Na Folha
Nos últimos anos, uma grande parte das demandas sociais em circulação no Brasil ganhou uma forma muito específica, ligada ao que poderíamos chamar de “estratégia identitária”. Trata-se de se servir de identidades sociais vulneráveis (mulheres, negros, LGBT, indígenas, travestis, entre outros) para constituir um espaço de lutas sociais pela reconfiguração dos polos de poder.
Normalmente, tais lutas passam pela sensibilização tanto em relação a hábitos sociais arcaicos quanto em relação à espoliação econômica em suas estruturas de raça e gênero ou, ainda, em relação a uma nova partilha necessária no campo de visibilidade social.
Nesse contexto, as identidades aparecem como “marcadores de violência”. Ou seja, elas indicam os pontos privilegiados de violência social que se repetem de forma compulsiva.
Nesse sentido, a astúcia de tais lutas está na capacidade de dizer: “negro”, “homossexual”, “mulher” são, acima de tudo, nomes de formas específicas de violência social. Pois, na vida social, há um conjunto de termos que foram colocados em posição de minoridade.
Isso significa que eles não indicam algo como uma “minoria”, mas expressam a maneira como a vida social se reproduz baseando-se em processos de exclusão que faz os portadores destes termos sentirem-se “menores”, independentemente de posição de classe ou nacionalidade.
No entanto podemos dizer que há, em larga medida, duas formas de organizar as lutas sociais através de estratégias identitárias. Compreender tal diferença é algo que pode nos explicar porque lutas sociais feitas em nome dos mesmos sujeitos podem, muitas vezes, ter consequências distintas e até mesmo antagônicas.
Digamos que há, inicialmente, o que poderíamos chamar de “uso provisório das identidades”.
Nesse caso, os portadores dos termos que indicam pontos de vulnerabilidade social percebem como seus usos são provisórios. Pois tais termos não descreveriam nenhuma entidade específica, apenas marcariam um circuito de violência. Por isso, nesse caso, os portadores dos termos podem se ver como os enunciadores privilegiados de uma universalidade por vir. Através de suas demandas, eles lembrarão que a universalidade ainda não foi realizada, que até agora ela indicou o espaço dos que se submetem a uma universalidade colonial, masculina e branca.
Mas notem que eles falam em nome do advento possível de uma humanidade genérica que ainda não existe, mas que pode existir. O objetivo aqui é uma sociedade marcada pela indiferença e pela indistinção, não uma sociedade organizada como condomínios de diferenças essencialmente existentes.
Esse é um ponto importante, porque nossa sensibilidade contemporânea nos fez desconfiados de toda discussão sobre universalismo, como se por trás disto houvesse apenas a imposição da vontade do mais forte. Como se as lutas sociais devessem ser guiadas a partir do respeito irrestrito a contextos específicos e a territorialidades. Mas para que as singularidades existam, é necessário que elas circulem em um espaço de implicação. O que é uma singularidade que não me afeta e não me transforma, uma singularidade que não se transforma a partir da sua afecção a mim?
Mas, se as singularidades se afetam e se transformam, é porque elas partilham um campo comum. Elas expressam uma universalidade que não é o conjunto de normas e predicados próprio a todos, mas o espaço de implicação no qual as diferenças se in-distinguem.
Isto é o contrário de um uso essencialista da noção de identidade.
Nesse caso, cada um define o que lhe é seu e fala em nome do que lhe seria pretensamente seu. Na verdade, nesse caso, a maior vitoriosa é a gramática do liberalismo. Esse mesmo liberalismo que dirá: “Na vida social, só existem indivíduos e suas propriedades. Todo universalismo é apenas uma ficção que se dissipa quando reconduzimos as falas a seu lugar natural”.
As consequências do uso essencialista e do uso provisório da identidade serão necessariamente antagônicas.