No blog do Sakamoto
Carnaval é contestação e subversão. Quando é pasteurizado, transformado em produto, empacotado, vendido e transmitido, a contestação é domesticada e pode perder o que tem de melhor. Por isso, dificilmente se manifesta com grandeza em ambientes protegidos por seguranças armados, isolados por cordões mal remunerados, filtrados pela edição das câmeras de TV e que abraça a ”nata” da sociedade em ar condicionado.
Não é a contestação do beijo forçado e da nudez sexista, que reproduz o cotidiano de nossa sociedade machista e violenta, mas a contestação que nunca é convidada para festas da ”Casa Grande”. Por isso, o Carnaval não é apenas a arte da libertação. Também é a do incômodo. Papel duplo que a Paraíso do Tuiuti cumpriu maravilhosamente, neste domingo (11), no Sambódromo do Rio de Janeiro, sob o enredo ”Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”.
Da exploração de africanos trazidos à força, passando pelo racismo brasileiro até a precarização causada pela Reforma Trabalhista do governo Michel Temer (representado como um portentoso vampiro), a escola de samba constrangeu não apenas autoridades e locutores que transmitiram o desfile, que talvez esperassem algo mais fofo, mas também um naco da sociedade que acha que dias de festa servem para esquecer o cotidiano.
Pelo contrário, as datas de comemorar – palavra que significa ”lembrar junto” – são momentos de trazer à tona aquilo que tentam nos fazer esquecer no dia a dia.
E o que houve naquele 13 de maio, há 130 anos, no qual a Lei Áurea foi sancionada, não foi uma abolição na prática, mas uma mudança na metodologia da exploração. A carne negra segue descartável e dispensável, tratada como mão de obra barata, assassinada nas periferias das grandes cidades.
Os escravizados contemporâneos podem não ser mais escolhidos diretamente por sua cor de pele. Mas a proporção de negros entre os mais de 50 mil trabalhadores libertados da escravidão contemporânea pelo governo federal, desde 1995, é muito, muito superior à proporção deles na sociedade brasileira. Porque a pobreza no Brasil tem cor, e é negra. Fruto de uma ”libertação” que não compensou séculos de cativeiro e, simplesmente, de uma hora para a outra, jogou milhões na rua para receberem salários de fome em nome do desenvolvimento econômico.
Essa superexploração não é fruto da inércia, mas realimentada constante através de leis e regras criadas pelo andar de cima para manter os mais pobres sob controle. E também por narrativas tão bem engendradas que fazem com que trabalhadores se tornem cães de guarda de quem os oprime. E batam panela pedindo Justiça ao lado dos mesmos ”Patos Amarelos” que são corresponsáveis pela tragédia da desigualdade social. Essa narrativas vendem a ilusão de que medidas que mantém a mão de obra explorada, como a Reforma Trabalhista aprovada pelo governo federal, têm o objetivo inverso de libertá-la.
Claro que isso ocorre em meio a um contexto de grande contradição, como mulheres ainda serem tratadas como objeto e tantos outros problemas relacionados aos desfiles.
Mas não deixa de ser irônico que seja necessário um Carnaval, festa da contestação e da subversão, para tirar o véu de ignorância sobre o assunto. E apresenta-lo em sua complexidade, mas de forma tão simples que é possível cantar.
Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor
Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação
O presidente Michel Temer retratado como um vampiro neoliberal. Foto: Marcos Serra Lima /G1
genial!