A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

Parece que está em curso uma transição: aos poucos, deixamos de ser o país dos juízes para nos tornarmos a nação dos generais – de novo, ainda que, dessa vez, com cobertura legal, uma vez que, depois do impeachment, qualquer atropelo às leis poderá ser tolerado desde que os fins justifiquem, para seus operadores, os meios

Por Luiz Eduardo Soares*, no blog da Boitempo

A situação da segurança pública no Rio é gravíssima e, portanto, não há mais lugar para discursos oficiais defensivos e auto-indulgentes. O crime organizado se espalhou como por metástase, mas note bem: só há crime organizado quando estão envolvidos agentes do Estado. Segmentos numerosos e importantes das instituições policiais não apenas se associaram ao crime, mas o promoveram –e aqui se fala sobretudo no mais relevante: tráfico de armas, crime federal. O que fez a polícia federal ? O que fez o Exército, responsável com a PF pelo controle das armas? O que fez a Marinha para bloquear o tráfico de armas na baía de Guanabara? O Estado do Rio está falido, suas instituições profundamente atingidas, mas o que dizer do governo federal e dos organismos federais? De que modo uma ocupação militar resolveria questões cujo enfrentamento exige investigação profunda e atuação nas fronteiras do estado, além de reformas institucionais radicais e grandes investimentos sociais?

Os próprios militares sabem que não podem nem lhes cabe resolver o problema da insegurança pública. Sua presença transmitirá uma sensação temporária de que o Rio se acalmou, porque os sintomas estarão abafados, mas nada será solucionado e a solução sequer será encaminhada. Basta analisar o que se passou na Maré: o Exército ocupou as favelas por um ano, desgastou-se na relação com as comunidades, a um custo de 600 milhões de reais, e tão logo as tropas se retiraram, os problemas retornaram com mais força.

Já que não se trata de enfrentar os verdadeiros e permanentes desafios da segurança pública, muito menos resolvê-los, a que serve a intervenção: são três, a meu ver, suas funções, todas de natureza eminentemente política – é lamentável que os militares se prestem a esse papel, deixando-se manipular, politicamente, como peões em um jogo de cartas marcadas.

(1) Muda-se a narrativa sobre a realidade do Rio, investindo-se na expectativa sebastianista da redenção, que se realizaria, nesse caso, pelas Forças Armadas, em especial o Exército, e pelo governo federal. Um projeto dessa magnitude não seria implantado sem um acordo com a grande mídia, porque sua descrição dos fatos e sua escolha de focos serão decisivas para o êxito político da operação. Ela consistirá essencialmente no deslocamento de Bolsonaro, abrindo-se um espaço para que uma candidatura de centro-direita, em nome da lei e da ordem, mas legalista, capture o eleitorado de direita: ter-se-ia, assim, uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro. Sai o capitão aventureiro e desorientado, e entram generais formalmente legalistas, embora “duros”. Abre-se novo espaço para candidaturas no Rio e no país, e para a emergência de lideranças “de fora da política” e “impolutas”. Parece que está em curso uma transição: aos poucos, deixamos de ser o país dos juízes para nos tornarmos a nação dos generais – de novo, ainda que, dessa vez, com cobertura legal, uma vez que, depois do impeachment, qualquer atropelo às leis poderá ser tolerado desde que os fins justifiquem, para seus operadores, os meios. As denúncias relativas ao auxílio moradia contra Moro e Bretas, poucos dias depois da condenação de Lula em segunda instância, deixa claro que, para a mídia e as elites que mandam no país, em particular o capital financeiro e seus sócios internacionais, o papel dos magistrados já foi cumprido e agora é tempo de “cortar suas asinhas” para evitar que acreditem no próprio personagem e avancem sobre o PSDB, os bancos e as corporações midiáticas. Como se vê, a intervenção militar no Rio complementa a exclusão de Lula da disputa eleitoral, uma vez que não seria suficiente exclui-lo e prosseguir na sistemática marginalização da candidatura Ciro Gomes, se a direita e o centro não se entendessem e criassem uma alternativa viável.

(2) Atuando-se reativamente na emergência, impede-se mais uma vez que alcancem a agenda pública temas fundamentais: (a) a política de drogas; (b) a reforma do modelo policial e a refundação das polícias, com a mudança do artigo 144 da Constituição (por exemplo, com a aprovação da PEC-51 que o senador Lindbergh Farias apresentou em 2013); (c) a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios vulneráveis, em especial a juventude, de modo a que as instituições policiais deixem de ser parte do problema e se transformem em parte da solução. Hoje, as execuções extra-judiciais são a regra, o que leva analistas a declarar que essas áreas estão sob a regência de um Estado de exceção. Infelizmente, isso ocorre com a anuência, por cumplicidade ou omissão, do Ministério Público e as bençãos do poder Judiciário; (d) o investimento em infra-estrutura, educação e cultura, e a abertura de novas oportunidades para a juventude mais vulnerável, respeitando-se as camadas populares e, assim, bloqueando o aprofundamento do racismo estrutural. Os recursos, aos bilhões, viriam do corte no pagamento de juros aos rentistas.

(3) Um efeito lateral nada desprezível seria a suspensão das votações no Congresso da reforma da previdência, salvando o governo de uma derrota, no item que supostamente justificaria sua ascenção ao poder. Por mais que, hoje, o governo negue essa possibilidade, está aberta a temporada de caça a brechas judiciais para obstar o processo de votação.

Não posso concluir sem chamar atenção para os riscos que a intervenção militar representa para os moradores das comunidades e para os próprios militares, que são jovens e não foram treinados senão para o enfrentamento de tipo bélico. A primeira morte provocada por um militar, em decorrência da nova legislação, será julgada pela Justiça militar, o que poderá transferir para a arena jurídico-política internacional a problemática da ocupação do Exército, tornando a operação política um desastre, a médio prazo, a despeito do provável apoio ufanista da grande mídia. Por outro lado, se um militar for atingido mortalmente, as consequências serão imprevisíveis, fazendo girar mais rápida e intensamente o círculo, ou a espiral da violência.

Além de tudo, não nos esqueçamos do exemplo mexicano: quando as Forças Armadas se envolvem na segurança pública, abrem-se as portas para sua degradação institucional.

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Confira o dossiê especial “Violência policial: uso e abuso“, no Blog da Boitempo, com artigos, reflexões, resenhas e vídeos de Ruy Braga, Slavoj Žižek, Antonio Candido, Jorge Luiz Souto Maior, Edson Teles, Mauro Iasi, Christian Dunker, Gabriel Feltran, Maurilio Lima Botelho, Marcos Barreira, José de Jesus Filho, Guaracy Mingardi, Maria Orlanda Pinassi, David Harvey, Vera Malaguti Batista, Laurindo dias Minhoto e Loïc Wacquant, entre outros.

Luiz Eduardo Soares é escritor, cientista político e antropólogo. Professor da UERJ e ex-secretário nacional de segurança pública, é autor de Meu casaco de general (Objetiva, 2005) e Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo (Nova Fronteira, 2011), além de ser um dos autores do livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, Carta Maior, 2015) e da edição 24 da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

Foto: internet, sem indicações de autoria. Exército na Rocinha, em 2017.

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