Em Outra Saúde
Um dos maiores nomes da Reforma Sanitária e renomada professora e pesquisadora, Sonia Fleury escreveu uma carta aberta sobre sua demissão da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, depois de 35 anos de trabalho (e está circulando uma petição pública contra a demissão). Confira a carta:
***
Ao Flavio Vasconcelos,
E demais membros da Direção da EBAPE
No dia 13 de março fui convocada para um encontro na sua sala. Como você nunca me chamou para conversarmos sobre o trabalho que desenvolvo, não me surpreendeu que o motivo fosse minha demissão. Sim, me surpreendi com o fato de você estar acompanhado de dois outros professores que fazem parte de seu grupo dirigente. Achei desnecessário, mas, imediatamente compreendi que se tratava de personificar os papéis em jogo neste encontro. Para usar a linguagem da investigação, que está na moda, eram o Formulador, o Executor e o Operador.
Me foi dito uma única frase como explicação para minha demissão, depois de 35 anos de trabalhos na instituição: “tenho um mandato para fazer renovação”. Isso lhes pareceu suficiente, e só pude retrucar que minha saída representava uma grande perda para a escola. Ainda tenho um projeto do Dicionário Carioca de Favelas que é financiado pela Rede de Pesquisas Aplicadas da FGV, em contrato até agosto de 2019. Espero que possa ter continuidade, já que representa compromisso assumido, em nome da FGV, com mais de uma dezena de instituições parceiras, envolvendo até o momento mais de 130 profissionais engajados na elaboração dos verbetes. Para nosso orgulho e consternação, Marielle Franco foi uma das autoras do nosso Dicionário. Se para vocês uma frase pareceu ser suficiente para me demitir, para mim ficou faltando muito a ser falado. Vou lhes explicitar o que não foi dito, mas que não pode ser interdito:
– É necessário pedir desculpas por estarem demitindo a professora mais produtiva da EBAPE, segundo os indicadores de avaliação da produção acadêmica. Com trabalhos publicados em vários países atingiu até agora 143 artigos em revistas científicas, tem 25 livros e coletâneas nacionais e publicados e/ou traduzidos em outros países, com um total de 80 artigos publicados nas coletâneas. Além de ser a professora com mais trabalhos publicados é também a que tem maior número de citações (5995 no total no Google Scholar sendo 2347 desde 2013, correspondendo, respectivamente, a H index 20 e 29 e !10 index 95 e 59). Trabalhos que, além de serem os mais citados dentre o corpo docente, são também os mais lidos, de acordo com relatório periodicamente enviado pelo Researchgate, como o último desta semana: “Great job, Sonia! With 104 new reads, your contributions were the most read contributions from your department Achieved on Mar 25, 2018”
– Imprescindível agradecer os 35 anos de trabalho de excelência e dedicação como professora que formou incontáveis gestores, acadêmicos, militantes políticos, por meio de suas aulas e da orientação de monografias e teses. Aliás, na página atual da EBAPE consta nota sobre a monografia que orientei no Mestrado Profissional e que recebeu Menção Honrosa em recente Concurso do Instituto Pereira Passos. Este é apenas um exemplo da excelência, não será necessário recordar tantos outros, que foram também premiados. O carinho dos alunos, minha sala sempre cheia de jovens pesquisadores, são suficientes para mostrar o reconhecimento do meu trabalho. Na EBAPE, consolidei duas áreas de formação, por meio de inúmeras pesquisas e disciplinas que, por décadas, marcaram a presença da escola na produção acadêmica, o que se evidenciava pelos inúmeros alunos de outras instituições que as cursaram: a área de Política Social e a de Sistema Político Brasileiro. Ambas me foram retiradas em sua gestão, sendo proibida a oferta de Política Social como disciplina eletiva no Mestrado e Doutorado Acadêmicos pelo Eduardo Andrade e a de Sistema Político Brasileiro tendo sido atribuída a outro professor pelo Carlos Pereira. Tempos de decisões autoritárias e casuísticas em que falar em inglês foi igualado a raciocinar e buscar a todo custo aumentar a pontuação na CAPES tornou-se o único objetivo institucional, substituindo a discussão sobre o projeto pedagógico e nossa contribuição ao desenvolvimento nacional!
– Deveria ser mencionada a contribuição decisiva da minha participação na construção da democracia, como formuladora do desenho do SUS, a política pública mais igualitária e democrática, cujo modelo de gestão inspirou inúmeras outras e redesenhou o federalismo brasileiro. Como assessora da Assembleia Nacional Constituinte foi possível incluir a Assistência Social como direito de cidadania na redação da Seguridade Social. Como membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social participou de momento impar no processo de pactuação e geração de consensos na formulação de políticas públicas. Colocou dois ministros – Tarso Genro e Walfrido dos Mares Guia – em contato com a FGV, o que gerou contratos muito expressivos de consultoria.
Enfim, o trabalho atual de criação de uma plataforma wiki, para abrigar a produção coletiva do Dicionário Carioca de Favelas, reafirma o compromisso que sempre mantive com a construção de uma sociedade mais justa e solidária, onde todos são tratados de forma igualitária e as oportunidades devem ser oferecidas de acordo com as necessidades. Ou seja, construir um conhecimento a serviço da transformação social e não apenas usar ações sociais para conseguir acreditação internacional. Em todos os momentos, em reuniões no Palácio do Planalto, nas discussões em audiências no Legislativo, nas rodas de conversa em favelas, representei com dignidade a EBAPE, procurando mudar a percepção daqueles para os quais esta instituição apenas dá espaço para a competição, reprodução das elites e busca de interesses mesquinhos de seus profissionais.
Para finalizar, quero expressar meu desejo de que vocês, ao serem demitidos, encontrem pessoas que tenham capacidade de reconhecimento do seu trabalho, mesmo que nele se inclua a destruição da Administração Pública no interior da EBAPE. Finalmente, aproveito para dizer que deixarei com sua secretária as três medalhas de mérito que me foram concedidas pela FGV, em cada uma das décadas de trabalho na instituição. Em tempos de preocupação ambiental, creio que seria mais adequado reaproveita-las ou mesmo reciclá-las.
Rio de Janeiro, 27/03/2018,
Sonia Fleury
Seguem as injustiças e desrespeito com profissionais dedicados, de alto nível intelectual e comprometidos com o coletivo. Também segue a omissão de muitos e muitos.
Espero que a FGV reveja este ato, para lá de absurdo e medonho, que certamente vai manchar a história desta importante instituição.