O ribeirinho e a tartaruga, por Eliane Brum

Nada é simples entre o rio, o humano e o não humano

Por Eliane Brum, no Amazônia Real/El País

Tuíca quase não enxerga. Uma película branca cobre os seus olhos, o esquerdo com mais ferocidade. Aos 51 anos de uma vida de pesca, caça e enxada na floresta amazônica, às vezes ele se levanta e a coluna vertebral não o acompanha. Tuíca então se assemelha a uma tartaruga, “quase cheirando o chão”, até que lentamente as vértebras se espicham. Ainda assim é um dos pescadores mais extraordinários da região. Porque Tuíca adivinha os bichos com sentidos que a floresta inventou pra ele. É um homem de silêncios e, como tantos ribeirinhos ali, de tristeza por uma vida que é sempre um quase. Quando tudo quase está bem, há um barramento.

Desde que o peixe rareou, pelo desequilíbrio causado por Belo Monte, as tartarugas passaram a ser mais atacadas

Desta vez, um barramento concreto. Desde que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte se instalou no Xingu, os peixes começaram a rarear. Em vários lugares e também na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Vitória de Souzel, criada em 2016, bem ao lado do Refúgio de Vida Silvestre Tabuleiro do Embaubal. Com a escassez de peixes, Tuíca e os outros precisam ir cada vez mais longe para alimentar a família, a dele com oito filhos. E esse cada vez mais longe é também invadir o território de outros pescadores, o que pode gerar tensão onde havia paz. O desequilíbrio instalado por Belo Monte ecoa muito mais longe e em camadas mais profundas do que os relatórios da burocracia.

Essa é a agonia de Tuíca e de muitos outros. Alguns deles capitulam e, para não passar fome, voltam-se para o comércio ilegal de tartarugas. Se durante o percurso de migração das tartarugas há caça em grande escala, organizada em ambiente de cidade, na região protegida da floresta o que existe é também uma pressão pela fome.

Os ribeirinhos são grandes sobreviventes – ou viventes. Não fosse essa capacidade de abrir caminhos entre tantas barreiras que desabam sobre as suas vidas, a maioria delas produzida pelo Estado e por grandes obras e projetos, não estariam ali. São, eles mesmos, resultados de uma longa cadeia de acontecimentos, a maioria descendentes de nordestinos pobres trazidos para a Amazônia para cortar seringa no final do século 19 ou como “soldados da borracha”, na Segunda Guerra Mundial, e depois abandonados na floresta sempre que o preço do produto caiu.

Tuíca carrega essa sina no corpo. Acredita que perdeu seus olhos por forçá-los cortando seringa desde criança, no bruxoleio da lamparina. No passado, ele também foi um grande caçador de tartarugas. E esse orgulho ainda aparece como uma dessas contradições de homem que vive entremundos. Além de adivinhar os bichos, Tuíca é também um criador habilidoso de traquitanas de caça, com muito pouco ele faz muito de tudo. E aquilo em que ele é bom, mais do que bom, passou a ser crime. O que ele é de melhor, já não pode ser.

O impasse de Tuíca é o mesmo de muitos ribeirinhos que vivem com suas famílias na região do Tabuleiro. É o de não ter mais peixe e o de ter fome que não é só de comida, mas também de outras necessidades que vão aparecendo num mundo tão perto da cidade, nos filhos que vão para a escola se iluminar das letras para não ser analfabeto da escrita como o pai. E tendo essa fome toda ver a tartaruga passando.

Assim, no tempo do nascimento dos filhotes, a bióloga Cristiane Costa Carneiro leva famílias de ribeirinhos de diferentes comunidades para que ajudem a salvar os retardatários, para que as tartaruguinhas não morram na enchida da maré. É também uma estratégia para que crianças e adultos tenham um encontro que não seja apenas entre fome e comida. Mas é complicatório, como me explicou um menino. Para as crianças ribeirinhas, é claro como noite de lua cheia o sentido de proteger os filhotes, porque um dia eles vão crescer e virar comida. E faz todo sentido proteger comida, num cotidiano em que ela não brota na prateleira de supermercado, mas precisa ser pescada, cultivada, extraída ou caçada. Num cotidiano em que a alimentação é um processo que envolve o corpo desde o princípio.

Pergunto a dois pequenos: “Por que vocês estão ajudando a tartaruguinha a sair do ninho?”. Maxwell da Conceição, de 9 anos, diz: “Para ela ficar grandona”. Max Abreu, de 7, completa: “Pra depois nós comer um pouquinho”.

Ivanilson da Conceição Gil, de 4 anos, foi uma das crianças ribeirinhas que ajudou a desenterrar os filhotes atrasados e levá-los até o rio. Foto: Lilo Clareto

Tuíca compreendeu que a tartaruga devia viver, porque também ensinou aos doutores o que era uma tartaruga. E, quando ensinou, falou da beleza do bicho, que é também um adivinhador sagaz dos humanos. “Se eu vou no rio entrar numa ilha dessa aqui eu vou prestar atenção em tudo. Na maresia, no jeito dela, porque a tartaruga é grande. Mas mal você vê a maresiazinha dela num mato desse aí. E mal trisca num cipó. Ela não sai batendo num trem desse não. Só quando ela se espanta. Mal você vê ela triscando. Uma raminha, um cipozinho. E quando ela buia, mal você vê uma tiriricazinha. Ela é grande, mas ela sabe muito de água. Ela sabe mais do que eu.”

