O desejo de que estados e municípios tivessem mais flexibilidade com os gastos em saúde é antigo. Agora a ideia virou regra no financiamento, mas as críticas são várias. Nossos entrevistados mostram que a discussão não é tão simples quanto parece
Por Raquel Torres, do Outra Saúde
Foi meio na surdina, entre o Natal e Ano Novo, que o Ministério da Saúde publicou uma medida bem polêmica sobre o financiamento do SUS. É a portaria 3.992, de 28 de dezembro, que muda o modo como os recursos federais para a área são repassados aos estados e municípios e dá uma afrouxada nas regras para os gastos. Antes, o dinheiro já vinha do Ministério atrelado às áreas em que deveria ser usado, como atenção básica e assistência farmacêutica. Agora, não mais.
Embora o momento da publicação não tenha sido o mais propício para a alimentar a discussão (ou ação) em torno disso, a verdade é que a proposta já estava concretamente na mesa havia quase um ano. Em janeiro de 2017 ela já tinha sido pactuada, com o nome de ‘SUS Legal’, em uma reunião da CIT (a Comissão Intergestores Tripartite, que reúne representantes do ministério e das secretarias municipais e estaduais). Mas o tema é muito mais antigo: já se falava em aumentar a flexibilidade no uso dos recursos desde… Bom, praticamente desde que o SUS é SUS. Apesar disso, mesmo quem entende a flexibilização como necessária tem ficado de pé atrás.
É que o contexto político em que essa portaria se insere é o mais suspeito possível. Quando os investimentos em saúde vão ficar congelados por quase 20 anos e a principal bandeira do ministro Ricardo Barros é ter mais planos privados, é difícil acreditar nas boas intenções do documento. “Temos muitos problemas nos 30 anos do SUS, mas, nesse momento, quando estamos inclusive com a corda no pescoço pelas próximas duas décadas, discutir essa questão como se fosse a mais importante é uma banalização dos problemas, e tira o foco da questão principal, que é o subfinanciamento. É mais uma vez aquela história de que o problema não é de financiamento, mas de gestão. Isso é absurdo”, diz Eli Iola Gurgel, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-diretora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Sistema Único, caixa único
Até agora, os recursos que o Ministério transferia a estados e municípios vinham divididos em seis blocos, como se fossem seis carimbos: atenção básica; média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar; vigilância em saúde; assistência farmacêutica; gestão do SUS; e investimentos na rede de serviços e saúde. As secretarias de saúde precisavam ter seis contas no banco, uma para cada área, e as contas não podiam conversar entre si.
Os gestores costumavam reclamar do que classificavam como um ‘engessamento’: se faltava dinheiro para assistência farmacêutica e sobrava em atenção básica, por exemplo, não era possível usar o dinheiro de um bloco para suprir o outro. Quando anunciou a proposta, o Ministério da Saúde disse que, em 2016, R$ 5,6 bilhões haviam ficado paralisados por conta disso. Agora, em tese, essa realocação será possível. Os cinco primeiros blocos foram unidos em um só – o de custeio – , e o de investimento se manteve.
O médico sanitarista Gilson Carvalho, um dos idealizadores do SUS , bateu nessa tecla por muitos anos. Em 2012, ele chegou a escrever a respeito da expressão “SUS único, caixa único”, e disse que iria “repetir este mantra domingo a domingo até acontecer”. Ele, que era consultor do Conasems, o conselho que reúne os secretários municipais, afirmou: “A ideia de caixa único das transferências federais foi sonho e desejo desde a concepção do SUS”.
Isso já chegou a existir, por alguns anos, na década de 1990. Só que, em 1996, uma norma dividiu a transferência em dezenas de repasses, vinculados às ações ou programas do Ministério: são as tais caixinhas, como ficaram conhecidas. Isso foi efetivado dois anos depois e, para Gilson, representou “a tirania da tutela total do Ministério da Saúde fazendo desconcentração, e não descentralização para estados e municípios”.
O tamanho do nó
Depois de anos e anos de discussão, chegou-se a um meio termo em 2007, com a definição de cinco blocos de custeio (depois, incluiu-se o de investimento). “A discussão vinha caminhando para a busca da descentralização e este ainda não era o desejo, mas, em certa medida, foi um avanço”, diz o economista Francisco Funcia, que é assessor da comissão de financiamento do Conselho Nacional de Saúde.
