Ódio a Lula: A polarização política vai enterrar a democracia no Brasil?, por Leonardo Sakamoto

no blog do Sakamoto

Após o Supremo Tribunal Federal rejeitar a concessão de habeas corpus solicitada pelo ex-presidente Lula, pelo placar apertado de 6 a 5, na noite desta quarta (4), ouvi gritos alucinados no meu bairro de classe média paulistana.

Não era apenas uma posição política ou ideológica que estava sendo extravasada naquele momento, mas ódio em estado mais puro, traduzido em desejo de morte, estupro e esquartejamento, mas também em preconceito social e racismo, temperado com declarações que pediam exílio e banimento de grupos sociais.

Na sequência, por alívio, outras vozes se sobrepuseram a essas. Não defendendo Lula, mas reclamando da cena grotesca.

E, ao fundo, rojões informavam a chegada, não de droga nova na boca de fumo, mas da hora de tomar Lexotan.

Essas mesmas pessoas, no dia seguinte, provavelmente acordaram normalmente, vestiram-se como de costume e seguiram para o trabalho ou a escola como se não tivessem, por um instante, deixado a civilidade e vivido minutos de barbárie.

Por mais que entendamos os processos que levam à desumanização do adversário ou mesmo os mecanismos que fazem com que pessoas pacatas se tornem monstros descontrolados quando devidamente estimuladas, não consigo encontrar uma palavra melhor do que ”insano” para me referir a quem manifesta tal comportamento. E um sentimento que não seja o de pena.

Poderíamos falar de nosso machismo, em que educamos meninos para se comportarem como monstrinhos. Ou da incapacidade de lidar com a falta de sentido ou de controle da própria vida, transferindo frustração do dia a dia para um ato de violência protegido pelo anonimato da manada. Ou ainda do isolamento digital, físico ou social, que leva à desumanização e dificulta o reconhecimento da outra pessoa como detentora dos mesmos direitos.

Já tratei disso aqui antes, mas resgatei e atualizei o debate abaixo, dado a sua pertinência neste momento.

Minha hipótese é de que o sujeito que usa da violência para perseguir adversários políticos é incapaz de canalizar a energia para o que realmente afeta sua dignidade. Como filas em hospitais, aumentos na passagem de ônibus, um salário ridículo, a falta de locais de lazer, a educação insuficiente que seus filhos recebem em escolas públicas e privadas, as moradias caras, patrões que passam a mão na sua bunda, empresas que só enxergam o lucro e passam por cima de tudo, reformas que tiram direitos dos trabalhadores da ativa e dos aposentados.

Pelo contrário, como bons cães de guarda de preconceitos, desconfio que são capazes de xingar quem tenta se insurgir contra a violência da desigualdade social. Por exemplo, contra aqueles cidadãos comuns que ocupam um imóvel rural ou urbano vazio, tornando-o sua moradia.

Certamente, essas pessoas são capazes de afirmar que ocupar um espaço guardado para a especulação imobiliária é violência maior que a falta de moradia. Seja por não ter se conscientizado sobre o que é a sociedade, seja por ter sido sistematicamente alienado sobre tudo isso.

Preferem seguir ”líderes” que propõem soluções fáceis e violentas para o vazio que ostentam no peito. Como as lideranças que prometem paz através da imposição do silêncio ao outro. Seja esse outro o adversário que diz que seu time é o melhor, seja pobres, negros, LGBTTQ, mulheres, entre outros, que exigem ser tratados com os mesmos direitos e ter acesso à riqueza produzida pela sociedade.

Temos visto isso por declarações de jogadores de futebol que dizem apoiar políticos violentos que prometem a imposição do silêncio se eleitos como presidentes.

Ou temos visto nisso em políticos violentos que agem incitando suas torcidas uniformizadas, como no futebol. Como no caso do deputado federal Jair Bolsonaro que, após a negação do habeas corpus a Lula, afirmou, em vídeo, que a decisão foi um ”gol contra a impunidade”. E que ”o inimigo ainda não está eliminado”.

(Mais claro exemplo do que estou dizendo, impossível.)

É interessante como se dá a formação de matilhas pela identidade reativa a um outro grupo ao invés da percepção das características do seu próprio grupo.

