Por que o Escola Sem Partido vai contra o papel da escola

Por Ingrid Matuoka, em Educação Integral

Publicado no dia 8 de maio, o relatório referente ao Projeto de Lei nº. 7180/2014, conhecido como Escola Sem Partido, traz argumentos costurados a noções de democracia e de liberdade por meio de linhas falsas.

O texto, assinado pelo deputado Flavinho (PSC-SP), discursa sobre garantir o pluralismo de ideias no ensino e sobre a necessidade de evitar que os docentes prejudiquem os estudantes em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas.

Para especialistas, no entanto, embora estes sejam valores desejáveis em qualquer educação, há facetas dissimuladas que acompanham este discurso, revelando seu teor de censura e de culpabilização dos docentes.

“Os professores não se oporiam a discutir a ética da profissão, como ensinar, equilibrar a construção de conhecimentos com a função social da escola, debates desejáveis e naturais. Mas esse texto toma outro caminho, que é violento: o de proibir que se fale em determinados assuntos”, explica Renata Aquino, mestranda em Ensino de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Professores contra o Escola sem Partido e do Movimento Educação Democrática.

A pedido do Centro de Referência em Educação Integral, estudiosos da Educação analisam o PL em seus pontos cruciais. Confira:

Liberdade do ponto de vista de quem?

“Art. 1º Esta lei disciplina o equilíbrio que deve ser buscado entre a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender, no âmbito da educação básica, em todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados do País” –  trecho do projeto de lei nº. 7180/2014

A liberdade de ensino e aprendizagem já estão estabelecidas na Constituição e na LDB. A necessidade de criar um projeto de lei que prega esse conceito mostra outro entendimento de liberdade, que fica evidente nos artigos seguintes a este primeiro.

Para compreender de que liberdade se fala, vale olhar para os proponentes e apoiadores do Escola Sem Partido. Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, foi só em 2014 que o movimento ganhou corpo como projetos de lei. O primeiro foi apresentado por Flávio Bolsonaro, e o segundo por seu irmão, Carlos Bolsonaro (PSC-RJ).

Em maio deste ano, o PL 7180/2014, que tramita na Câmara, recebeu parecer favorável da comissão especial destinada a analisá-lo.

Esse colegiado era capitaneado pela bancada evangélica, com figuras como Pastor Eurico (PEN-PE), João Campos (PRB-GO), Delegado Francischini (PSL-PR) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Flavinho, o relator, é missionário católico na comunidade Canção Nova.

Durante as audiências públicas para debater o texto do projeto, que ocorreram ao longo de 2017, a comissão ouviu 31 especialistas, entre advogados, educadores, estudantes, religiosos e familiares.

Dos 31 convidados, apenas 10 eram da oposição, revelando um desequilíbrio no debate e corroborando a versão dos que são contra o PL: trata-se de garantir a hegemonia da perspectiva conservadora, ao invés de fazê-la dialogar com visões diferentes para se construir uma educação mais democrática, neutra e verdadeiramente livre.

É o que defende Valdir Heitor Barzotto, professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “A dimensão política não pode ser retirada dos eventos humanos, portanto nem da educação. A tendência, de fato, é silenciar toda e qualquer visão mais à esquerda ou de promoção da igualdade e respeito à diversidade”, diz.

Como o Escola Sem Partido entende a educação

O professor “não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para nenhuma corrente política, ideológica ou partidária”. No resumo, também diz que é preciso determinar a conduta dos professores na “transmissão dos conteúdos” – trecho do projeto de lei nº. 7180/2014

Definir os alunos como “audiência cativa” e professores como “transmissores dos conteúdos” diz sobre a compreensão que o Escola Sem Partido tem da educação.

“É uma visão pedagógica ultrapassada, que entende o aluno como uma folha em branco, passivo, e estabelece uma relação hierárquica entre estudantes e professores, e não uma educação democrática”, diz Russel Teresinha Dutra da Rosa, professora na Faculdade de Educaçao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Para Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, esse é um arcaísmo que assola tanto a direita quanto a esquerda, e reforça que o professor não transmite conteúdo.

“Ele compartilha um conhecimento sistematizado e constrói com os alunos o aprendizado, mediando o processo cognitivo. Quem transmite retira de si e dá para o aluno. E o professor não perde o que ensina, ao contrário, ensinando também aprende”, explica Daniel.

Logo, em uma mesma escola é possível ter contato com visões diferenciadas, uma vez que todos os professores e colegas de classe são diferentes entre si e carregam consigo valores diversos, agem de maneiras únicas diante de uma mesma situação, e têm origens variadas.

“A escola deve ampliar o repertório das crianças em relação à família, mostrar que existem outros valores e diferentes visões de mundo. E ao longo desse processo, vão construindo suas próprias visões de mundo. Quanto mais plural e tolerante à diversidade for esse caminho, mais perto estaremos de uma sociedade democrática”, diz Russel.

A separação entre educação escolar e familiar é possível?

“Respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” –  trecho do projeto de lei nº. 7180/2014 que propõe alteração na LDB

Para exemplificar a falácia deste argumento Renata Aquino lembra de um caso ocorrido em uma comunidade do Rio de Janeiro, no ano passado. Na primeira aula de História de uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), os estudantes chegaram à escola cansados após um dia de trabalho. Tentando tornar a aula sobre História Medieval mais interessante, o professor falou sobre como era o trabalho na época, esperando que o assunto pudesse despertar o interesse nos alunos, uma vez que eles também trabalham.

