Por Oscar Vilhena Vieira, na Folha
Janaina é uma mulher pobre, em situação de rua, e que tem filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada.
Como Janaina não consentiu ou voluntariamente se prontificou a realizar a cirurgia, o promotor propôs duas ações judiciais contra ela e o município de Mococa, com o objetivo de constrangê-la a realizar um procedimento de esterilização compulsória.
O juiz, sem sequer realizar uma audiência, nomear um defensor, ou exigir documentos que comprovassem o seu consentimento, determinou que a mulher fosse conduzida coercitivamente à cirurgia.
Quando o recurso do município chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a mutilação já havia ocorrido.
O caso é escatológico. Em primeiro lugar o promotor utilizou-se de uma ação civil pública, que é um instrumento voltado a proteção de direitos difusos, coletivos ou individuais indisponíveis, para destituir uma pessoa de seu direito à dignidade e à integridade, além de constranger o município a praticar um ato manifestamente ilegal.
Basta lembrar que Constituição expressamente proíbe que o Estado brasileiro interfira “coercitivamente” na decisão sobre a paternidade (artigo 226, parágrafo 7º.), além do que, a lei 9.263/96, que regula o planejamento familiar, veda o controle de natalidade que tenha natureza demográfica.
Também causa perplexidade o fato do magistrado, dada a condição de vulnerabilidade de Janaina, não ter nomeado um curador especial, no caso um defensor público, que representasse os seus interesses em juízo.
Conforme expresso no acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, a decisão que determinou a cirurgia foi proferida sem que Janaina fosse ouvida ou defendida; e sequer uma audiência fosse realizada.
Para coroar esse processo bizarro, a Justiça de primeiro grau determinou que Janaina fosse conduzida “coercitivamente” ao procedimento cirúrgico.
Aqui cumpre lembrar que essa é uma medida prevista no Código de Processo Penal, apenas para testemunhas ou acusados que se neguem a atender intimação.
Aliás, por decisão liminar do Supremo, essa medida de natureza processual penal encontra-se suspensa (ADPF 444). Nada disso foi empecilho para que o magistrado empregasse a condução coercitiva para impor a supressão de um direito fundamental dessa mulher.
A esterilização coercitiva, com finalidades eugênicas e apuração da raça, foi largamente empregada pelo regime nazista. A China fez uso da esterilização coercitiva em massa para conter a natalidade. Os Estados Unidos a empregavam para punir criminosos.
Mesmo no Brasil, como foi apontado por uma comissão parlamentar de inquérito, ainda em 1991, havia tolerância com políticas de esterilização coercitiva em massa, com finalidades demográficas.
Esse caso, ainda que possa ser considerado uma aberração jurídica, oferece uma amostra do impacto perverso que a profunda e persistente desigualdade causa sobre o reconhecimento das pessoas como sujeitos de direitos.
Embora o princípio da dignidade determine que todos devam ser tratados com igual respeito e consideração, a miséria e a marginalização parecem tornar largas parcelas de nossa sociedade moralmente invisíveis no dia a dia, perdendo, na realidade, sua condição de sujeitos de direitos.
Que a contundente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que infelizmente não pode fazer o tempo voltar para Janaina, sirva de alerta e inspiração para quem têm por responsabilidade proteger direitos e não os violar.
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Oscar Vilhena Vieira é Professor de direito constitucional da FGV-SP, é doutor pela USP e tem pós-doutorado por Oxford.
Grupo de mulheres se unem embaixo do viaduto para enfrentar a vida na rua e se protegerem. Foto: Marlene Bergamo /Folhapress.
Alexandre,
dentre outras matérias postadas a respeito, sugiro a leitura de “Corregedorias do TJ e MP vão apurar esterilização de moradora de rua”.
http://racismoambiental.net.br/2018/06/12/corregedorias-do-tj-e-mp-vao-apurar-esterilizacao-de-moradora-de-rua/
Vamos com calma, parece que o caso não teria acontecido extamente como relatou o Osca. A mulher teria dado seu consentimento e não se mostraria arrependida:
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,oab-diz-que-esterilizacao-teve-consentimento-de-mulher,70002348974
Racismo ambiental é forçar um pouco demais, não?
Assim, “é no mínimo contraditório”, considerou, “entender que a ré não dispõe de plena capacidade mental para bem dispor de seus atos, mas, ao mesmo tempo, possui plena capacidade de se defender em ação judicial”.
E as crianças quem cuida..os que defendem vão as ruas atrás destas crianças sem protecção. As favelas estão cheias de deficientes sem família por causa das agressões.
Qual a punição q esse juiz, o membro do MP, policiais, médicos e hospitais sofreram?
Frederico Liserre Barruffini
2º Promotor de Justiça de Mococa
Djalma Moreira Gomes Júnior
Juiz de Direito da 2ª Vara de Mococa
Vou postar um comentário de um(a) juiz(íza) que vive diariamente a realidade das varas de infância:
“Indice de recuperacao de crack igual a ZERO. Atendimento humanizado do Haddad igual 160% de aumento da cracolandia. Porrada do Doria igual absurdo total. Saude Mental contra a internacao compulsoria e tem indice zero no tratamento ambulatorial.Mulher se prostituindo com HIV, hepatite C, tuberculose, sifilis e citomegalovirus passando tudo para o bebe e tendo filho de 9 em 9 meses , algumas ja no 12 filho. Criancas todas ferradas com sindrome de alcoolismo fetal, sindrome de abstinencia, convulsao, retardo, microcefalia, paralisia cerebral e mil problemas de saude . E entram 2 a 3 por semana em cada VIJ”.
Também poderia ser colocada a seguinte indagação: quem tutela/acolhe esses pobres nascituros e nascidos? Eles também tem direiros humanos?
Então, a decisão pode ser polêmica e controversa, mas o dilema é bem mais complexo e menos fácil que rotular aqueles profissionais de fascistas.
Eu sou de Mococa, conhecemos a situação da janaina, era era usuária de crack, dois de seus filhos já morreram, um atropelado e outro de complicações de uma anemia forte. Apesar achar que uma pessoa tem todo direito sobre o seu corpo, janaina não possui condições de tomar essa decisão, ela entra em crise de abstinência e as crianças ficam largadas na rua.
Eu pergunto por que a omissão do nome do Procurador que pediu a esterilização e o nome do Juíz que autorizou.
Gostaria de compartilhar a informação completa.
A conduta do promotor de entrar com uma ação civil pública para o caso em questão é uma aberração, constranger uma pessoa a fazer uma cirurgia me parece uma medida exagerada, todavia proponho uma reflexão, essas crianças que são filhos dessa mulher provavelmente passam por sofrimentos, fome , falta de um lar equilibrado, como ficam ?
Parece uma aberração jurídica mesmo, é fascismo puro, é até difícil de acreditar. Precisamos de mais dados para compartilhar com segurança e denunciar o absurdo. Quem pode dar mais informações ?
Infelizmente só temos a informação publicada, Flávia.
Boa tarde. Você pode citar mais dados desse caso? Qual o nome desses responsáveis, se está havendo apuração dessas condutas ex officio etc.