Intervenção federal no Rio: o exército nas ruas

A intervenção federal no Rio de Janeiro alimenta o processo de militarização já em curso na sociedade.

Por Marcos Barreira, no blog da Boitempo

Nota prévia: As reflexões abaixo são compostas de fragmentos do capítulo “O Exército nas ruas: da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão”, que escrevi, junto com Maurilio Lima Botelho, para o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (Boitempo, 2013). Ao iniciar um comentário sobre os acontecimentos desta semana, percebi, relendo o que escrevemos há seis anos, que restava muito pouco a dizer.

Como se pode ver, não há nenhuma novidade no recurso às Forças Armadas para solucionar crises políticas locais. O Rio de Janeiro vivenciou situações semelhantes nas três últimas décadas, especialmente durante as duas fases da já esquecida “Operação Rio”, em 1994 e 1995.

O emprego dos militares na crise de segurança não é o único elemento recorrente nessa história: basta lembrar de personagens como Moreira Franco, atual “Ministro-Chefe” da Presidência, que governou o Rio de Janeiro entre 1987-91 e se elegeu com a promessa demagógica de acabar com a violência em seis meses, ou do ex-prefeito César Maia, que, em 1994, era favorável ao acionamento do “estado de defesa” para realizar uma intervenção nas favelas. As operações militares mais recentes, nos complexos do Alemão, da Penha e da Maré, fazem parte de uma tradição de intervenções “informais”. Também a atuação de militares no comando da segurança não é nova, mas eles ocupavam um cargo civil.

Se há diferenças, nos dias de hoje, é que, em primeiro lugar, a intervenção federal foi devidamente formalizada, com direito a cerimônia oficial; em segundo lugar, ao definir as atribuições do interventor, o decreto de Temer substitui a autoridade civil por uma militar, modificando a natureza do cargo administrativo. A intervenção federal alimenta o processo de militarização da sociedade. Esse ato foi antecedido por outro decreto, a partir do qual fica transferida a competência da justiça comum para a justiça militar no caso de crimes dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil. Em outras palavras: um poder militar direto sobre a administração pública e que responde apenas ao tribunal militar.

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O Exército nas ruas: da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão

[…] Com a Operação Rio, lançada em outubro de 1994, a utilização das Forças Armadas no “combate à criminalidade” atingiu um novo patamar. Por meio de denúncias contra a instituição policial e da desmoralização do poder executivo estadual, o ambiente para a intervenção militar foi criado pela imprensa, que enaltecia os “momentos de paz” obtidos durante a ECO-92. Produziu-se, além disso, a ideia de que a política de segurança estadual teria permanecido, por conveniência eleitoral, indiferente ao processo de estruturação do tráfico de drogas nas favelas. A manchete de um grande jornal resume o caso: “tráfico põe o Rio em situação de emergência”.1

[…] A partir de 1994, “a chamada guerra no Rio está oficialmente deflagrada”.2 O Exército é o “último recurso” para “restabelecer a ordem”, lia-se nos jornais, depois da pressão para que o governo estadual aceitasse uma intervenção não declarada. Gradualmente, as tropas ocuparam vários locais da cidade e deram início à “pacificação” de “zonas conflagradas”. O objetivo confessado era asfixiar economicamente os pontos de venda de drogas por meio do bloqueio de suas vias de acesso. Seguiu-se a invasão de “favelas estratégicas”, todas situadas em bairros considerados “nobres”, nos quais a sensação de segurança artificialmente produzida foi usada como mercadoria política. A Operação Rio foi apenas um experimento, mas todo o repertório midiático atual já podia ser encontrado na cobertura da época, quase como parte integrante da operação, pois se tratava de construir a atmosfera adequada e as justificativas mais imediatas para o cerco e ocupação dos morros, no que foi chamado de “o dia D para a ação”, “a chance do carioca reassumir o Rio”.