O grande problema é que era preciso abrir outras muitas contas, que não estavam previstas na portaria, para controlar os recursos gastos. Isso se explica porque, apesar dos blocos, ainda havia os repasses específicos. “Se o Ministério repassa o recurso fatiado, então exige que a prestação de contas seja também fatiada. Como se fosse uma lógica de convênio, que é contrária à do repasse de fundo a fundo”, compara o também economista Áquilas Mendes, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Aliás, tanto o Ministério como as comissões de gestores afirmam que, no fim de 2016, havia a um total de 882 “caixinhas”, o que dá uma ideia do tamanho do nó.
É preciso dizer que há divergências quanto a esse número. Em uma nota técnica publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Rodrigo Benevides apresenta dados daquele ano, recolhidos no site do próprio Fundo Nacional de Saúde, que gere os recursos do SUS no âmbito federal.
Ele concluiu que, para os governos municipais, foram repassados recursos em 122 caixinhas ao todo. E os municípios com o maior número – São Paulo e Belo Horizonte – chegaram a 75. Viu ainda que a maior parte das tais caixinhas estava na Atenção Básica (29) e, nessa área, 75% dos recursos haviam de fato sido transferidos por meio delas (são recursos para a Estratégia Saúde da Família e Saúde Bucal, por exemplo). “Talvez o número 880 seja a quantidade de caixinhas que existiram ao longo de toda a ‘história das caixinhas’, incluindo as inativas. Mas a soma das ativas, como mostra o estudo, chega a 120. Eu também considero que 120 seja um número alto, mas acho que se criou este número, 880, para superdimensionar o problema”, observa Funcia.
Em 2012, uma lei complementar (nº 141) estabeleceu, entre outras coisas, que os recursos da União seriam repassados a estados e municípios “de forma regular e automática, dispensada a celebração de convênio ou outros instrumentos jurídicos”. Ela também dizia que o planejamento e o orçamento deveriam ser ascendentes, partindo das necessidades de saúde de cada região. Sinalizava, assim, que uma mudança na forma de repasse estava por vir.
A ideia estava nos planos do então ministro Alexandre Padilha desde que assumiu a pasta durante o governo Dilma Rousseff (PT), pouco antes, em 2011. “A Saúde, que foi ousada em criar o SUS, tem que ser ousada, neste momento, em consolidar uma nova relação federativa entre União, estados e municípios. Quem sabe a gente possa conseguir atingir aquilo que nós chamamos de uma imagem ideal, que é compromissos únicos, sistema único e caixa único. Os gestores municipais e estaduais sabem do que estou falando”, disse ele, já no discurso de posse.
Acontece que, para apoiadores do SUS, a defesa do caixa único nunca esteve descolada da necessidade de melhor financiamento (o próprio Gilson Carvalho falava disso o tempo inteiro). E, no contexto atual, em que acontece justamente o oposto, muita gente tem visto a portaria como uma espécie de armadilha. Através dela, áreas como atenção básica e vigilância poderiam perder recursos para a média e alta complexidade, o que levaria à total desconfiguração do Sistema. Mas como isso poderia acontecer?
A grande suspeita
Quando o SUS constitucional começou a ser regulamentado, em 1990, ficou estabelecido que haveria um Fundo Nacional de Saúde. Uma parte dos recursos ali alocados seria usado nas ações federais, e outra seria repassada aos fundos estaduais. Nos estados, a mesma lógica: eles usariam uma parte (junto com contribuições recolhidas por eles) e passariam outra parte a fundos municipais. Os municípios também somariam os recursos vindos ‘de cima’ a uma parte do seu próprio orçamento.
A lógica tem sido essa, desde então, mas com mudanças ao longo do tempo em relação a quanto de suas próprias receitas cada ente federado deve investir. E passou a haver uma grande luta para garantir que os recursos alocados pela União não fossem insuficientes – e, como se sabe, sempre foram.
Vale resumir a história de terror que foi esse pleito. No ano 2000, mais de uma década depois da criação do SUS pela Constituição, uma emenda complementar finalmente definiu os percentuais a serem investidos em saúde pelos entes federados, mas as notícias foram péssimas para quem defendia mais recursos federais. Ficou estabelecido que municípios usariam no mínimo 15% de determinadas receitas próprias, os estados usariam 12%… Mas, para a União, nenhuma vinculação às receitas – apenas o que já havia sido investido no ano anterior, acrescido da variação do PIB. Outra década teve que passar até que a lei 141 regulamentasse isso. E, de novo, foi criada a maior expectativa. Novamente, em vão: não mudou nada.
