Por Henyo Trindade Barretto Filho*, em Amazônia Real
Para um tema aparentemente irrelevante em nossa sociedade, o drama vivido pelos índios em isolamento voluntário, sobreviventes de massacres genocidas e refugiados em seus próprios territórios, já acumula uma cinematografia expressiva. Desde Na Trilha dos Uru Eu Wau Wau (1990) de Adrian Cowell e Vicente Rios, são ao menos seis documentários recentes, se incluirmos o paradidático Primeiros Contatos – sexto episódio da série ‘Índios no Brasil’, produzida em 2000 pelo projeto Vídeo nas Aldeias para o Ministério da Educação (MEC). Isso para não mencionar alguns dos registros dos pioneiros mestres da fotografia e do cinema etnográfico brasileiro, como: Major Luiz Thomaz Reis, na Seção de Cinematografia e Fotografia do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), Harald Schultz, no Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Vargas e na Seção de Etnologia do Museu Paulista, e Heinz Foerthmann, colega de Darcy Ribeiro na Seção de Estudos do SPI.
Das seis produções contemporâneas a que me referi, quatro foram realizadas neste início de século: Serras da Desordem (2006) do saudoso Andrea Tonacci, Corumbiara(2009) de Vincent Carelli, Paralelo 10 (2011) de Silvio Da-Rin e Piripkura – que estreou simultaneamente em seis capitais do país na primeira semana de março de 2018. Não dá, assim, para fugir da pergunta: que fascínio exercem os índios em isolamento voluntário, que faz com que documentaristas de diferentes matizes se voltem para eles hoje? Que histórias nos contam esses filmas e que histórias estes filmes contam sobre nós? – em especial o mais recente.
Pirikpura (2017, 82’), dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, acumula credenciais sólidas desde antes de sua estreia no circuito comercial: melhor documentário de longa-metragem na 19ª edição do Festival do Rio e prêmio de direitos humanos no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, ambos em 2017; e prêmio do júri de melhor documentário internacional na 14ª edição do Docville (maior festival de documentários da Bélgica), em 2018. Esse amplo reconhecimento não deixa de ser uma expressão das sensibilidades que o documentário mobiliza, das quais um trecho da fala do júri do Docville é significativo: “O estilo observacional do documentário diminui a velocidade do tempo, mergulhando o espectador em um mundo em desaparecimento, que descobre, com absoluto assombro, um momento que nunca mais será esquecido” (ênfase minha).
Resultado de um processo de quatro anos, desde que o grupo de realizadores conheceu o indigenista Jair Candor e seu trabalho à frente da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeirinha-Juruena, o enredo do documentário é relativamente prosaico para muitos dos que atuam com povos indígenas. Jair, servidor da Funai que há 30 anos trabalha no extremo noroeste do Mato Grosso, coordena uma equipe modesta, mas com um enorme sentido de propósito: buscar diuturnamente vestígios da existência dos dois últimos sobreviventes Piripkura de que se tem notícia – Pakyî e Tamandua – para garantir a reedição periódica do decreto governamental de interdição do fragmento de floresta em que vivem sitiados. Na primeira parte do documentário, ainda na Terra Indígena Karipuna, no estado de Rondônia, o filme nos apresenta outra protagonista Piripkura: Rita, irmã de Pakyî e tia de Tamandua, que ao lado de seu marido Aripã Karipuna, participam eventualmente das expedições da Frente, em busca dos vestígios de vida dos seus parentes.
Diferentemente de alguns documentários anteriormente referidos, Piripkura evita a exposição didática e faz uso econômico de inserções de cartela para situar-nos espectadores no contexto histórico em que se passa: a moderna expansão colonial das fronteiras do desmatamento e da agropecuária, no noroeste do Mato Grosso. Em vez de uma narrativa em off, a história de perseguições e massacres genocidas contra um grupo maior de Piripkura, de que Rita e seus dois parentes são sobreviventes, nos é apresentada no ritmo sincopado das memórias e dos desenhos de Rita. Os materiais do documentário, portanto, são as memórias, as vozes, as entonações, as faces e as disposições corporais de seus protagonistas. O filme deixa-se levar – e nos leva – pelo ritmo de trabalho da Frente, entre as sucessivas expedições pela floresta e os períodos de repouso na base. Esse estilo observacional, sem a toda poderosa voz do narrador, atenua a cadência do tempo e nos faz experimentar o estoicismo de Jair e sua equipe no cumprimento da sua missão institucional.
Tal ritmo, contudo, é feito também de surpresas e imponderáveis. Como observa o próprio Jair Candor no filme, a Frente e a equipe “tiram na loteria”, pois estavam de plantão na base quando Pakyî e Tamandua decidem visita-la para reacender sua acha de fogo, seis anos após o encontro anterior, em 2011 – do qual são mostradas imagens de arquivo (as únicas do documentário). Em resenha mais completa do filme, no catálogo do forumdoc.bh.2017, o colega antropólogo Rubem Caixeta, citando o filósofo Georges Didi-Huberman, enfatiza esse caráter vaga-lume dos Piripkura, “que insistem em aparecer e desaparecer” em busca de seu fogo-luz – como no intervalo das aparições, desaparições, reaparecimentos da própria imagem cinematográfica.
É interessante notar que, embora tratam-se de (re)encontros com sobreviventes de massacres, escombros de uma sociedade, nós tendemos a percebê-los como (re)encontros com sobrevivências: a pureza, a liberdade e a autonomia prístinas desses povos. As primeiras reações que repercutiram a estreia do filme abundam em tropos típicos da narrativa colonial: a imagem dos heróis – referidas a Jair e sua equipe – e a vida simples e em harmonia com a natureza dos povos originários. Se eles hoje vivem com quase nada, nunca é demais lembrar: não é que sempre tenham vivido assim.
Olhando para a linha evolutiva dos documentários sobre esses povos, contudo, pode-se reconhecer outras narrativas. Jair mesmo nos conta no filme que ouviu muitos relatos de massacres no noroeste do MT e em RO para limpar o caminho para o desenvolvimento. Por isso mesmo, ele e outros travaram uma luta interna para influenciar a mudança da política do Estado brasileiro para com esses povos: do estabelecimento forçado do contato por meio das frentes de atração e pacificação – sedentarizando-os, restringindo sua ocupação e liberando a apropriação de seus territórios para terceiros (com gravíssima repercussões para a saúde desses povos, como documentam Adrian Cowell e Vicente Rios para os Uru Eu Wau Wau) – à proteção das ruínas de seus mundos de vida, respeitando o seu desejo de não viver conosco (como documentam Silvio Da Rin para os povos do alto Envira e esse sensível trio de realizadores para os Piripkura).
Que tal mudança tenha ocorrido e que o filme seja mais um a documenta-la e de modo muito singular, é um sinal de que talvez estejamos, a duras penas, aprendendo a deixar os outros em paz. Se o filme tiver uma carreira longa e exitosa, como esperamos, quiçá nós possamos revê-lo periodicamente para aprendamos todos a fazer isso também – deixar os outros em paz.
Foto: Dado Carlin/Divulgação, Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso.
Leia mais sobre o filme Piripkura e a programação aqui.
*Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.