‘Último prego no caixão de Geisel’, diz coordenador da Comissão da Verdade sobre memorando da CIA

Por 

“É realmente um estrago extraordinário. Mas estrago maior nós já tínhamos feito na Comissão Nacional da Verdade, sem querer parecer pretensioso.”

É assim que o diplomata Paulo Sergio Pinheiro, ex-secretário de Estado de Direitos Humanos (no governo de Fernando Henrique Cardoso) e atual presidente da Comissão de Investigação sobre a Síria na ONU, classifica a revelação de um memorando secreto da CIA, que aponta que o general Ernesto Geisel sabia e autorizava a execução sumária de opositores durante a ditadura militar.

Para o ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, o documento funcionaria como uma “bala de prata”, um “último prego no caixão de Geisel”, que confirma as conclusões do grupo de trabalho, que investigou violações de direitos humanos na ditadura, entre 2012 e 2014.

“Claro que foi um feito jornalístico importantíssimo, não vou diminuir isso, absolutamente. Mas quem estabeleceu a cadeia de comando estando diretamente no gabinete do presidente e do ministério da Guerra fomos nós”, afirma. “Ali está perfeitamente demonstrado que não era abuso, não era excesso, mas era uma ação coordenada por parte do presidente da República. O presidente era informado de tudo.”

Revelado pelo professor Matias Spektor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o memorando de 11 de abril de 1974 era assinado por William Egan Colby, então diretor da CIA, e narrava uma reunião no Centro de Inteligência do Exército entre Geisel, João Batista Figueiredo (então chefe do Serviço Nacional de Informações), e dois generais.

Destinado a Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, o documento reproduz fala do general Milton Tavares de Souza, que cita o assassinato de 104 pessoas consideradas “subversivas perigosas” pelo Estado brasileiro em 1973.

“Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que deve-se tomar muito cuidado para se assegurar que apenas subversivos perigosos sejam executados”, diz o documento, que aponta que todas as execuções deveriam ter o consentimento do general Figueiredo, que ocupou a cadeira de Geisel de 1979 a 1985.

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil – O memorando da CIA que aponta que Geisel sabia da execução de 104 pessoas pelo Estado na ditadura surpreende o senhor?

Paulo Sergio Pinheiro – Não é surpresa para mim essa fala do general Geisel. Porque se você pegar o depoimento que ele deu para o Centro de Pesquisa e Documentação da FGV do Rio, antes de morrer, verá que ele aprova a tortura. Pensava-se que ele fosse contra, havia expectativas sobre ele. O outro ponto é que, se você pegar o relatório da CNV, não há essa declaração específica, mas nós colocamos Geisel junto a todos os outros generais como responsáveis (pelas torturas e execuções). Para você ter uma ideia, todos os grandes chefes do DOI-Codi (centro de repressão do Exército) eram lotados no gabinete do ministro da Guerra. Nós atribuímos responsabilidades em três graus, e no primeiro grau estão os generais.

Agora, é formidável, um documento autêntico pelos detalhes e personagens, uma falta de compostura total. Eles dizem: ‘matem só os subversivos, hein?’, ‘quero ser avisado’, ‘consulta o Figueiredo’. É realmente um estrago extraordinário. Mas estrago maior nós já tínhamos feito na Comissão Nacional da Verdade, sem querer parecer pretensioso.

BBC Brasil – A Comissão da Verdade havia identificado este documento específico? Teve acesso a esta série de memorandos e telegramas?

Pinheiro – Não, não me lembro. Amanhã vamos ter uma conversa, não existe mais a Comissão, mas amanhã vamos nos encontrar para comentar. Destes documentos, especificamente, eu não me lembro. Recebemos alguns documentos que não estavam classificados e foram todos usados.

BBC Brasil – Para o professor Matias Spektor, que trouxe o documento à tona, esta seria “a evidência mais direta do envolvimento da cúpula do regime (Médici, Geisel e Figueiredo) com a política de assassinatos”. O senhor concorda?

Pinheiro – Não é. Absolutamente. Tudo o que nós corrigimos de práticas, por exemplo da guerrilha do Araguaia, é detalhadíssimo. Acho que é um documento importante para liquidar a imagem do general, o Geisel. Claro que foi um feito jornalístico importantíssimo, não vou diminuir isso, absolutamente. Mas quem estabeleceu a cadeia de comando estando diretamente no gabinete do presidente e do ministério da Guerra fomos nós. Se você for lá no relatório, verá que tivemos condições de estabelecer as cadeias de comando, que foi algo dificílimo. Ali está perfeitamente demonstrado que não era abuso, não era excesso, mas era uma ação coordenada por parte do presidente da República. O presidente era informado de tudo.

Vou te contar uma história. Eu trabalhei no arquivo do presidente Arthur Bernardes (presidente brasileiro entre 1922 e 1926). Você acredita que o Arthur Bernardes recebia as transcrições dos telefonemas dos membros da oposição? Era muito fácil censurar porque tudo era por telefonia. Então, se isso ocorreu na Primeira República, na ditadura, evidentemente, foi com muito mais ênfase. O Arthur Bernardes não mandava matar, mas coordenava toda a repressão diretamente, por escuta e tudo isso.

Tudo isso já estava totalmente esclarecido. Agora, evidentemente, uma bala de prata como essa é importante.

BBC Brasil – A revelação gerou críticas sobre possíveis falhas no trabalho investigativo da CNV.

