Esta é a quarta matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).
Por Gitanjali Patel, no Rio On Watch
“A missão é justamente desvelar e iluminar cada vestígio da história da comunidade e reconstruir suas memórias de acordo com a voz e a ingerência de seus moradores, na afirmação identitária de seus cidadãos.” (Museu do Horto)
Segundo a historiadora Laura Olivieri, o Horto Florestal teve três fases de ocupação. Os primeiros habitantes da área foram africanos escravizados trazidos para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar em 1578; no século XVIII, trabalhadores foram trazidos para a área para trabalharem em uma fazenda de café e, finalmente, no início do século XIX foi criado o Jardim Botânico, e devido a isso mais escravos e trabalhadores foram trazidos para construírem e manter os jardins. Foram oferecidos lotes de terra para os trabalhadores e suas famílias, e permissão para construírem casas sobre eles, a fim de estarem perto de seu trabalho. Hoje, o Horto é formado em grande parte por descendentes desses grupos de pessoas. No entanto, desde a década de 1960, a comunidade de cerca de 2.000 moradores vem lutando contra ameaças de remoção.
Os membros da comunidade vivem na terra chamada Horto Florestal, que está vinculada à Sociedade das Florestas do Brasil e ao Ministério do Planejamento desde 1875. Um mapa de 1929 da área mostra o perímetro do Horto Florestal de 83,3 hectares e demarca claramente um limite entre esta área e os 54 hectares de propriedade do Jardim Botânico. Esse limite é uma disputa federal de longa data entre a comunidade e a administração do Jardim Botânico. Por outro lado, a administração do Jardim Botânico se utiliza do discurso da conservação ambiental para explicar que quer ‘recuperar’ a terra do Horto Florestal para ampliar os ramos de pesquisa e conservação do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJB). A posição oficial, articulada pelo Presidente do Jardim Botânico, Sérgio Besserman, é que a presença da comunidade “não é compatível com o funcionamento de uma instituição de pesquisa“. Ele afirma que “não tivemos expansão exceto aquilo que já era normalmente considerado do Jardim Botânico. Inclusive a própria área da comunidade que sempre foi considerada, até pela própria comunidade, uma ocupação de um terreno do Jardim Botânico”.
O desenvolvimento da propriedade no entorno dos bairros vizinhos Gávea e Jardim Botânico tornou esse argumento pouco convincente. Além disso, O Globo relatou que o valor das terras do Horto é de R$10,6 trilhões, alimentando a suspeita de que o motivo real por trás da remoção seja a especulação imobiliária.
Em contraste com o que Besserman afirma, os moradores do Horto insistem na sua condição de comunidade estabelecida há mais de 200 anos. O Museu do Horto apresenta uma contranarrativa à história da área do jardim, pois documenta provas da ocupação humana da terra desde dos anos finais do século XVI. Ao fazê-lo produz evidências que afirmam o direito da comunidade à terra, que dão suporte ao seu movimento de resistência contra a remoção.
Em agosto de 2016, o Horto recebeu uma notificação de despejo de 90 dias. Essa decisão veio a despeito de um acordo –feito durante a anterior administração do governo federal sob Dilma Rousseff– de um plano de regulamentação fundiária, que permitiria que os moradores ficassem no Horto Florestal. A justificativa para a remoção da comunidade do Horto era dupla: eles são ‘invasores’ da terra e representam uma ‘ameaça’ à preservação e sustentabilidade do Jardim Botânico. Essa narrativa tem-se tecido em legislação e vem sendo promovida pelo conglomerado midiático vizinho do Horto, Globo. Desde 2006, no entanto, o governo federal também começou a usar o rótulo de ‘invasores’, mas sempre sem, como observa a jornalista Anne Vigna, especificar a data da invasão.
A Rede Globo, que estabeleceu sua sede no bairro Jardim Botânico em 1965, promove essa narrativa, permitindo que ela permeie a consciência pública e se estabeleça como ‘fato histórico’. Manchetes de notícias são deliberadamente expressas como apoio à retórica do Jardim Botânico: “Ocupação ilegal do Jardim Botânico do Rio é imbróglio que se arrasta há décadas” (1986) e “Derrota para os invasores” (2012). As matérias contêm declarações semelhantes, como a afirmação de que “mais um movimento surge na tentativa de garantir a permanência de invasores” (2017). Moradores e ativistas apontam para o papel de Besserman como comentarista ambiental na GloboNews, refletindo o interesse do conglomerado de mídia no argumento defendido pelo Jardim Botânico.
