Visita aos Xavante, povo guerreiro e sonhador

Primeira imagem de índio pacificado divulgada ao país, os bravos Xavante reinventam, com um programa de visitação de não-índios, estratégias que lhes permitam manter seu estilo tradicional de vida

Por Inês Castilho*, em Outras Palavras

Causou sensação o primeiro contato pacífico da civilização brasileira com o povo originário do continente, divulgado em todo o país. Os temidos guerreiros Xavante, responsáveis por ataques e mortes em séculos de luta contra a invasão de seus territórios, foram finalmente “pacificados” em 1946. Não se sabe, contudo, quem pacificou quem. O contato com os brancos, os “warazu”, teria na verdade sido decisão da liderança Xavante: “amansar” os invasores como estratégia de sobrevivência. Por terem sido os primeiros a ter a imagem amplamente divulgada, foram a etnia que mais marcou o imaginário coletivo dos demais brasileiros.

Povo sonhador, caçador e guerreiro, os Xavante, como ficaram conhecidos pelos brancos, ou Auwe, como se autodenominam, lideraram o contato com os invasores como forma de sobrevivência física e cultural. Desde então buscam novas estratégias para manter seus territórios e cultura tradicional.

Nos anos 1970 e 80, determinados a recuperar seus territórios ancestrais, passaram a frequentar os gabinetes de Brasília e tornaram-se o terror de certos funcionários da Funai. A dada altura, decididos a conhecer a cultura dos brancos para traçar estratégias de autodefesa, escolheram cuidadosamente oito crianças, filhos de lideranças, que foram entregues a famílias amigas de Ribeirão Preto durante alguns anos.

Fizeram um deputado federal, o cacique Juruna, cuja arma era um gravador com que registrava as promessas em geral não cumpridas dos políticos. Sua vitória mais recente, já nos anos 90, foi a demarcação do território de Marãiwatsédé e expulsão dos fazendeiros lá instalados.

Nós viemos de lá, de onde o sol nasce, da raiz do céu. Nós somos o povo A’uwe uptabi, o povo verdadeiro. Somos guerreiros e caçadores, vivemos nos vastos campos do cerrado, aos pés da Serra do Roncador, desde quando só havia rastros… de caça e de A’uwe. De quando não havia cercas nem estradas interrompendo o nosso caminho.”

Os Xavante são hoje cerca de 13 mil pessoas que vivem em quase 200 aldeias, em oito territórios demarcados no Mato Grosso: Terras Indígenas Chão Preto e Ubawawe, Areões, Marechal Rondon, Parabubure, Pimentel Barbosa, Sangradouro e São Marcos. Os territórios mais isolados, como os de Areões e Pimentel Barbosa, onde está localizada a aldeia Etenhiritipá, conseguiram manter mais íntegras suas tradições. A cultura de alguns desses grupos, contudo, sofreu muitas influências da cultura não-índia e passou por grandes transformações.

Somos de uma linhagem antiga. Aprendemos com nossos ancestrais os fundamentos da Tradição, transmitidos de geração a geração. O tempo de hoje não é mais o tempo do poder, mas o conhecimento aprendido com os ancestrais permanece e vamos cuidar para que continue assim.”

O corte de cabelo, os adornos e pinturas dão identidade ao povo Xavante.

“Queremos que nossos netos e os netos de nossos netos vivam aqui, neste lugar, mantendo vivo o Espírito da Criação. Pintamos nosso corpo com jenipapo, carvão e urucum, tiramos as sobrancelhas e os cílios, usamos cordinhas nos pulsos e pernas e a gravata cerimonial de algodão.”

História

A primeiras referências oficiais a esse povo datam do século 18, na província de Goiás, quando a corrida do ouro levou à região mineradores, bandeirantes, colonos e missionários, pressionando as populações indígenas e provocando resistência e migração. Na segunda metade do século, vários grupos de indígenas, entre eles alguns Xavante, foram aldeados pelo governo e devastados por doenças.

Em 1932, foi atribuída a um grupo Xavante a morte de dois padres católicos salesianos; em 1941, teriam exterminado uma “equipe de pacificação” do Serviço de Proteção ao Indio (SPI) chefiada por Pimentel Barbosa. Sua resistência aos conquistadores criou a imagem de grande bravura, daí a importância de sua “pacificação”.