A Operação Rio limitou sua ação a incursões violentas nos territórios de pobreza. Ocorreu com a brutalidade habitual e, por conseguinte, foi logo cingida de denúncias. Em sua segunda fase, já no início de 1995, por um convênio entre o Exército e o governo estadual recém-eleito, firmou-se um novo acordo segundo o qual o Exército participaria apenas da Operação Rubi, patrulhando as grandes vias e as “rotas de fuga”. Somente em casos especiais as Forças Armadas seriam convocadas a atuar em incursões nos morros e, segundo os termos do acordo, nos demais “locais suspeitos”. A mudança estratégica ocorreu em função da ineficiência da etapa anterior da operação e, sobretudo, por causa da imagem negativa causada pelas constantes violações dos direitos humanos, que não raro envolviam práticas de tortura e prisões clandestinas […] Depois da Operação Rio, os números da violência prosseguiram sem grandes alterações e às Forças Armadas coube apenas uma discreta saída de cena para evitar o desgaste diante da “opinião pública”. Ao protagonizarem essa violenta encenação de segurança, as forças militares deixaram um legado: de acordo com os registros de ocorrência da Polícia Civil, verificou-se no Rio um crescimento atípico de mais de 20% do número de homicídios dolosos entre novembro e dezembro de 1994.3

O aumento da violência não foi o único resultado das operações do Exército. Temos dois elementos novos a respeito da participação das Forças Armadas no quadro da segurança pública do Rio depois de 1995. Os primeiros são as operações com objetivos limitados: no período compreendido entre 1995 e 2004 houve várias ações do Exército, mas nenhuma se revestiu do viés ideológico da Operação Rio. O que estava em questão em tais ações eram problemas pontuais.

[…] O segundo elemento que devemos considerar é um efeito inesperado dessa sequencia de operações que, a julgar pelos eventos subsequentes, parece ter resultado no envolvimento das quadrilhas responsáveis pelo tráfico de armas e drogas com efetivos das Forças Armadas. São numerosos os casos de desvio de material bélico nos quartéis com a participação direta ou indireta de militares.4 O padrão mais comum do desvio, que não exclui ações externas à instituição militar, é a cooptação de soldados pelas quadrilhas que operam a venda de drogas nas favelas próximas aos batalhões. São igualmente numerosos os relatos de casos envolvendo militares ou ex-militares que oferecem “serviço” de treinamento às quadrilhas em troca de uma remuneração muito superior ao soldo militar.5 Somente entre 2004 e 2008 ocorreram mais de cem casos de desvios de armamentos dos quartéis do Rio, o que corresponde a algo em torno de 50% dos casos registrados no Brasil. Em mais um caso rotineiro, em meados de 2004, fuzis roubados em um quartel do Exército foram encontrados na favela de Antares, em Santa Cruz, bairro da zona oeste do Rio. O resultado final da operação foi um novo escândalo, noticiado pela imprensa como uma negociação dos comandantes militares com os chefes locais do “tráfico”. Pouco depois, outro desvio de armas, no quartel de São Cristóvão, bairro da área central, teve como conseqüência uma grande operação cujo desfecho foi mais uma vez envolvido em denúncias de negociação com traficantes.

O ápice de todo esse processo, no entanto, só ocorreu em 14 de junho de 2008,6 quando a imagem do Exército se vinculou de modo inapagável à lógica da violência: uma ação com onze militares resultou na prisão irregular de três moradores do morro da Providência (então dominada por uma facção do tráfico) que, em seguida, foram levados pelos militares até o morro vizinho (dominado por uma facção rival) e executados pelos traficantes locais. Com a repercussão nacional do episódio, evidenciou-se como a instituição militar, a exemplo de outras instituições estatais, havia se deixado permear pela lógica da faccionalização que divide a maior parte das favelas cariocas. Constatou-se, além disso, que a presença militar na Providência para a fiscalização de obras de um projeto federal era completamente ilegal.

