1968: Fatos e mitos do ano que chacoalhou o mundo

Há 50 anos manifestações por todo o mundo ousaram contestar o poder estabelecido, seja à direita ou à esquerda, o que as tornou alvo de mistificações até hoje

Por Marcelo Fantaccini, Voyager

Neste ano de 2018, completam-se 50 anos dos movimentos de 1968. Assim como ocorre em todo ano terminado em 8, haverá um grande número de textos e um grande número de mesas redondas debatendo aquele ano.

Há bons motivos para valorizar os aniversários redondos. Concentrar artigos e apresentações sobre acontecimentos importantes em datas específicas facilita o diálogo, e além disso, ajuda colocar acontecimentos importantes novamente em evidência.

Preservar a memória do passado é importante para o presente. Muitos professores de História de Ensino Médio, para estimular o interesse dos estudantes pela disciplina, dizem que a História não é o passado morto, mas sim um frequente diálogo entre o passado e o presente. E 1968 certamente dialoga com o presente. A década de 2010 foi abundante em movimentos horizontais que pipocaram em diversas partes do mundo. Podemos citar como exemplos a Primavera Árabe, os indignados na Espanha, o Occupy Wall Street e os movimentos no Brasil em 2013. Apesar das muitas diferenças, é inevitável o paralelo com 1968.

Ainda é importante destacar o interesse especial da esquerda por aniversários redondos. Em 2017 foram os 150 anos da publicação do primeiro livro de O Capital, de Karl Marx, os 100 anos da Revolução Russa e os 50 anos da execução do Che Guevara. Em 2018, os 50 anos de 1968. O motivo do interesse da esquerda por datas redondas é muito simples: lembrar aos mais novos que temos direitos sociais que não existiam no passado não porque esses direitos chegaram de disco voador trazidos por alienígenas, mas porque pessoas no passado lutaram, alguns sofrendo graves consequências, e que, por isso, temos que ter inspiração para lutar pela manutenção e até mesmo pela ampliação destes direitos.

Os dois mitos mais frequentemente difundidos sobre 1968

Para discutir o legado de 1968, é necessário destruir dois mitos. O primeiro é o de que os movimentos que ocorreram em todas as partes do mundo naquele ano foram todos parte de um mega movimento hippie global com as mesmas demandas.

Às vezes, fala-se como se todos os envolvidos em 1968 estivessem lutando por um mundo sem as desigualdades do capitalismo, sem a falta de liberdade individual do socialismo real, sem guerras, sem opressão de gênero, orientação sexual e etnia, sem destruição do meio ambiente e com muitas drogas, sexo e rock’n’roll. Em suma, o mito é o de que os ativistas em todas as partes do mundo estavam lutando pelo mundo descrito pela canção Imagine, que John Lennon iria compor três anos depois. Encontramos este mito com muita frequência em especiais que a imprensa faz nos anos terminados em 8. Por exemplo, uma matéria da Revista Época de 2008 fazia a seguinte generalização:

“Quarenta anos depois, 68 continua enigmático, estranho e ambíguo como um adolescente em crise existencial. Ele foi o ano da livre experimentação de drogas. Das garotas de minissaia. Do sexo sem culpa. Da pílula anticoncepcional. Do psicodelismo. Do movimento feminista. Da defesa dos direitos dos homossexuais. Do assassinato de Martin Luther King. Dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Da revolta dos estudantes em Paris. Da Primavera de Praga. Da radicalização da luta estudantil e do recrudescimento da ditadura no Brasil. Da tropicália e do cinema marginal brasileiro. Foi, em suma, o ano do “êxtase da História”, para citar uma frase do sociólogo francês Edgar Morin, um dos pensadores mais importantes do século XX. Foi um ano que, por seus excessos, marcou a humanidade. As utopias criadas em 68 podem não ter se realizado. Mas mudaram para sempre a forma como encaramos a vida.”

Uma matéria da Deutsche Welle, também de 2008, resumiu 1968 em “Guerra do Vietnã”, “Flower Power”, “protestos estudantis”, “revolução sexual”, “quebra de convenções”, “liberdade de opinião”, “caos” e “anarquia”.