Quando o governo de Getúlio Vargas, desconsiderando a existência das populações originárias, decide ocupar os “vazios” do interior do território brasileiro e dá início à “Marcha para o Oeste”, a pressão contra os Xavante recrudesce.

A revista O Cruzeiro(1928-1975) acompanhou, com financiamento estatal, a campanha pela colonização do centro-oeste. Entre 1944 e 1949 publicou uma série de reportagens fotográficas sobre a Expedição Roncador-Xingu da Comissão Rondon, que descobriu a existência de populações indígenas ainda sem contato com os brancos.

Em 1946, o indigenista Francisco Meirelles e a equipe do SPI liderada por ele conseguem finalmente estabelecer contato: um grupo Xavante liderado por Apoena aceita objetos oferecidos pelos brancos. A “pacificação do Xavante” foi celebrada pelo Estado brasileiro e divulgada com grande publicidade pelas revistas fotográficas e rádios, alçando Meirelles e Apoena à condição de heróis nacionais.

O “amansamento” dos índios, personificado pelos Xavante, foi usado como metáfora da conquista do interior do país. Representados como primitivos bravos e heróicos, tornaram-se símbolo do “bom selvagem” brasileiro. O imaginário coletivo sobre o índio no Brasil criado a partir dessa imagem encontra-se presente até hoje: “O Cruzeiro reativou o mito fundador da nação, encenou a aceitação da superioridade da cultura ocidental por parte dos povos indígenas e vislumbrou o futuro dos índios como alegres personagens da sociedade moderna industrial.” [1]

Depois do contato, os Xavante da região próxima ao Rio das Mortes, esgotados pelos conflitos, dispersaram-se e formaram várias aldeias – algumas independentes e outras junto a missões religiosas, como forma de defender-se dos conquistadores.

Nos anos 1960 e 70, incentivos fiscais do governo levaram para essa região colonos e fazendeiros. Os grupos xavante foram cedendo às pressões e seus territórios cada vez mais sendo ocupados.

Afirma o Instituto Socioambiental (ISA) que “o acesso a porções do território tradicional do povo Xavante envolveu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos em que, para disponibilizar terras à produção capitalista, autoridades alteraram mapas e atestaram a ausência de habitantes indígenas. Imensas extensões de monocultivo agrícola – de início, sobretudo arroz de terras altas; mais recentemente, soja – foram implementadas pelos fazendeiros, que também desmataram vastas áreas de cerrado com vistas à criação de gado.”

Terror da Funai

Nas décadas de 70 e 80 os Xavante travaram lutas importantes pela reconquista de seus territórios. Iam frequentemente a Brasília e derrubaram vários funcionários da Funai que consideravam indesejáveis.

Famílias que haviam se refugiado em missões ou postos do SPI com a chegada dos colonizadores começaram a retornar a seus territórios de origem, encontrando áreas ocupadas pelo agronegócio. Em alguns lugares haviam surgido cidades. Líderes Xavante começaram a reivindicar seus direitos sobre suas terras, e enfrentaram muita violência.

Ao final de 1981, seis terras xavante já haviam sido demarcadas. Apesar dessas conquistas, os conflitos persistiram e em algumas áreas continuam até hoje. Nos anos 90 conseguiram a demarcação e homologação da terra Marawãitsede, no leste de Mato Grosso. Apesar do reconhecimento oficial, grande parte dessa terra indígena continua ocupada por centenas de não-índios.

O mais conhecido Xavante, o cacique Mário Juruna, foi o primeiro deputado federal indígena eleito do país (1983-1987). Juruna tornou-se conhecido por registrar com um gravador nas mãos as promessas dos políticos no regime militar. Em 1980 representou os índios brasileiros no quarto Tribunal Bertrand Russell, na Holanda. Morreu em 2002, aos 60 anos, depois de permanecer cinco anos em cadeira de rodas em decorrência de complicações crônicas do diabetes – doença que acometeu alguns grupos dessa etnia em razão de mudanças na alimentação e estilo de vida.

Papeis sexuais

Entre os Xavante, os homens transmitem o conhecimento ancestral e tomam as decisões, mas o papel feminino é muito forte em toda a estrutura de sobrevivência, relata a repórter Ieda Estergilda de Abreu.