[…] Tal como a ação de 2006, a megaoperação de 2010, na Vila Cruzeiro, próxima ao complexo de favelas do Alemão, não estava prevista por nenhum plano de segurança. Foi uma situação ocasional, motivada pela obrigação de responder aos ataques do “crime organizado” ocorridos em toda a cidade nos dias anteriores, mas, sobretudo, derivava de uma redistribuição territorial das atividades do tráfico que já vinha ocorrendo desde o início da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em áreas estratégicas da cidade e do avanço das áreas sob o controle de grupos milicianos. Entre 2009 e 2010, o número de integrantes da facção que controlava a venda de drogas local triplicou nos complexos do Alemão e da Penha. Muitos chefes e gerentes do tráfico em pequenas favelas da cidade concentraram-se ali, juntamente com seus “soldados”, depois de terem perdido o controle de seus pontos de venda. A Vila Cruzeiro e suas adjacências haviam se tornado bastiões da principal facção criminosa do tráfico. Essa concentração imprevista das atividades de distribuição de drogas e armamentos para outras favelas tornou inevitável a chamada operação de “retomada” da região. Por isso mesmo, não estava prevista a instalação de UPPs nas favelas que compõem os Complexos do Alemão e da Penha. Para realizar uma grande intervenção nesse complexo seria necessário mobilizar um contingente igual ao que atuava nas favelas onde já funcionavam as UPPs ou maior que ele. Desse modo, recorreu-se ao Exército, novamente em uma situação jurídica nebulosa, isto é, à margem da lei, não apenas para o suporte da operação de “pacificação”, mas igualmente para empreender uma ocupação capaz de realizar de modo duradouro a administração repressiva desse grande território para o qual a Polícia Militar não dispunha de efetivo suficiente.

NOTAS

1 O Estado de São Paulo, 07 de agosto de 1994.
 Jornal do Brasil, 01 de novembro de 1994.
3 “[…] vários dos objetivos da Operação Rio I fracassaram: as favelas não foram desarmadas, o tráfico de drogas continuou em vigor, o índice de criminalidade permaneceu alto e as favelas não foram incorporadas ao resto da cidade no sentido de seus habitantes poderem usufruir do direito de cidadania” (Zaverucha, 2000: 196). É significativo que as operações de ocupação da Vila Cruzeiro e da Rocinha, ao longo de 2011, tenham sido denominadas pelas Forças Armadas Operação Rio III e IV, respectivamente, o que não foi divulgado pela imprensa, dado o fracasso das operações da década de 1990.
4 O jornal O Globo noticiou: “Em 2009, o Exército recuperou um fuzil que havia sido roubado no 26º Batalhão de Infantaria Paraquedista, unidade considerada de elite, durante uma operação nos morros da Pedreira e da Lagartixa, em Costa Barros, no subúrbio do Rio. Na época, todos os cerca de 700 homens lotados no batalhão, localizado na Vila Militar, ficaram presos até que a arma reaparecesse e fossem identificados os responsáveis pelo roubo”. Cf. “Desvio de armas em quartéis é um desafio para as Forças Armadas”, 12 de dezembro de 2010. Outra reportagem do mesmo jornal, essa de 29 de junho de 2011, relata que “Pelo menos dois mil projéteis de armamento de grosso calibre desapareceram no último dia 22, véspera do feriado de Corpus Christi, do Batalhão Escola de Comunicações, na Avenida Duque de Caxias, na Vila Militar. Alguns soldados da unidade estão, desde a semana passada, aquartelados por causa do furto do material”.
5 De acordo com o jornal O Globo, de 03/02/2002, “Ex-militares do Exército treinam traficantes no Rio: cursos dados por cabos e soldados da reserva custam até R$ 8 mil por mês”. Igualmente, o Jornal do Brasil noticiou, em 04/04/2002, que  “Em uniformes camuflados, armados de fuzis, metralhadoras e granadas, 32 ex-militares, oriundos da Brigada Paraquedista do Exército estariam cruzando as ruas do Rio em missões táticas encomendadas por facções criminosas, em guerra por pontos de venda de drogas. Apelidado de “bonde verde”, o grupo não guardaria fidelidade a qualquer facção, atuando sempre como mercenário”.
6 Considere-se que, ainda em 27 de junho de 2007, nos “preparativos” da cidade do Rio para a realização dos jogos Pan-Americanos, uma operação no Complexo do Alemão conhecida como “chacina do Pan”, envolvendo policiais militares e a nova “Força Nacional de Segurança”, resultou em 19 pessoas mortas e 62 feridos por armas de fogo. Criada em 2004, a Força Nacional de Segurança é outra expressão da mlitarização policial. Como tropa federal subordinada ao Ministério da Justiça, operando por “convênios” com governos estaduais para intervir em conflitos urbanos, a FNS é também, para muitos juristas, um exemplo flagrante de inconstitucionalidade.

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Marcos Barreira é Professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Menino olha a atuação da operação na Rocinha capitaneada pelo Exército e pela Polícia Militar. Foto: Mauro Pimentel/AFP.

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