Ele ri. E explica, com admiração: “Se você fizer um barulhinho assim (faz um barulho com a boca) no casco, e a maresia do casco der na tartaruga, você não pega ela mais. Ela não carece lhe ver, não, só a maresia triscou nela, mas ela já vai. Ela não vai nem olhar o que é. Se a cigana (um tipo de pássaro) gritar chê, chê, chê, ela já buia pra ver o que é, já sabe que é gente. E ela não buia errado, não, só buia certo na gente. Puxa o olhar pra ver onde tá a zoada. Põe a cabeça pra fora e fica rodando. É a cigana que avisa ou o calango que cai dentro da água. Tei tei tei. Ela olha certinho pra gente. É impressionante”.

Tuíca, quando caçava mais Luiz e mais outros, “não triscava”. “A gente é silêncio demais no mato, não faz maresia de nada, não trisca em nada”. Mas Tuíca compreendeu, deixou as tartarugas viverem sem ter o casco fincado pelo seu tapuá. Mas e agora, que o peixe sumiu? Como Tuíca protege seus oito filhos? Tuíca fica então ameaçado também. Sem peixe, Tuíca é um homem à deriva. E por isso constrói uma canoa em que caiba todos os seus oito filhos. Uma canoa bem grande, uma em que não sobre um.

Talvez seja preciso entender o que é tristeza e o que é alegria para Tuíca.

Pergunto a ele qual foi o dia mais triste da sua vida. E ele diz: “Você pensa no seu filho e você vai pro rio e não traz o peixe. Passa três dias e vem sem nada. Aí você sabe que lá em casa ficou difícil. Você corre pra lá, corre pra cá. Você tem que levar. Mas você não leva e fica sem jeito de chegar em casa sem nada. Aí é triste porque as crianças falam: ‘pai, quero comer’. E não tem”.

Pergunto a ele qual foi o dia mais alegre da vida dele. E Tuíca diz: “Quando eu vou, e eu venho cheio de peixe, eu venho animado.”

As pessoas da cidade acham que pescar é fácil. Os pescadores “esportivos”, que vão se divertir nos rios do Brasil, também pensam que pescar é fácil. Mas pescar para ganhar a vida é demasiado difícil. Tuíca quase não dorme. Ou dorme de pedacinho. “Eu não amanheço o dia em rede, não, e nem anoiteço em rede. Difícil. Aqui eu amanheço na maré. Por exemplo, a maré vai, daqui a pouco ela vazou. Se eu tivesse aqui pescando, já tava no rio uma hora dessa. Aí só ia chegar pra cá 6 horas da tarde. Aí quando for umas 2 da madrugada, já tô saindo. Aí só chego de manhã.”

A vida do pescador é determinada pela lua e pelas marés – e destruída pelas grandes obras que bagunçam a natureza

A lua, que manda nas marés, também manda no pescador. “Se a maré de boca da noite tiver vazando, eu boca da noite já saio também. Aí, quando der umas horas, quando tá perto pra encher, eu venho embora. Aí tem o luar que não presta pra pescar. Aquele luarzão é ruim de peixe. Aí eu espero a lua assentar que eu saio. Conforme a hora que ela assentar, se esconder do mato pra cá, eu saio.” E assobia, pra explicar como a lua assenta.

Quando peço pra me contar sua história, Tuíca diz que está velho demais pra contar ela inteira. Não por fraqueza, mas porque é muita vida. E quando a vida é tanta, já não cabe num contar só. Mas conta que seu nome do documento é Antonio Davi Gil, mas que virou Tuíca por causa de um jogador do Paysandu de quem o pai gostava muito. E Tuíca, o nome, pegou mais que aninga na beira do rio. Conta mais um pouco sobre o nomear das coisas. Onde ele mora se chama Ilha da Paz, mas o lugar já teve outros chamamentos. E nenhum dos nomes, nem o da paz, foi ele quem colocou. “É sempre o pessoal dos documento que bota nome”. E assim Tuíca diz um bocado.

A mulher briga com ele para que arrume um emprego na cidade, mas Tuíca tem agoniação. “Eu não gosto de cidade. Não gosto de cidade. Eu não fui criado em cidade. É passar dois, três dias, me agonia”. E repete, como se fosse eu também a mandá-lo pra rua: “Não tem cidade boa pra mim. Não tem cidade boa pra mim, não. Aqui é tranquilo demais. Aqui você ata a rede aqui, ó, tranquilo. Não tem perturbação de ninguém”.

E não tem. Mas desde Belo Monte também não tem peixe. E ainda tem tartaruga.

Tuíca retorna ao seu redemunho.

Tuíca pesca com a ajuda de outros sentidos, já que os olhos cobertos pela catarata pouco enxergam. Foto: Lilo Clareto

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