“Carregar lenha, cuidar da roça, preparar a tinta vermelha do urucum para as pinturas usadas nos rituais, cuidar das crianças – o dia a dia da mulher xavante é uma labuta sem fim. Toda a infraestrutura da vida tribal repousa sobre seus ombros”, conta Ieda.

No calor do cerrado, elas desempenham suas tarefas silenciosamente, “sem interrupção nem pressa”. “Também buscam lenha, pilam arroz, fazem enfeites para os rituais, esteiras e cestos para guardar a comida, carregar os bebês nas costas. Agem assim desde jovens, trabalham duro até as vésperas da gravidez.”

As crianças também têm suas tarefas:. “os pequenos xavantes chegam a transportar até seis garrafas de dois litros de água. A rotina é aceita como parte da natureza para os que vivem de frente para a Serra do Roncador.”

Os Xavante valorizam muito a aliança entre as famílias. Os casamentos acontecem entre membros de clãs diferentes e os homens têm o número de esposas que conseguem sustentar. “Elas aceitam o marido escolhido pelos pais, podem até não gostar de dividi-lo com outras, como é o costume, mas acabam ficando amigas. A nova geração não está querendo mais dividir, mas a cultura ainda é muito forte para quebrar essa barreira”.

Às vésperas do parto, as mulheres se recolhem. “De joelhos, seguram nas estruturas da casa e fazem força para o bebê sair, não gritam nem reclamam durante as contrações. Assim como os homens, as xavantes devem ser valentes em todas as horas. O parto é feito pela sogra.”

O nome das crianças é escolhido segundo os sonhos dos mais velhos. Entre os Xavante, “tudo é transmitido por meio dos sonhos: os nomes das crianças, os cantos rituais, as propriedades medicinais das plantas. É o sonho que orienta os caçadores, que faz a ligação do transcendente com a ancestralidade.”

Embora não participem das decisões, as mulheres sabem tudo o que acontece e também opinam por intermédio dos maridos que integram o warã, diz Ieda.

Seguindo os sonhos

Todos os dias, antes do nascer e ao pôr-do-sol, os homens adultos da aldeia reúnem-se no Warã, pátio central da aldeia e lugar das cerimônias, para discutir os acontecimentos do dia. Ao amanhecer, eles encontram-se novamente para contar os sonhos e, com base na sua interpretação, retomar os assuntos tratados na noite anterior.

É o sonho que direciona nossa vida, dá o rumo, a orientação. É no sonho que chegam os ensinamentos, as mensagens e os cantos, transmitidos pelos ancestrais.”

A capacidade de enxergar além do tempo e do espaço exercida pelos xamãs do povo Xavante pode ser conhecida nesse episódio, narrado pelo jornalista José Tadeu Arantes:

“Há muitos anos, ouvi de Aílton Krenak um relato sobre Apoena (Ahopowê), grande chefe do povo xavante (a’uwê uptabi). Sem nunca haver saído fisicamente do território brasileiro, Apoena teria descrito com detalhes a Alemanha a um neto. O jovem iria representar seu povo em um congresso em solo alemão e o avô tratou de prepará-lo para a realidade que deveria encontrar. Não por acaso, o nome Apoena significa ‘aquele que enxerga longe’.”

Os Xavante continuam buscando novas maneiras de manter contato com os “warazu”, os que não são Auwe, e contar suas histórias é uma delas.

As histórias contadas por nossos avós mantêm nosso povo unido e forte. As histórias que contamos são nossa mensagem para os warazu, os não indígenas. São apenas algumas das muitas histórias, mas falam de um tempo de poder. Para que eles conheçam nossa origem e nossa força. E, assim, possam respeitar nosso território e nosso modo de viver.”

Referências

[1] Burgi e Costa, 2012

Entre dois Mundos, de Angela Pappiani, 2010, Ed. Nova Alexandria

Histórias da Tradição

Instituto Socioambiental (ISA)

*Jornalista, cineasta e pesquisadora, integra o corpo editorial de Outras Palavras, foi editora do jornal Mulherio, realizadora dos filmes de curta-metragem “Mulheres da Boca” e “Histerias” e cofundadora do Nós Mulheres, primeiro jornal feminista de São Paulo.

Ritual do ciclo de iniciação masculina. Foto revista Manchete

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