à Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Essa Comissão é formada por gestores do SUS, pessoas que têm uma responsabilidade social e ética. Cada uma delas – o presidente do Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, do Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde] -, todos têm responsabilidades em relação a essas medidas. A CIT foi criada como um dos órgãos colegiados de direção do SUS em 1990 e, hoje, especialmente, deve afirmar a sua autonomia e a sua independência em relação ao Executivo federal. A Comissão tinha a obrigação de tirar da pauta essa proposta e devolver para uma discussão no âmbito do SUS, porque esse é um pacote que não foi discutido pela sociedade. Não se pode desmontar uma política que é amparada por lei e consensuada em quatro conferências nacionais de saúde mental. Seria uma irresponsabilidade dos gestores da CIT.

Até porque a reforma psiquiátrica é fruto de uma construção coletiva…

Ela foi aprovada, discutida e aprovada por meio de um processo de discussão que se deu em quatro conferências nacionais de saúde mental. O processo de conferências que o SUS construiu é extremamente participativo, acontece em todos os municípios, estados e no âmbito federal. Então, não se pode mudar uma política construída coletivamente, já consolidada, com um pacote.

A nova fórmula apresentada é uma maneira de se injetar recursos no atendimento hospitalar, deixando em segundo plano o modelo de atendimento hoje existente, baseado em uma rede e no atendimento ambulatorial e multidisciplinar?

Sem dúvida. Há um cálculo inicial de aumento de R$ 240 milhões por ano de despesas com a área hospitalar. Além disso, estão sendo propostos, eu acho, cerca de R$ 270 milhões nesse pacote só para as comunidades terapêuticas, que também são instituições de tratamento fechado, ou seja, não são comunitárias. É um conjunto de medidas hospitalocêntricas e, portanto, contrárias à Lei 10.216. Mas acho também importante destacar que, desde o ano passado, os serviços comunitários, como os CAPS, os consultórios de rua e as residências terapêuticas estão sendo sucateados pelo governo federal e, também, por governos estaduais e alguns governos municipais. Há situações muito graves envolvendo os CAPS, como falta de medicação, alimentação, limpeza, condições de habitabilidade em residências terapêuticas etc. A rede de atenção comunitária está sendo sucateada, realçando um desinteresse do governo neste modelo de atenção à saúde mental. Com essas medidas apresentadas agora, só fica comprovado que o investimento que o governo quer é hospitalocêntrico.

A minuta atual do MS não contraria também medidas anteriores e mais recentes, como a Portaria 2.644, de outubro de 2009, que reagrupou classes para os hospitais psiquiátricos e reajustou os respectivos incrementos de modo a desestimular a internação de longa permanência e, também, a internação em hospitais de grande porte, porque já estava exaustivamente comprovado que a qualidade da assistência piorava na medida em que se aumentam os números de leitos?

Certamente. É um conjunto de medidas hospitalocêntrico, que retoma o estímulo ao hospital de longa permanência. Na verdade, é uma proposta que o Ministério faz para que o hospital psiquiátrico reassuma a centralidade do sistema de atenção à saúde mental. Volto a dizer: é um conjunto de medidas que não pode ser aprovado pela Comissão Intergestores Tripartite. A CIT tem que retirar esse pacote da pauta e propor uma análise mais aprofundada.

Qual a argumentação que o movimento da luta antimanicomial fez junto à CIT?

São várias manifestações de movimentos sociais, de professores universitários, de associações de usuários e de familiares para pedir à CIT que não vote esse conjunto de medidas e faça cumprir seu papel regulatório e de pactuação. Mas há, também, por parte do Ministério da Saúde, uma forte pressão em cima dos gestores. Por isso que eu digo: o gestor da saúde tem que afirmar agora sua autonomia, sua independência. Os gestores não podem se submeter à pressão que esse governo costuma fazer sobre todos os setores, e está fazendo agora sobre os gestores do SUS que fazem parte da CIT. Acho que o local da resistência da reforma psiquiátrica são os serviços da saúde mental que foram criados a partir da Lei 10.216, os cerca de três mil serviços comunitários de saúde mental. Esses serviços serão a trincheira da resistência caso essa proposta de desconstruir a reforma psiquiátrica siga adiante.

