“As noites dos trabalhadores rurais escravizados. A estrela na noite da solidão”, por frei Henri des Roziers (1930-2017)

O texto abaixo, de frei Henri des Roziers, foi enviado pela Secretaria Geral do MST, com o comentário: “pensando nos reis magos, uma crônica sobre os trabalhadores rurais escravizados no Brasil”. (TP)

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Sentados em frente das suas casas, eles estavam sem trabalho na sua pequena cidade pobre do Piauí, e suas crianças passavam fome. Passou uma camioneta com alto-falante convidando o pessoal para trabalhar numa fazenda do estado do Pará. O “gato” do fazendeiro prometia bons salários, comida, alojamentos. Iludidos, sem alternativa, embarcaram no caminhão. Foram dois dias de viagem cansativa, no calor, na poeira, quase sem comer.

Agora, eles estão lá, junto com muitos trabalhadores migrantes, de todas as regiões do Brasil, perdidos na mata, debaixo da lona, sem receber salários, sem dinheiro, bebendo água suja do córrego onde pisa o gado, comendo carne de vaca doente, trabalhando o dia inteiro, do amanhecer ao anoitecer, no calor, derrubando árvores, roçando juquira, vigiados por homens armados.

Há três meses que sobrevivem nessa escravidão. Nesta noite, deitados, cansados nas suas redes, eles olham, mais uma vez, através dos buracos da lona, o céu estrelado. Onde está sua estrela? Pois, cada um tem uma estrela! Onde está a estrela do menino, seu companheiro de 17 anos que, sendo menos vigiado, conseguiu fugir para tentar alertar as autoridades? Saiu de noite com o dinheirinho e o “frito” que conseguiram arrumar para ele. Onde está? Será que está vivo? Conseguiu escapar dos pistoleiros que foram atrás dele no dia seguinte?

A noite se afastou, apareceu a aurora, amanheceu, o sol se levantou. Já no serviço, dentro da mata, desmatando, ouviram um ruído de motores. De repente apareceram no fundo do trilho, três camionetes 4×4, solavancando. Chegaram. Policiais federais pularam fora, armas em punho. Saíram também vários fiscais do Ministério do Trabalho, Procurador da Republica, Delegado da Polícia Federal. Estavam livres!

No banco traseiro da camionete, encapuzado, escondido, um rapaz, com medo. Era o menino Sebastião! Era ele que tinha alertado as autoridades e mostrado o caminho desconhecido, tão difícil para chegar até aqui!

Sebastião tinha caminhado a noite inteira na mata, no meio dos ruídos da floresta, com medo das cobras, das onças, dos jacarés, bebendo a água dos córregos, se orientando com essa estrela do Cruzeiro do Sul, como lhe tinham ensinado seus companheiros mais velhos. Seguindo sempre ela, não se perderia e cruzaria, com certeza, cedo ou tarde, uma estrada.

Não foi uma estrela que levou os Reis Magos, de noite, até a manjedoura do Menino Jesus?

O jovem Sebastião seguia também sua estrela, com confiança. Às vezes a perdia na escuridão total da mata fechada, mas a encontrava de novo logo em uma clareira, todo alegre! Andou muito, muito. Tropeçava, vacilava, caia. Ficava um pouco deitado nas folhas do chão. Olhava para o céu. Se sentia tão pequeno nessa imensidão dessas miríades de estrelas do firmamento, tão perdido nessa mata sem fim, tão frágil.

Mas, o Menino Jesus não era uma coisinha muito pequeninha, muito frágil na noite de Natal, na manjedoura?  Não é na fraqueza do ser humano, da nossa vida, que a força do Amor de  Deus se manifesta?

Sebastião comia um pouco do “frito” dos companheiros os quais esperavam tanto dele. Retomava força. Buscava sua estrela no firmamento, levantava-se e caminhava de novo.

Amanheceu… o sol apareceu. Chegou a uma estrada de chão. Para onde ir? Para a esquerda, para a direita? Esperou, esperou! Chegou um velho caminhão.  Parou, entrou na cabina perto do motorista. Andaram e depois de um bom tempo de silêncio, o motorista parou, olhou para o menino e perguntou: “Você esta fugindo de uma fazenda?” Tremendo de medo, respondeu “Sim.” Então, vai atrás na carroceria e se esconde debaixo da lona e da mercadoria, bem escondido, porque na ida, um pouco mais pra frente, tinha um grupo de homens armados que paravam e vistoriavam os veículos. Sebastião se escondeu e o caminhão partiu.

Alguns quilômetros depois, homens armados pararam o caminhão, olharam na cabina, falaram com o motorista e o deixaram ir embora.  Mais tarde, o motorista chamou Sebastião para a cabina. Andaram a tarde inteira e chegaram à noite em uma cidade, Tucumã. O motorista deixou Sebastião no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Lá se comunicaram com a CPT que articulou com as autoridades a libertação dos 150 trabalhadores escravizados lá na mata.

Já era de noite, a estrela que tinha guiado Sebastião brilhava no céu. Era a mesma estrela que aquela, que tinha levado os Reis Magos até o presépio do Menino Jesus, aquele que veio para libertar os oprimidos e anunciar o Reino do Amor, da Justiça, da solidariedade e da Paz.

Foto: Ricardo Funari

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