O segundo mito, difundido tanto por autores à esquerda como à direita, é o de que os eventos de 1968 tornaram o mundo mais conservador. De acordo com este mito, o Primeiro Mundo vivia o paraíso do Welfare State no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, aí os hippies de 1968 teriam sido responsáveis pela contra-revolução conservadora de Reagan e Thatcher por dois motivos: por assustar os conservadores com seu radicalismo e induzi-los a uma reação, e por defender liberdades individuais que puderam ser resignificadas por aqueles que defendiam o retorno do liberalismo econômico.

Zizek, em um artigo publicado no La Repubblica em 2008, escreveu que:

“O novo espírito do capitalismo recuperou de modo triunfante a retórica igualitária e anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como uma revolta libertária de sucesso contra as organizações sociais opressivas do capitalismo, das corporações e também contra o socialismo ‘real, existente’: esse novo espírito libertário está encarnado nos capitalistas ‘desenvoltos’, vestidos à grande, como Bill Gates e fundadores do sorvete ‘Bem and Jerry”.

Como foi 1968 em todo mundo

Os estudantes, a barricada e a tropa de choque em Paris

França

Rebeliões em 1968 ocorreram no mundo todo, mas as mais conhecidas ocorreram na França. Em 22 de março, grupos de extrema-esquerda ocuparam o prédio administrativo da Universidade de Nanterre. Em represália, no início de maio, o governo decidiu fechar esta universidade. Por causa do acontecimento de 22 de março, havia ocorrido uma série de conflitos entre os estudantes e a administração. Os estudantes da Sorbonne, em solidariedade aos estudantes de Nanterre, decidiram ir para as ruas também. Isto impulsionou uma série de protestos estudantis contra Charles de Gaulle, que governava o país há dez anos.

Os protestos também foram contra o capitalismo, contra o conservadorismo da sociedade francesa, por maior democratização no acesso às universidades. A Union Nationale de Étudiants de France foi um grande mobilizador. Havia vários “istas” entre os estudantes. Trotskistas, maoístas, castristas, anarquistas. Destacou-se o anarquista Daniel Cohn-Bendit. Trabalhadores se juntaram ao movimento, realizando greves e ocupações de fábricas.

Houve forte repressão policial aos protestos, embora a tropa de choque desejasse evitar a criação de mártires e evitar atingir estudantes filhos de famílias ricas que participavam dos protestos. Não houve morte nas ruas, mas houve morte em desocupação de fábrica. O governo chegou a tremer, mas Charles de Gaulle reassumiu o controle da situação. Fez pronunciamento no rádio e na televisão, mobilizou uma grande marcha a favor e venceu as eleições que ele mesmo convocou. Conseguiu desmobilizar os trabalhadores prometendo aumento salarial para as centrais sindicais.

O líder revolucionário Rudi Dutschke discursando em um congresso sobre o Vietnã.Fonte: GHDI.

Alemanha

Na vizinha República Federal da Alemanha, houve muitos protestos estudantis de extrema-esquerda, mas não houve adesão dos sindicatos de trabalhadores. O país era governado por uma grande coalizão de democratas cristãos e social democratas, liderada pelo chanceler ex-nazista Kurt Kiesinger. A geração de jovens nascidos logo depois da Segunda Guerra Mundial se rebelava contra o fato de ainda existir ex-nazistas ocupando espaços importantes no establishment político e econômico. Como quase todo o Parlamento apoiava o governo, existia a Oposição Extra Parlamentar, organizada por grupos de esquerda. A organização estudantil mais importante nos protestos de 1968 foi a SDS (Sozialistische Deutsche Studentenbund, ou Federação Estudantil Socialista Alemã).

Já em 1967 houve grande violência durante um protesto contra a visita do xá iraniano Reza Pahlevia Berlim Ocidental. A tentativa de assassinato do militante de extrema-esquerda Rudi Dutschke por um extremista de direita em abril de 1968 gerou uma grande comoção. Ao longo de maio, houve uma onda de protestos contra o estabelecimento do Estado de Emergência. Mesmo assim, o Parlamento acabou aprovando (Kitchen, 2012). Os militantes mais radicais optaram pela luta armada, criando a RAF (Rote Armee Fraktion, ou Facção do Exército Vermelho).

Itália

Houve ocupação de várias universidades por estudantes em maio de 1968. Lá, o movimento estudantil recebeu o apoio de operários. Em outros países da Europa Ocidental, também houve manifestações estudantis.

