Governo Temer cria postos de fronteira para os pobres “entrarem” no Rio, por Leonardo Sakamoto

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Falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto, como sempre digo. Se o Brasil fosse pródigo em suprir a primeira carência, talvez não teríamos tanta violência e desigualdade. Mas se fossemos bons na segunda, nossos governos não durariam seis meses no cargo, depostos pelas própria língua.

A forma como o governo Michel Temer está defendendo o cerceamento da liberdade de ir e vir de cidadãos em comunidades dominadas pelo crime organizado no Rio de Janeiro beira o ridículo. E olha que estamos apenas no começo da intervenção federal na área de segurança pública do Estado.

”Quem achar isso muito ruim não pode entrar no Palácio do Planalto, na sede de um banco, num condomínio ou dentro de uma emissora de rádio”, afirmou o general Sérgio Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, em entrevista à Rádio Gaúcha, nesta segunda (26).

É assustador como ele não entende – ou faz de conta que não entende – a diferença entre espaços públicos (como comunidades e bairros) e privados (bancos, condomínios e empresas de comunicação). Ou mesmo espaços públicos sob proteção especial, como a sede do Poder Executivo e o resto das ruas do país. No momento em que o remédio se torna tão ruim que pode piorar a saúde do paciente, deveríamos repensar o prognóstico. Mas opera-se na base do tratamento de choque.

Essa provável incapacidade talvez ajude a explicar a razão do governo ter aventado a bizarra proposta de obter mandados coletivos para que os militares pudessem entrar na casa de qualquer pessoa de uma comunidade pobre sem autorização específica para tanto. Mas, afinal, por que a surpresa? Estamos falando da gestão Temer, em que a cúpula do governo é acusada justamente de tornar privado o que era público.

Sob intervenção federal, moradores que desejam se deslocar para outro canto da cidade estão sendo fotografados e tendo que esperar para verificar se está tudo ok com seu histórico nas bases de dados da polícia. Ou seja, foram instalados ”postos de fronteira” dentro de nosso próprio território.

Em evento, em Porto Alegre, na noite desta segunda (26), o general questionou novamente as críticas sobre o cerceamento de liberdade por parte das forças de segurança nas comunidades: ”Nenhum de nós se incomoda de ser fotografado para passar na imigração dos Estados Unidos para ir comprar enxoval do neto ou do filhos. Ou para levar os filhos ou netos para a Disney”, em registro do jornal Zero Hora.

O fato dos EUA serem um outro país é apenas um detalhe. A questão de brasileiros que são impedidos, nesses ”postos de fronteira” nas comunidades, de seguir para o trabalho, a um hospital ou para a praia se não aceitarem ser fotografados por militares é bobagem desse pessoal dos direitos humanos.

O que faz sentido pela lógica de operação das próprias Forças Armadas, que é proteger o país de seus inimigos externos que possam colocar em risco os cidadãos. O Estado nunca garantiu cidadania aos moradores de comunidades pobres, usando-os apenas como mão de obra barata. Sistematicamente fez incursões para ”pacificar” através da porrada, não sendo capaz de permanecer pela instalação de equipamentos e a execução de políticas públicas para garantir qualidade de vida aos mais pobres e perspectivas aos mais jovens.

Isso é corroborado pelo próprio ministro da Justiça, Torquato Jardim, que vê combatentes inimigos nos moradores de bairros pobres. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense sobre a intervenção no Rio, afirmou: ”Como você vai prevenir aquela multidão entrando e saindo de todas as 700 favelas? Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola”.

Bem, se não sabe é porque não faz parte da solução para que ela faça atividades de contraturno, de educação, cultura, esporte e lazer, dedicadas ao seu crescimento pessoal.

O general Sérgio Etchegoyen também afirmou em Porto Alegre: ”Não me parece ser um problema fazer isso com ninguém. Impedidas de ir e vir estão as pessoas que hoje são tiranizadas pelo tráfico”. Sim, são impedidas pelos criminosos das facções. Mas o Estado não é uma facção e, portanto, não pode agir como uma.

Toda vez aliás que alguém [usa] uma justificativa do tipo: ”ah, mas o outro lado faz pior”, um panda bem fofinho e sorridente morre de desgosto na China.

Em tese, o tráfico são os bandidos e o governo, os mocinhos. Para o azar da população carioca, contudo, a disputa entre os dois grupos parece ter exterminado a figura daqueles que colocam a dignidade dos civis em primeiro lugar.

Se não parece ser um problema fazer esse controle com ninguém, que se coloquem as forças armadas nas saídas de prédios e condomínios da Zona Sul e da Barra da Tijuca para averiguar os sonegadores que impedem o bom funcionamento dos serviços públicos, como já disse aqui. A verdade é que, neste país, autoritarismo na comunidades dos outros é refresco.

Na manhã desta terça (27), o interventor federal do Rio de Janeiro, general Walter Souza Braga Netto, afirmou que o Estado  ”é um laboratório para o Brasil”. Com o que aconteceu até aqui, espero que não.

Exército ignora Constituição e ‘ficha’ moradores de bairros pobres e favelas. Foto: Wilton Júnior /Estadão

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