Na prática, os municípios são os mais sobrecarregados e costumam extrapolar esse percentual mínimo. Hoje, eles respondem por cerca de 31% das despesas públicas com saúde, contra 43% da União e 25% dos estados. Isso já era um problema – afinal, quem arrecada menos são os municípios –, mas as coisas só pioraram nos últimos anos. Em 2015, houve mais uma mudança que diminuía a participação da União e, agora, chegou-se ao fundo do poço, porque, como todos sabem, os recursos federais estão congelados.
Mesmo entre aqueles favoráveis à mudança, parece bem provável que a portaria tenha sido uma forma de o governo federal passar a batata quente adiante. “Com o subfinanciamento histórico e, agora, o congelamento, a situação é caótica. A equipe que entrou no governo Temer conseguiu jogar a pá de cal na saúde. Então o governo pensou: já que não vai ter recurso, e já que municípios e estados estão me pressionando, vou repassar em bloco único e eles que usem como quiserem. Tem, claro, uma afirmação de que foi um jogo de interesses”, diz Áquilas Mendes.
As falas de Ricardo Barros na semana passada (19/02), no programa Roda Viva, ilustram muito bem este lavar de mãos do Ministério. Disse ele: “Paramos de dizer, daqui de Brasília, quanto em cada estado e município vai para cada área de atuação. Eles têm autonomia para, com o recurso recebido, definir quanto [será usado]”. Ele declarou estar convencido de que uma decisão tomada pelo município é melhor que qualquer decisão vinda da Esplanada e garantiu ainda que “não há falta de recursos”. Para Barros, quando um estado faz “a lição de casa bem feita”, não dá problema. “Minas Gerais fez mal feito, está cheio de casos [de febre amarela]. A execução da saúde no Brasil é descentralizada. Cada município faz da sua forma, tem autonomia para fazer. Cada estado faz da sua forma”. Ele disse ainda que o estado de Minas não repassa aos municípios a quantidade de recursos financeiros destinados pela União, assim como não aplica em saúde os 12% de suas próprias receitas, mas que sua autonomia precisa ser respeitada.
Se as prefeituras já viviam sobrecarregadas, nesse contexto de desfinanciamento federal agudo as dificuldades vão aumentar. Tudo indica que, nessa esfera, está por vir o fundo do fundo do poço. Em 2035 – um ano antes do fim da regra do teto – os municípios terão ultrapassado o governo federal como os maiores financiadores da saúde. As contas são de um estudo da Confederação Nacional de Municípios divulgado pelo Valor. “A estimativa é de que as despesas da União com saúde encolham em quase 1/3 em termos de participação”, diz a matéria. E isso, segundo o presidente da entidade, Paulo Ziulkoski, vai acontecer em paralelo a uma diminuição dos gastos municipais em saúde, que hoje giram em torno de 22,5% de seu orçamento (pela lei, o mínimo é de 15%, como já explicamos) . “A tendência é de redução [nesse percentual]”, admitiu ele.
O que alguns pesquisadores apontam é que, forçados a lidar com situações mais urgentes e com recursos insuficientes para dar conta de tudo, os municípios podem acabar deixando áreas como atenção básica e vigilância em saúde de lado para apagar incêndios na alta e média complexidade. “Eles podem ceder mais facilmente à pressão de hospitais, que têm mais força econômica para conseguir ter seus valores pagos em dia, para atender mais”, diz Funcia, resumindo: “É o pragmático substituindo o programático”.
Eli Gurgel acredita que vai ser possível uma total flexibilização da atenção básica. “Aliás, vimos que já houve uma reorientação da PNAB”, lembra, referindo-se à Política Nacional de Atenção Básica, que foi modificada no ano passado sob fortes críticas de que desestruturaria a Estratégia Saúde da Família (veja aqui, aqui e aqui).
Sorriso amarelo
Porém, para Áquilas Mendes, o medo não se sustenta porque há flexibilidade financeira, mas não orçamentária. Isso porque ao longo do ano os recursos podem ser livremente usados mas, no fim, é preciso comprovar que eles foram gastos de acordo com a previsão orçamentária. Funcia concorda: “A portaria não revoga, ao contrário, tem dispositivos que deixam clara a necessidade de que os uso dos recursos obedeça à classificação orçamentária em que saem do Fundo Nacional de Saúde”.