Ao que tudo indica, reunida hoje (14), a CIT vetou qualquer ampliação da capacidade já instalada de leitos psiquiátricos em hospitais especializados, reafirmando o modelo assistencial de base comunitária, mas autorizou a ampliação da oferta de leitos hospitalares qualificados para a internação de pacientes com quadros mentais agudos. O que isso significa? Qual a sua avaliação sobre essas deliberações?

Há um jogo de palavras entre ‘capacidade instalada’ e ‘ampliação de leitos’. Concretamente, autoriza-se ampliação de leitos psiquiátricos em hospital especializado, em hospitais psiquiátricos convencionais. Capacidade instalada é um dado que diz respeito à estrutura geral do hospital, mesmo que um leito não esteja ativo ou não credenciado. Na prática, isso significa que autoriza a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos, o que vai contra a Lei 10.216.

Uma das novidades da resolução da CIT é a criação da modalidade de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), com funcionamento 24 horas, prestando assistência de urgência e emergência, para ofertar linhas de cuidado em situações de cena de uso de drogas, especialmente o crack, de forma multiprofissional e intersetorial. Como você observa essa proposta?

É mais provável que um serviço que estão chamando de CAPS-AD III, instalado na cena de uso, com esta perspectiva de ampliar o estoque de leitos em comunidades terapêuticas e com toda a ideologia de institucionalização no conjunto do pacote, seja um serviço de contenção, sirva de porta de entrada involuntária de usuários de drogas nessas cenas de uso. Conversei com outros colegas do campo de Álcool e Drogas e eles entendem que esse serviço não será um CAPS AD III, mas sim um contêiner que servirá como porta de entrada para tratamento em regime fechado.

Essa proposta do atual governo tem alguma repercussão no cenário internacional, uma vez que a reforma psiquiátrica brasileira é reconhecida no mundo?

O ministro da saúde não sabe ou não quer saber, mas a experiência brasileira está sendo observada, nesse momento, por vários países do mundo e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Essa proposta de desconstrução da reforma psiquiátrica certamente produzirá reações internacionais contra o Brasil. O país não pode ficar submetido a uma decisão isolada do Ministério da Saúde, atendendo a interesses, por exemplo, do sistema privado de saúde, porque a reforma psiquiátrica brasileira tem história e está consolidada, apesar de todas as dificuldades e de ser um processo que ainda não terminou. Entre os organismos internacionais, é um exemplo a ser seguido, especialmente em função da complexidade de um país que tem 200 milhões de habitantes. O Brasil foi o único no atual contexto a realizar um processo de mudança no sistema de saúde mental em âmbito nacional, com uma dimensão continental.

Você participou do processo de desinstitucionalização psiquiátrica, ou seja, do Movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira. O que significou esse processo para os usuários do SUS e familiares?

A desinstitucionalização é um processo social extremamente importante em todos os países do mundo, que assegura às pessoas que têm sofrimento mental grave, bem como às pessoas com deficiências, uma alternativa de vida que é muito melhor que viver dentro de estabelecimentos fechados por longos períodos. A desinstitucionalização não é somente um desafio para o campo da saúde mental, é também parte dos direitos humanos. É importante contextualizar isso, porque essa preocupação existe no mundo desde os anos 1960 e continua sendo um dos principais desafios da atualidade para as políticas públicas de todos os países, não somente do Brasil. O que é importante destacar é que o Brasil é um dos países que conseguiu realizar uma tarefa, que não está completa, de desinstitucionalização de um número expressivo de pacientes que viviam em estabelecimentos de longa permanência e fez isso com muito cuidado do ponto de vista da inclusão social. Criou a Lei do Programa De Volta Pra Casa [nº 10.708, de 31 de julho de 2003], que assegura aos pacientes que tenham permanecido em longas internações psiquiátricas um subsídio mensal para a sua sobrevivência, os serviços de apoio de caráter aberto, comunitário e multidisciplinar, como os CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] e as residências terapêuticas, destinadas a pessoas com transtornos mentais que permaneceram em longas internações psiquiátricas e impossibilitadas de retornar às suas famílias de origem.  E fez isso em uma escala que chama a atenção do mundo todo. Posso assegurar que a experiência brasileira é vista com muito respeito e admiração, validada em declarações e documentos oficiais, por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde.

Comments (1)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

vinte + 9 =