Invasão soviética em Praga.

Leste Europeu

A agitação de 1968 chegou também ao Leste Europeu. Em janeiro daquele ano, o líder reformistaAlexander Dubcek assumiu o governo da então Tchecoslováquia. Ele tentou criar o “socialismo de rosto humano”, decentralizando a economia e ampliando as liberdades individuais. Este momento foi conhecido como a “Primavera de Praga”. Dubcek foi deposto quando a União Soviética, auxiliada por outros membros do Pacto de Varsóvia, invadiu o país. Alguns habitantes de Tchecoslováquia fizeram atos de resistência pacífica contra a invasão soviética.

Manifestantes contra a Guerra do Vietnã na Convenção Democrata em Chicago.

Estados Unidos

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, as principais pautas dos protestos foram a oposição à Guerra do Vietnã e a luta pelos direitos civis dos negros. Em fevereiro de 1968, ocorreu o Massacre de Orangeburg, na Carolina do Sul, em que foram assassinados manifestantes que protestavam contra a segregação racial. Em abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado, e este acontecimento gerou uma série de protestos como reação. A Convenção Republicana que indicou o nome de Richard Nixon para se candidatar à presidente se escondeu de protestos na pacata cidade de Miami Beach. Mas a Convenção Democrata, realizada em Chicago, teve manifestações violentas contra a Guerra do Vietnã (Neville, 2015). O maior evento símbolo daquela geração ocorreria apenas no ano seguinte: o Festival de Woodstock.

Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em junho de 1968.

Brasil

Diferentemente do que ocorria no Primeiro Mundo, no Brasil os motivos dos protestos eram ainda mais fáceis de ser explicados: existia uma ditadura militar. E diferente do que ocorria no Primeiro e no Segundo Mundo, onde as demandas das sociedades já eram um pouco mais sofisticadas, grande parte da população brasileira não tinha recursos nem mesmo para satisfazer as necessidades básicas.

Houve três tipos de movimento, que cooperaram entre si: as manifestações estudantis, as greves operárias e as vanguardas artísticas. Além do autoritarismo político, a falta de vagas nas universidades públicas para uma crescente classe média gerava inquietação. O assassinato do estudante Édson Luís pela Polícia Militar no restaurante Calabouço foi um marco inicial das manifestações de 1968 no Brasil. O auge foi a Passeata dos Cem Mil, realizada em junho de 1968 no centro do Rio de Janeiro. Participaram estudantes, trabalhadores, artistas, intelectuais e cidadãos de classe média. Em São Paulo ocorreram os confrontos de rua entre os estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (FFLCH) e os estudantes de direita do Mackenzie (Ventura, 1988). Toda a efervescência do 1968 no Brasil foi encerrada no dia 13 de dezembro, com o AI-5.

anques de guerra foram utilizados para reprimir os protestos contra as Olimpíadas e que exigiam investimentos sociais na Cidade do México.

México

O acontecimento de 1968 que gerou o maior número de mortes na América Latina ocorreu na Cidade do México. Influenciados pelos vários protestos que ocorriam pelo mundo, milhares de jovens mexicanos foram às ruas protestar contra os gastos para a realização das Olimpíadas da Cidade do México e exigir investimentos na área social. Inicialmente apenas um protesto de estudantes, rapidamente teve a adesão de toda a sociedade mexicana, incluindo famílias com crianças.

O governo respondeu com extrema truculência, sendo uma manifestação que havia sido organizada como resposta à ocupação da Universidade Nacional Autônoma do México feita pelo exército a que sofreu a repressão mais brutal, que ficou conhecida como Massacre de Tlatelolco. Como resultado, mais de 1300 pessoas foram presas e é possível que os mortos tenham chegado à casa das centenas.

Revolução Cultural na China.

China

Como vimos, o ano de 1968 foi repleto de manifestações anti-governo em diferentes partes do globo e tendo diferentes tipos de governo como alvos. No entanto, a China foi uma exceção, ao ter um grande movimento de jovens a favor do governo de Mao, que foi a Revolução Cultural.