O orçamento é construído por funções e subfunções definidas pela portaria nº 42, de 1999. Assim, a despesa em saúde se chama ‘função saúde’ e é dividida em várias subfunções, numeradas, que correspondem mais ou menos (mas não exatamente) aos antigos cinco blocos de custeio: atenção básica, assistência hospitalar e ambulatorial, vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, produtos profiláticos e terapêuticos, alimentação e nutrição. Toda a despesa em saúde é organizada de acordo com as subfunções. “O orçamento de 2018 já foi feito em torno delas, ou seja, já previu quanto deve ser gasto com cada uma delas. Como a portaria não desvinculou o orçamento, ele ainda está amarrado”, diz Mendes.
E, como lembra Funcia, tem ainda as ações pactuadas dentro de cada subfunção, ou seja, dentro de cada classificação orçamentária, há outros elementos. “Por exemplo, dentro da subfunção ‘assistência hospitalar e ambulatorial’, pode ter um recurso pactuado para abrir 50 leitos de maternidade. Isso também precisa ser demonstrado no fim do ano – para cada item pactuado, é preciso relatar como os recursos foram usados”. Ele lamenta que isso não esteja sendo devidamente divulgado. “Não tenho como comprovar, mas me parece que não está sendo divulgado porque, ao longo de todo o ano passado, tanto a assessoria da secretaria executiva do Ministério quanto o próprio Conasems foram colocando a questão da flexibilização, que ia valer de forma plena para 2018. Na prática, não é assim”.
É por causa dessas ‘amarras’ que, de acordo com Mendes, os gestores não estão assim tão satisfeitos. “O Conasems ficou feliz? Bom, deu um sorriso amarelo. Porque na realidade só conseguiu avançar um passo. Vai, então, continuar o pleito para que a portaria se estenda, para que permita a desvinculação orçamentária e novos critérios de rateio, com base na lei 141”, resume o professor, que vai atuar como consultor do Conselho nesse pleito, integrando um projeto “para o Conasems ter material para pressionar o Ministério e o Conass [Conselho dos Secretários de Saúde] na CIT”.
A previsão orçamentária é feita a cada ano, mas precisa respeitar os planos municipais e estaduais de saúde, que duram quatro. O que entrou em vigor em 2018 vai, portanto, até 2021. Por isso, segundo Mendes, mesmo nos próximos anos os gastos dos municípios vão continuar se organizando de modo a contemplar, de certa forma, os antigos blocos – e, então, não é preciso se preocupar que alguma área vá perder recursos.
Mas e depois? “Daqui a quatro anos vai haver novos planejamentos, mas não tem como a saúde não considerar a atenção básica, vista como área fundamental para se fazer saúde. O SUS está ancorado nela”, confia o professor: “Já existe uma organização, os municípios já estão organizados e a responsabilidade pela atenção básica é – basicamente – deles. Vai ser da nossa luta política no SUS garantir a coordenação do Sistema via atenção básica”.
E como faz para rastrear?
Se, por parte da gestão, o grande problema agora é a flexibilização orçamentária, Francisco Funcia defende que a grande necessidade é, justamente, ter maior rigor no controle. Apesar de a portaria exigir a prestação de contas, ela não é simples de ser feita com um bloco de custeio único. “Sou favorável à flexibilização financeira, à autonomia dos gestores sobre o fluxo de caixa. Mas é preciso ter um controle para saber se os recursos recebidos foram realmente gastos com as finalidades previstas”, diz.
Ele afirma que a unificação gera uma dificuldade no processo de monitoramento por parte dos conselhos e, ao mesmo tempo, uma exigência maior de controle por parte dos gestores. “Vai ser preciso um controle paralelo deles”, avalia, emendando: “Isso, que tem ficado como algo secundário, para mim é prioritário”.
Já Mendes aponta que, assim como acontecia quando os blocos eram seis, as diversas contas bancárias podem continuar existindo. “Mesmo tendo uma conta única para custeio, eles [estados e municípios] ainda vão ter que se organizar para demonstrar os gastos separadamente. Vão acabar tendo que abrir várias contas outra vez”, diz. A prestação de contas, segundo ele, deveria ser feita mediante resultados, e não extratos bancários.