Um museu para contestar acusações
O Museu do Horto, como outros museus comunitários, define-se como um ecomuseu. Os visitantes são convidados a experimentar pessoalmente a história do bairro através de tours lideradas por moradores associados com o museu. O acervo do museu está disponível online e contém uma ampla seleção de fontes como mapas, fotos, vídeos, histórias orais, recortes de jornais e músicas. As informações são organizadas por temas –como música, política, religião e resistência– e pelo tipo de documentos, que são chamados de “Suportes da Memória”. O termo “suporte” destaca a maneira pela qual o museu é mantido pela comunidade. Como evidenciado por esta matéria, a ênfase está na compreensão da história da comunidade a partir de sua própria perspectiva. Emerson de Souza, presidente da Associação de Moradores e diretor do Museu do Horto, destacou:
“O museu não só blinda a história desta comunidade, mas prova a importância e legitimidade para as pessoas que participam dessas histórias também”.
A principal preocupação do acervo é registrar a longa história da comunidade. Além de fontes como mapas, fotos, vídeos, histórias orais e recortes de jornais, o acervo inclui um dossiê escrito pela historiadora Laura Olivieri Carneiro de Souza. O dossiê é explícito em seu objetivo de “defesa de seu pertencimento histórico à região e do reconhecimento inalienável de seu direito à moradia“, e fornece extensas evidências de suporte, incluindo fotos, mapas, documentos governamentais em favor da presença do Horto, artigos de jornais, histórias orais, textos acadêmicos e estudos da área, e carteiras de identificação, que são provas diretas contra alegações de que os moradores são invasores da terra.
Como Emerson resumiu: “A comunidade do Horto foi criada para proteger o meio ambiente, não destruí-lo“. O acervo também contesta a narrativa oficial de que os moradores representam uma ameaça ao meio ambiente. Além da documentação que prova que os empregos de muitos moradores envolvem trabalhos para manter os jardins, o acervo contém registros da participação da comunidade em iniciativas ambientais globais, como ‘Clean Up the World‘ (Limpar o Mundo). O museu também aborda diretamente a campanha de difamação da Globo em uma seção intitulada “Campanha do jornal O Globo de difamação dos moradores do Horto“.
A resistência ao argumento de conservação do Estado apresenta-se na linguagem dos moradores. Eles expressam como suas famílias foram “cultivadas” no Horto e vivem em “total integração com a natureza“. A ameaça de remoção seria como “arrancar do solo”, onde estão suas “raízes“.
O Museu do Horto oferece quatro diferentes tours, cada um deles com forte ênfase nas raízes históricas da comunidade. A primeira opção, “Circuito do engenho”, por exemplo, leva o visitante às ruínas de um dos primeiros engenhos de açúcar no Rio de Janeiro, que remonta a 1575. A opção três é “Circuito das árvores ancestrais”, que é uma caminhada pela floresta até onde os ancestrais indígenas, africanos e afro-brasileiros dos moradores do Horto realizavam seus rituais. Os tours são guiados por uma liderança do museu que narra a história da comunidade, mostra elementos interessantes da flora e fauna e compartilha histórias sobre como era o Horto e como ele é hoje. “Fazemos essas trilhas no final de semana quando as pessoas estão em casa para que possamos passear por elas e conversar“, explicou Emerson.
Desta forma, o Museu do Horto não só apresenta uma contranarrativa ao afirmar as raízes históricas do Horto em seu acervo, mas permite que os visitantes se engajem ativamente na história dos moradores. Através de seus tours, o museu oferece uma experiência multissensorial que lhes permite envolver-se com a história através de seus corpos de uma maneira que não poderia ser feita em um museu nacional ou com um livro de história. Como tal, não é apenas o acervo do museu que “transmite autoridade e estabelece regras para credibilidade”, como coloca o antropólogo historiador Michel Trouillot, já que também o visitante incorpora uma realidade subjetiva e, ao fazê-lo, reforça a memória coletiva local.
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O último estudo de caso desta série, a ser publicado amanhã, é sobre o Museu das Remoções, na Vila Autódromo, que é um exemplo do que um museu pode fazer pelos atuais e futuros movimentos de resistência contra à remoção.
Esta é a quarta matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018)
Gitanjali Patel é pesquisadora e tradutora. Ela é mestre em Antropologia Social pela SOAS, Universidade de Londres. Sua pesquisa analisa a memória e a produção da história nas favelas do Rio de Janeiro.