Por que 1968 não pode ser descrito com generalizações simplistas

Houve algumas semelhanças entre os mencionados movimentos no mundo todo. Ocorreram em um período de crescimento econômico, e não de crise. Os protagonistas foram jovens, que cresceram em uma situação econômica muito melhor do que seus pais e avós. Ainda assim, algumas diferenças foram muito importantes. Por causa disso, seria um erro tratar todos as rebeliões de 1968 como um mega movimento global homogêneo, ou relacionar 1968 unicamente com contracultura, novos movimentos sociais e revolução comportamental. As lutas de minorias étnicas, de mulheres, de homossexuais, e da revolução comportamental estiveram mais relacionadas com os movimentos dos Estados Unidos. Embora estas questões também estivessem presentes na França, a participação de operários naquele país foi importante, e por isso, ocorreram reivindicações trabalhistas tradicionais.

Mesmo no movimento estudantil havia os vários “istas” que focavam mais a revolução social do que a liberação individual. Como foi possível ver no documentário de João Moreira Salles (2017), os líderes do movimento estudantil na França tinham cabelos curtos. A participação de mulheres e negros era irrisória.

No Brasil, as vanguardas artísticas se dividiram. A Tropicália foi receptiva à contracultura originária dos países desenvolvidos, mas outras tendências musicais defendiam uma identidade brasileira própria. Os movimentos de luta armada não eram muito simpáticos à revolução comportamental (Krüger, 2010).

Uma visão romântica e ingênua seria a de que havia uma convergência de bandeiras entre os protestos no mundo capitalista e os protestos no mundo socialista. De acordo com essa visão, os protestos no mundo capitalista seriam contra as desigualdades do capitalismo, enquanto os protestos no mundo socialista seriam contra a repressão às liberdades individuais do socialismo, e que ambos defenderiam um sistema ideal, que fosse um capitalismo ou um socialismo humanizado, que combinasse justiça social com liberdades individuais.

Mas, na verdade, entre muitos dos manifestantes no mundo capitalista, a rejeição ao comunismo soviético não ocorria porque faltavam liberdades individuais na União Soviética, e sim porque os soviéticos já estavam muito pacificados com o establishment. O maoísmo empolgava muitos manifestantes ocidentais. No mundo socialista, era possível que nem todos os que rejeitavam a influência soviética defendessem um “socialismo de face humana”, mas simplesmente o capitalismo. Quando houve a Revolução de Veludo na Tchecoslováquia em 1989, o que substituiu aquele tipo de socialismo que vigorava no país não foi um “socialismo de face humana” nem mesmo um “capitalismo de face humana”. Foi simplesmente o capitalismo e ponto final.

1968 não foi o culpado pela guinada do mundo à direita no final do século XX

Outro mito defendido, tanto por autores de esquerda como de direita, é o de que as rebeliões de 1968 teriam contribuído para fazer o mundo dar uma guinada para a direita. Os argumentos que sustentam este mito são o de que o radicalismo dos estudantes e a contracultura teriam afastado a classe trabalhadora da esquerda.

Além disso, a demanda por mais liberdades individuais teria sido resignificada pelos yuppies, como o estabelecimento de um capitalismo menos regulado do que o capitalismo keynesiano-fordista que vigorava no imediato pós Segunda Guerra Mundial. De acordo com esta visão, a rebeldia dos anos sessenta teria contribuído para ganhar novamente importância a empresa de garagem de empreendedores heróis, ocupando o espaço da grande empresa burocratizada e do setor público. Tanto o comunista Zizek, que critica o legado das rebeliões de 1968 e o novo capitalismo do final do século XX, quanto o neoliberal Audretsch, que defende o legado das rebeliões e o novo capitalismo do final do século XX, fazem a associação entre o espírito rebelde dos anos sessenta e o capitalismo menos regulado que apareceu depois.

É verdade que o mundo deu uma guinada para a esquerda logo depois da Segunda Guerra Mundial e uma guinada para a direita no último quarto do século XX. A desigualdade na América do Norte, na Europa e no Japão despencou depois das duas guerras mundiais e da Grande Depressão e voltou a crescer a partir da década de 1980. Os Estados de Bem Estar Socialcresceram logo depois da Segunda Guerra Mundial e entraram em declínio no final do século XX. Mas se observar a sequencia cronológica de eventos políticos logo depois de 1968, é possível perceber que é difícil associar as rebeliões daquele ano com a “direitização” do mundo.