Na hipótese do fim verdadeiro das caixinhas, Funcia avalia que, para tornar o rastreio possível, conselhos de saúde (formados por representantes de usuários, trabalhadores, prestadores de serviços e gestores) vão precisar de atenção e muito trabalho: “Antes era possível rastrear pelas contas. Agora, passa a haver a necessidade de uma ação para se ter a informação. Os conselhos municipais e estaduais vão ter que pedir informações sobre a execução das metas pactuadas não só no fim do exercício, mas a cada quadrimestre. Vão ter que olhar não só as metas dos planos municipais e estaduais de saúde, mas também aquelas pactuadas na CIT”. Ele aponta o risco de que as gestões tentem justificar toda realocação como um caso de necessidade.
A atuação dos conselhos, aliás, também tem sua importância na própria discussão e publicação da medida. “A portaria fala de um critério de transferência, ainda que restrito à questão financeira. Enquanto critério, isso deveria ter sido pactuado na CIT, mas também deveria ter sido deliberado e aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde”, diz Funcia. E o Conselho, justamente, tem se posicionado contra a unificação dos blocos desde que ela foi pactuada na CIT. Em março, publicou uma recomendação propondo uma transição para a unificação dos blocos: “A proposta era, de início, fazer com que os seis blocos funcionassem de fato como deveriam funcionar, com apenas seis contas, fechando todas as outras. Mas a CIT ignorou completamente o Conselho. [Os gestores] resolveram trocar o pneu com o carro andando”, compara Funcia. Em sua avaliação, como não levou em consideração a decisão do Conselho, a medida é ilegal.
O papel da União
Como foi dito ali em cima, a União passa recursos específicos para garantir a efetivação de determinadas políticas, financiando certos programas e áreas – essas linhas geram as tão faladas caixinhas. É uma forma de induzir a concretização de políticas públicas nos estados e municípios mas, para Mendes, essa indução deveria se dar de outra forma. “A indução tem a ver com a construção da política, mas não deveria amarrar os recursos dessa maneira. Os municípios acabam ficando como despachantes de luxo da política vinda de cima. O SUS diz que tem que ser de baixo para cima”, defende.
É uma posição polêmica. Para Eli Gurgel, não se pode desconsiderar a relevância que esses recursos ‘extras’ tiveram (e têm) para estruturar e qualificar a rede de atenção básica no país, efetivando equipes de Saúde da Família e os Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASFs), por exemplo. Ela assinala o significado da diminuição desse papel indutor em um momento delicado como o atual. “O Ministério hoje não tem um projeto de saúde pública. Os dirigentes já anunciaram a importância de abrir a porteira para o setor privado, inclusive com planos de saúde populares muito próximos dos sistemas que os municípios têm hoje para atenção básica”, diz, arriscando um palpite: “Não é nenhum absurdo imaginarmos que, no futuro, planos populares possam vir a vender serviços para os próprios municípios. Aqui em Betim [na região metropolitana de Belo Horizonte] um secretário de saúde já cogitou contratar a Unimed para a atenção básica, argumentando que seria mais barato do que manter a rede municipal”.
Também para Francisco Funcia, as coisas são mais complicadas. É que, embora as especificidades dos municípios devam, é claro, ser levadas em consideração, não se pode também perder a articulação entre as três esferas de governo na formulação das políticas de saúde e no Plano Nacional de Saúde. “Há um conjunto de referenciais que vêm das pactuações municipais, intermunicipais, regionais, até chegar à União, mas também há políticas indutoras que envolvem esferas de governo a partir da federal”, diz ele, explicando que, justamente por isso, foram criadas as comissões de gestores – a tripartite, que envolve os três entes federados, a bipartite, com as gestões municipais e estaduais. “Esse plano e a definição das políticas são algo muito mais complexo do que a simples soma ou agregação de 5.570 planos municipais e 27 estaduais. Esse é o sofisma da composição como a soma das partes”, resume.
Ainda em janeiro, os mais de cinco mil municípios e 27 estados tiveram menos de dez dias úteis para abrir suas novas contas bancárias. Como observa Francisco Funcia neste texto, isso precisou ser feito às pressas, muito antes de terminar o período que a própria portaria previa para a tomada das providências. Os esclarecimentos por parte do Fundo Nacional de Saúde e do Conasems foram feitos por meio de vídeoconferência. Os repasses foram feitos, mas, claro, é muito cedo para avaliar se alguma das suspeitas vai se concretizar. Aguardemos, portanto.
(O Conasems e o Conass foram procurados, mas não atenderam aos pedidos de entrevistas até o fechamento desta reportagem)
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Ilustração: reprodução Abrasco