Pinheiro – Isso é de uma estupidez sesquipedal. Há uma frase na abertura de Tristes Trópicos, do Claude Levi-Strauss, que eu até coloquei na minha tese de doutorado, em que ele diz: “É uma pena que eu vou lamentar por não ter visto o que eu poderia ter visto neste momento”. Quer dizer, quem vem depois descobre sempre uma porção de coisas.

BBC Brasil – Nas redes, houve quem chegasse a falar na necessidade de formação de uma nova Comissão da Verdade…

Pinheiro – Se quiserem formar uma nova Comissão da Verdade, podem formar. Agora é uma alegação absolutamente estúpida essa de ‘Ah, não descobriram esta folhinha, então todo o trabalho é uma porcaria’. Nem leram os volumes.

Como não sou o único responsável, acho que o relatório, comparado às 42 comissões da verdade que conheço no mundo, está perfeitamente na mesma categoria. As pessoas precisam ler o relatório antes de dizer bobagem.

BBC Brasil – Como a revelação afeta a imagem histórica do ex-presidente Geisel?

Pinheiro – É o último prego do caixão. Na verdade, todos os atentados que foram cometidos no governo Geisel estão terrivelmente fundamentados e a Comissão da Verdade estabeleceu que ele estava informado sobre tudo o que acontecia. Nenhuma missão decisiva de eliminação podia ser feita sem o aval dele. Este documento somente vem a corroborar isso. Agora, como está causando um enorme barulho, é bom porque liquida de vez essa cultura melíflua, ou simpática ao governo.

Isso não é uma mancha em um currículo maravilhoso. Isso é só uma pequeníssima confirmação do que a Comissão da Verdade já tinha estabelecido.

BBC Brasil – Como descreveria o interesse e a participação dos EUA na ditadura militar brasileira?

Pinheiro – Está estabelecido e bem documentado pelos historiadores o envolvimento (dos EUA) em 1964. Eles mandaram Vernon Walters, que era um exibicionista. Falava português com menos sotaque que eu. Era um gentleman, uma figura muito curiosa, e participou da conspiração de 1964, muito antes de (o golpe) ter sido realizado.

Depois, eu acho que a CIA seguir o Brasil é uma coisa normal. Continua seguindo até hoje. Se você pegar o WikiLeaks, as minhas declarações estão sendo gravadas neste momento. Nenhuma novidade. Mas não foram os EUA que comandaram o governo brasileiro depois de 1964. Havia uma proximidade, lembra-se do Juracy Magalhães (primeiro embaixador brasileiro em Washington depois de 1964) dizendo que “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”?

Mas você se dá conta que, logo depois, no próprio governo Geisel, havia uma política externa independente, que era na linha do Santiago Dantas (Ministro das Relações Exteriores de Jango). O Brasil foi o primeiro país, logo depois da União Soviética, a reconhecer Angola. Foi o primeiro. A situação é mais complexa.

BBC Brasil – Como vê o legado da CNV, quase quatro anos depois do seu encerramento?

Pinheiro – Desastre mesmo é este governo ter jogado no lixo o relatório da Comissão da Verdade. O último ato da presidenta Dilma Rousseff foi criar um “follow up” para o seguimento das recomendações do relatório. E este governo não fez absolutamente nada, nem vai fazer. Ele nem se manifestou.

Na medida em que tem uma política de deixar dar voz novamente aos militares, este governo é responsável por se ter abandonado tudo o que se descobriu na Comissão.

BBC Brasil – Como vê a presença de militares no gabinete de Temer e a convocação de militares para intervirem na segurança pública do Rio?

Pinheiro – Isso é de uma excrescência. Pela primeira vez, desde 1985, ocorreram duas coisas no Brasil. Uma: os homicídios praticados por soldados contra civis voltaram à competência da Justiça militar. Algo que tinha sido derrubado no governo de Fernando Henrique. Outra: o comandante do Exército, que primeiro teve aquele sonho de que não queria uma Comissão da Verdade, resolveu fazer um tuíte sobre impunidade na véspera do julgamento do habeas corpus (do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva).

Comandante do Exército não é para falar, ele falou e não aconteceu nada. E a cereja do bolo é essa intervenção federal demagógica no Rio de Janeiro, onde também pela primeira vez, desde 1985, o secretário de segurança é um general do Exército. Há um retrocesso em dar voz aos militares e evidentemente este governo não vai reagir a este documento, nem à Comissão da Verdade.

Segundo os documentos recém-divulgados, logo após o golpe de 1964, o embaixador americano no Rio de Janeiro, Abraham Lincoln Gordon, dizia a superiores no Departamento de Estado americano que a ordem democrática seria restabelecida em breve. Ele justificava o golpe dizendo que a deposição de Jango evitou um derramamento de sangue no Brasil. Anos depois, as trocas de mensagens passaram a expressar desconforto nos EUA em relação a torturas, execuções e violações de direitos humanos, que tornavam difícil o apoio ao regime brasileiro perante a comunidade internacional.

BBC Brasil – Os EUA realmente achavam que a democracia seria reestabelecida? Os americanos foram inocentes em relação aos generais?

Pinheiro – Acho que sim. O caso brasileiro não é o único. O (Henry) Kissinger (secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977) está envolvido em sangue no golpe contra Salvador Allende, no Chile.

Os paranoicos têm inimigos reais. Mas o Brasil é importante demais para ser dominado pelos Estados Unidos. Eu conheci o embaixador Gordon na época, não era um (Jair) Bolsonaro, absolutamente. Era um professor universitário que virou embaixador. Políticos e embaixadores mudam de perspectiva.

Foto: Wilson Dias /Agência Brasil

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

um × três =