Como foi dito anteriormente, a França foi o país que teve as maiores manifestações de 1968, estas manifestações não se restringiram aos estudantes, houve mobilização de operários, e embora também estivesse presente, o principal foco do 1968 francês não foi a “revolução comportamental”. O efeito imediato das manifestações de 1968 na França foi uma guinada das políticas econômicas para a esquerda. Charles de Gaulle ainda conseguiria se manter no poder por mais um ano e ter dois sucessores conservadores: Georges Pompidou e Valéry Giscard d’Estaing. A esquerda só chegaria ao governo com François Mitterrand em 1981.

Mas ainda assim, entre 1968 e 1981, a França teve políticas de esquerda implementadas por governos de direita. Ironicamente, a partir de 1983, a França passou a ter políticas de direita implementadas por governo de esquerda (Piketty, 2013). Como é possível ver no gráfico da Figura 9, o valor real do salário mínimo, que ficou estagnado entre 1950 e 1968, passou a ter crescimento constante a partir de então. Foi uma tendência oposta à dos Estados Unidos.

Salário mínimo na França e nos Estados Unidos de 1950 a 2013. Fonte: Piketty explained.

Segundo os dados de Piketty, que podem ser vistos na Figura 10, a concentração da renda no extrato do 10% mais rico da população, que foi crescente na França nas décadas de 1950 e início da década de 1960, sofreu declínio até 1983. Durante a década de 1960, a França se igualava aos Estados Unidos como país desenvolvido com maior concentração de renda. Atualmente, a França tem concentração de renda nitidamente menor do que Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha.

Participação dos 10% mais ricos no total da renda nacional nos países selecionados. Fonte: World Wealth & Income Database.

Sobre os Estados Unidos, muitas vezes é dito que em 1968 teve início a guinada conservadora por causa da eleição de Richard Nixon ocorrida naquele ano. Mas a guinada à direita na política econômica só aconteceu de verdade com Ronald Reagan, eleito em 1980. O republicano Nixon (1969-1974) fez uma administração mais progressista do que o democrata Bill Clinton (1993-2001). Iniciou a retirada do Vietnã, estabeleceu as ações afirmativas, criou limites de poluição para veículos, preservou as políticas do New Deal, disse que “todos nós somos keynesianos”.

Nixon não era progressista, mas o pêndulo da política norte americana na virada dos anos 1960 para os anos 1970 estava mais à esquerda do que está nos dias atuais. Apesar da vitória apertada de Nixon na eleição presidencial de 1968, os democratas ainda manteriam a maioria nas duas casas do Congresso por mais 12 anos.

Mesmo o partido republicano daquele tempo estava muito menos à direita do que está nos dias atuais. Como é possível ver no gráfico da Figura 12, o Partido Republicano só caminhou em direção à extrema-direita a partir de meados da década de 1970. Em 1972, Nixon seria reeleito por larga margem em relação ao candidato democrata McGovern. Isto poderia ser aparentemente uma vitória do conservadorismo, mas a verdade é que os dois grandes partidos estavam mais à esquerda do que estão hoje. Atualmente, não há republicanos tão centristas quanto Nixon concorrendo à presidência, nem democratas tão esquerdistas quando McGovern.

Composição partidária das duas casas do Congresso dos Estados Unidos. Fonte: Vox.
Posicionamento ideológico dos dois grandes partidos dos Estados Unidos de acordo com as votações de seus membros na Câmara. Fonte: NPR.

Apesar da margem de vitória de Nixon sobre Humphrey ter sido estreita, dos democratas terem preservado a maioria no Congresso e de Nixon ter feito uma administração progressista – se comparada com as administrações republicanas recentes – Paul Krugman (2007) argumenta que a eleição de 1968 foi um grande marco inicial para o retorno do conservadorismo nos Estados Unidos, uma vez foi naquela eleição que os republicanos estabeleceram sua nova base no Sul, que antes era reduto democrata. Isto foi muito importante para os republicanos, que dependeram do Sul para ganhar eleições presidenciais e legislativas a partir da década de 1980.

