Os objetos da coleção de obscenidades políticas não param de desfilar efusivamente à nossa frente. De fato a brutalidade, as imagens intoleráveis e o obsceno representam hoje o novo normal
Por Rosane Borges, no Blog da Boitempo
Muito se tem falado, acertadamente, que a prisão de Lula, transcorrida em velocidade supersônica, resulta de um processo em que a desdemocratização e o Estado de exceção se instalam como “ambientes” que possibilitam que as instituições, notadamente o Judiciário, ajam da forma que estão agindo.
Sem-cerimônia, sem verniz, tudo pode, ou quase tudo, ao sabor dos interesses de plantão. Mas, vejamos: nessa cultura em que tudo vale, porque nada vale, não é apenas a regulação da política e da justiça, em termos estritos, que estão ameaçadas. Esse estado de exceção, que instaura um novo normal, também franqueia e sanciona formas agressivas, abominações, brutalidades que ganham aderência porque, repito, tudo vale. Uma performance do ódio advém dessa premissa.
O grotesco como forma política
Ora, se o golpe não atinge somente as raias da política, mas se estende às nossas formas de existência, aos modos de concebermos e partilharmos o comum, é porque ele atinge o coração da experiência estética em seus múltiplos sentidos. Oscar Maroni, dono do Bahamas Club, a casa de prostituição de luxo mais afamada do Brasil, demonstrou que é exatamente assim que a banda toca.
A imagem que circulou infatigavelmente nas redes sociais tem força pedagógica: Maroni exibe um altar destinado a sacralização do juiz Sérgio Moro e da ministra Carmem Lúcia. Ele se coloca na cena com uma fantasia polissêmica (irmão metralha/justiceiro/torturador), mostrando a genitália de uma das suas profissionais, que tem a boca vedada pelo empresário da indústria do prazer.
A submissão da moça demonstra o poder sobre corpos subaltenizados com os quais se pode fazer tudo (silenciar, torturar, violar e até matar). Ademais, o profano e o que se quer sacralizar mostram as ambivalências e inadequações de um gesto agressivo que ultrapassa o perímetro do aceitável.
Muitas coisas cabem nessa foto, como se pôde perceber nos comentários que vieram anexados a ela, e todas essas coisas são tributárias de um mesmo regime: o regime da obscenidade, do intolerável, do abominável. Falo nesses termos não por se tratar do Bahamas Club, mas pelo sentido que essas palavras evocam. Obsceno é estar fora de cena, é a ausência de tela para mediações. Maroni, o judiciário e os outros poderes da República vêm progressivamente quebrando as telas e, seguem, lépidos e fagueiros, rumo ao obsceno (reitero: lugar onde tudo é permitido).
É preciso, pois, que concedamos um pouco mais de atenção à forma das coisas. Elas antecipam, indiciam, prenunciam como os acontecimentos ganham coerência e densidade. A forma não é apenas um continente à espera, passiva, de um conteúdo. Prenhe de sentidos, ela prepara a cena comunicativa.
Gramática das formas
As discussões, hoje bizantinas, sobre forma e conteúdo rondaram o campo da arte e da literatura (com o poema à frente), a partir de uma suposta assimetria entre elas (“bom conteúdo”/“má forma” e vice-versa). Alguns movimentos artísticos, com viés estritamente político, foram prisioneiros dessa dissociação. Para o neorrealismo, o conteúdo (mensagem política) deveria prevalecer sobre a forma (a qualidade estética).
Tal oposição tinha como suposto o entendimento de que a forma seria a expressão externa do conteúdo da obra. Esse é o fundamento que medula a concepção retórica do texto: as ideias (res) seriam representadas pelas palavras (verba), segundo a extração platônica e neoplatônica. O conteúdo se firmaria, desse modo, autônomo em relação à forma, responsável por transmiti-lo com eloquência.
Com a arte abstrata, a poesia concreta, o culto ao nonsense e o experimentalismo das vanguardas no século XX a forma passa a ser liberada da função estrita de apenas veicular conteúdos. Mallarmé foi um dos que revolucionou a forma da escritura por meio da desconstrução do elemento semântico. A folha de papel com seu branco e a escritura, enquanto tipografia, caligrafia e desenho, passam a ser essenciais na composição do poesia.
Formas da política ou Política das formas
Que essas mudanças de perspectiva nos instruam para pensarmos nas formas de dissolução da Política. Ultimamente, vários acontecimentos da cena institucional vêm se prestando a um exame das formas em que eles se dão. Inolvidável, nesse sentido, foi a votação na Câmara dos Deputados em abril de 2016, que autorizou a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Os votos dos “nobres deputados’ se deram sob o chapéu da galhofa e do aberrante. Tudo ali estava em conciliação com o grotesco. Quem não se lembra de alguns deles cobrindo parte do corpo com a bandeira nacional para então proclamar: “em nome de Deus, da família brasileira, dos bons costumes, voto sim, senhor presidente!”; outros, com expressão de raiva, gritavam: contra a teoria de gênero, eu voto sim, senhor presidente. Mostraram-se para o mundo, ainda, aqueles que se comportavam como estudantes da turma do fundão, nada circunspectos, que tumultuavam a votação dos colegas.
Toda a inconsistência de conteúdo nesta votação (afinal, a grande maioria não apresentou argumentos plausíveis em relação aos motivos do impeachment) se fez acompanhar, às vezes anteceder, por uma forma de se expressar, manifestamente debochada, inescrupulosa, em nada cerimoniosa.
Os objetos da coleção de obscenidades políticas não param de desfilar efusivamente à nossa frente. Quando um deputado diz para outra colega deputada que não a estupra porque ela não merece e ainda assim permanece no cargo, e ainda assim é pré-candidato à Presidência da República (a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, processou semana passada o depurado Jair Bolosnaro por essa declaração e outras de cunho inequivocamente racista); quando se tem ritos jurídicos cumpridos da forma que são; quando se fala o que se falou da vereadora Marielle Franco nos espaços digitais e materiais é porque de fato a brutalidade, as imagens intoleráveis e o obsceno também representam o novo normal.
Por essas e outras, Maroni é a imagem mais bem acabada do triunfo do grotesco. Deus nos dibre!
*Rosane Borges é pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, professora do Celacc-USP (Centro de Estudos Latino-Americanos em Comunicação e Cultura), professora da Universidade São Judas Tadeu.