É assim com o antipetismo, que se une pelos erros do outro lado. Ou seja, muita gente se une pelo ódio a alguém e não pela solidariedade a alguma causa. O problema é que a união pela negação é incapaz de criar um projeto próprio de país, mas apenas algo com sinal invertido.

Nesse contexto, há torcidas políticas que abandonam a razão muito antes que alguns torcedores de times de futebol. Pois apesar de muitos destes estarem envolvidos em atos de barbárie e selvageria, seus componentes ao menos sabem quando o seu time dá vexame, protestam contra os dirigentes, vaiam a própria esquadra, reconhecem jogadas de craque do adversário.

Muita gente que se torna torcedora fanática na política adota ares de seita fundamentalista religiosa, dividindo o mundo entre o divino e o satânico.

Tente criticar o governo Dilma Rousseff, por exemplo, para quem a santificou por ter sofrido o impeachment, esquecendo todos os ”pecados” de seu governo contra população indígenas, ribeirinhas, quilombolas, trabalhadores rurais, sem contar ao meio ambiente e, consequentemente, às futuras gerações. Ou mesmo à economia. Muita gente não aceita quem critica o impeachment, mas também o seu governo.

Antipetistas e petismo podem adotar feições fundamentalistas. Mas nada se compara com o ódio a Lula.

Acredito que meu ponto de vista está correto. E defendo-o. Mas sei que isso não faz dele o único. Uma outra pessoa pode defender que a forma mais correta de acabar com a fome, a violência, as guerras, a injustiça seja por outro caminho.

Sei que é duro acreditar nisso neste momento de crise política, econômica e social. E, pior: com profissionais das redes sociais, de um lado e de outro, aproveitando a ultrapolarização para distribuir granadas à população.

Por isso, seria bom se buscássemos a tolerância no diálogo, mesmo que firme e duro, e nos perguntemos se achamos que estamos certos a todo o momento, uma vez que nossa natureza não de certezas e sim de dúvidas e falhas que só poderão ser melhor percebidas no tempo histórico.

Como já disse aqui antes, na minha opinião, muitas pessoas podem até se autointitular de direita, de esquerda, progressistas ou conservadores, “mortadelas” ou “coxinhas”, manifestantes pró ou anti-governo, antipetistas e petistas, pessoas defendendo a justiça social ou contra a corrupção. Ou mesmo corintianos, palmeirenses, sãopaulinos, flamenguistas, gremistas. Mas, em verdade, muitos não se importam com o campo ideológico em que estão ou com o time para o qual torcem. Isso é apenas o canal escolhido para extravasar sua violência, sua frustração, seu medo.

Claro que, em última instância, há também aqueles com sérios distúrbios psicológicos ou, mesmo, sociopatas que se escondem em grupos políticos ou torcidas de futebol para praticar seus delitos, sem senso moral ou responsabilidade, sem sentimento de culpa ou reflexão sobre as consequências.

E estou excluindo desta discussão aqueles que são pagos para tocar o terror e agredir psicologicamente ou fisicamente um grupo adversário. Esses, independentemente de sua coloração, entram na categoria de mercenários e deveriam ser julgados como tais.

Sabemos, é claro, que temos um déficit de formação para a cultura política do debate e para a convivência com a diferença e que, infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos educados para a tolerância e a noção de limites.

Por fim, parte dos brasileiros foi ensinado que a violência é o principal instrumento de resolução de conflitos. Por falta ou fraqueza de instituições públicas ou sociais confiáveis que assumam esse papel, por achar que alguns possuem mais direitos que outros por conta de dinheiro ou de músculos, por alguma patologia que nunca consegui entender muito bem.

Há uma minoria de violentos. Na política, no futebol, na religião. E que, portanto, deveria ser tratada ou contida por seus amigos e companheiros. O problema é que o resto da sociedade, por cumplicidade ou indiferença, segue no papel de refém e espectadora de um show de horrores que parece não ter fim.

Ao final, se nada fizermos para qualificar o debate público e não aceitar o inaceitável, os gritos que ouviremos na janela serão, muito em breve, aqueles que pedem o nosso próprio sangue.

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