Os direitos civis e a contracultura teriam empurrado os brancos sulistas para os republicanos. Esta leitura não é equivocada, mas é seletiva. Da mesma forma que em 1968 os republicanos fincaram base no Sul, os democratas fincaram base no Norte. Porém, Krugman demonstra como acontecimentos da década de 1970 foram muito importantes para a guinada conservadora que os Estados Unidos deram com Reagan. O principal foi o crescimento de um movimento conservador forte e muito bem articulado, que primeiro tomou conta do Partido Republicano, para depois tomar conta do país.

Na República Federal da Alemanha, houve uma guinada política à esquerda logo depois de 1968. No ano seguinte, o social democrata Willy Brandt se tornou chanceler e seu partido se manteve no poder nos 13 anos seguintes. Na Itália, o Partido Comunista continuou crescendo até atingir seu auge em 1976, declinando só na década de 1980. No Brasil, houve uma guinada à direita em dezembro de 1968: o AI-5. Mas a necessidade de imposição pela força mostra que a opinião pública não se deslocou para a direita. Apesar do regime militar ter se tornado mais “de direita” em autoritarismo, se tornou menos “de direita” na política econômica. O terrível arrocho salarial de Castello Branco foi parcialmente revertido. Suas políticas econômicas liberais foram substituídas por um retorno ao nacional-desenvolvimentismo.

O que contribuiu para levar o mundo para a direita no último quarto do século XX foram acontecimentos da década de 1970: fim do ciclo expansivo da economia mundial (que começou em 1945 e durou até 1973), estagflação, dois choques do petróleo e crise dos reféns na embaixada norte-americana no Irã, depois da Revolução Xiita.

Conclusão

Uma narrativa pode omitir detalhes porque a simplificação é necessária para a compreensão. Porém, não podemos confundir simplificação com distorção. As diferenças entre os movimentos de 1968 em cada país não são meros detalhes. Franceses, alemães, tchecos, estadunidenses, mexicanos e brasileiros não estavam protestando pelos mesmos motivos. Falar como se tivessem não seria simplificar, e sim distorcer. Além disso, os acontecimentos políticos e econômicos da década de 1970 que colaboraram para as vitórias da direita no Primeiro Mundo na virada da década de 1970 para a década de 1980 também não são meros detalhes. Atribuir causalidade de 1968 às vitórias de Thatcher em 1979, Reagan em 1980, Kohl em 1982 e a guinada à direita de Mitterrand em 1983 seria omitir muitos fatos que ocorreram entre 1969 e 1979.

Já dizia nosso(a) professor(a) de História do Ensino Médio dizia que era importante entender o passado para entender também o presente, e isso inclui também os mal entendidos e distorções. Em todos os anos terminados em 8 chovem os especiais sobre 1968, mas em 2018 existe um interesse especial, porque entre 2008 e 2018 ocorreram a Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy Wall Street e a as Jornadas de Junho. Paralelos com 1968 são óbvios, por isso, existe a necessidade de melhor compreensão sobre aquele distante ano.

Outro paralelo entre 1968 e 2018 específico sobre o Brasil é que nosso país tem um governo não eleito criado com o propósito de implementar políticas que não passariam no teste das urnas. É verdade que esses governos não eleitos foram estabelecidos de forma diferente, mas, ainda assim, comparações podem ser feitas. Em 2008, quando se faziam os especiais de 40 anos de 1968, nem os brasileiros pessimistas esperavam que estaríamos passando por essa situação dez anos depois.

Referências bibliográficas

AUDRETSCH, D. The Entrepreneurial Society: Oxford University Press 2007
DEUTSCHE WELLE. 1968: Zwischen Vietnam Krieg und Flower Power. 10 de agosto de 2008
ÉPOCA. 1968 – O ano das transformações. 7 de janeiro de 2008
KITCHEN, M. História da Alemanha Moderna: Editora Cultrix 2012
KRÜGER, C. Impressões de 1968: contracultura e identidades: Acta Scientiarum. Human and Social Sciences v.32 n.2 2010
KRUGMAN, P. The Conscience of a Liberal: W. W. Norton & Company Inc 2007
NEVILLE, M; GORDON, R. Melhores Inimigos 2015
PIKETTY, T. O Capital no século XXI: Intrínseca 2013
SALLES, J. M. No Intenso Agora. 2017
VENTURA, Z. 1968: O ano que não terminou: Editora Nova Fronteira 1988
ZIZEK, S. As estruturas não caminham pela rua: La Repubblica 2008

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