Explicou então as principais características de um servo na Idade Média: trabalho compulsório, sem direito de ir e vir e passíveis de punições físicas. Após a explicação, uma aluna levantou a mão para dizer: “acho que a minha mãe é uma serva, porque ela apanha do meu pai, não pode sair de casa quando quer e tem que limpar, cozinhar e arrumar a casa todos os dias, obrigatoriamente”.

“Esse caso mostra como seria cruel ouvir isso de um aluno e ignorá-lo completamente, uma vez que, segundo o Escola Sem Partido, abordar essa questão, sob qualquer perspectiva, seria adentrar os campos da educação familiar”, diz Renata.

Situações como essa acontecem cotidianamente. Os alunos interferem, questionam, contam sobre experiências próprias, ou pelo menos deveriam ser estimulados a participar da aula. Além disso, costumam ter o tempo todo, na palma da mão, um celular com acesso às mais variadas informações e pessoas.

“O Escola Sem Partido quer que o professor fale só dos conteúdos curriculares, mas é difícil dar sentido para a aprendizagem sem falar de temas atuais, do contexto. Ter a liberdade para discutir questões variadas em sala de aula não é o mesmo que obrigar o aluno a pensar de determinada maneira. Nós mal conseguimos obrigá-los a fazer a tarefa de casa, quem dirá a pensar de um jeito ou de outro”, diz Renata.

  • Educação moral

Daniel Cara defende que a educação escolar deve representar o conjunto da sociedade, e lembra que a própria Constituição diz que o Brasil precisa ser um país pautado pela justiça social.

“Se uma família não aceitar a justiça social, por exemplo, não considero justo e adequado a moral familiar se sobrepor à missão da educação escolar. Se a família tiver uma postura discriminatória, por exemplo, a moral familiar deve ser enfrentada e não pode se sobrepor à educação escolar. A família precisa ser considerada como parte da sociedade. Mas não pode ser maior do que o todo”, diz Daniel.

  • Educação religiosa

Do ponto de vista da educação religiosa, há conflitos decorrentes de crenças que desconsideram saberes científicos. Embora não seja papel da escola dizer aos alunos sobre o que acreditar, a instituição deve mostrar outras formas de ver o mundo e estimular o respeito ao diferente.

“Se o aluno e sua família acham que chove porque deus quer, não vou poder ensinar sobre o ciclo da água? Se a ideia é deixar o aluno na tendência que ele já está, então não há educação”, diz Valdir Barzotto.

  • Educação sexual

Sobre a educação sexual de crianças e adolescentes, a pesquisa “Emerging Adolescent Sexuality: A Comparison of American and Dutch College Women’s Experiences” (“Emergindo da sexualidade na adolescência: uma comparação entre as experiências de universitárias americanas e holandesas”, em tradução livre) revelou os benefícios de realizá-la desde cedo: menor índice de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e arrependimentos.

O estudo escolheu os dois países por apresentarem índices de IDH e industrialização similares, mas serem opostos em um ponto: a forma como abordam a educação sexual nas escolas.

Enquanto os americanos abordam o assunto a partir da perspectiva do medo e dos perigos, em idades mais tardias, os holandeses apostam na comunicação direta sobre o assunto, desde cedo, pelas famílias, professores e médicos.

Como resultado, as jovens americanas se tornam sexualmente ativas mais cedo do que as holandesas e demonstram distanciamento da família neste processo. As holandesas, por sua vez, apresentam mais experiências sexuais positivas e seguras.

Ainda que a educação sexual não seja de responsabilidade exclusiva de meninas e mulheres, e as experiências acima citadas estejam distantes da realidade brasileira, o estudo deixa uma pista sobre a importância da educação sexual por diversos setores da sociedade, inclusive, a escola.

Por aqui, o Escola Sem Partido quer banir a discussão dos colégios. “Essa posição vem de grupos religiosos mais conservadores, uma vez que grande parte dos proponentes do PL são vinculados à bancada evangélica do Congresso”, explica Russel.

A relação entre alunos, famílias e escolas

“Art. 3º As escolas afixarão nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e professores, cartazes com os Deveres do Professor”– trecho do projeto de lei nº. 7180/2014 em referências às seis obrigações dos docentes que garantiriam sua aplicação.

Sobre este ponto, Russel resume: “O Escola sem Partido coloca o professor sob suspeita e reserva aos estudantes e suas famílias o lugar de delator. Essa dinâmica foi muito comum durantes regimes autoritários”.

Ainda que o PL não tenha sido aprovado, o movimento já gerou um clima de vigilância. “Muitos estudantes gravam trechos da aula, sem o contexto completo, e difamam os professores nas redes sociais. Há famílias que intimidam professores pelo seu trabalho pedagógico e equipes diretivas que afastam ou demitem professores por conta disso”, conta Russel.

“Essas práticas têm se tornado comum e é muito violento culpabilizar o professor por tudo”, acrescenta Renata Aquino.

Mas a relação entre alunos, famílias e escolas não deveria ser essa. O texto da LDB propõe a valorização dos estudantes e seus responsáveis na construção do Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas, e sua participação nos conselhos escolares, definindo atividades que vão acontecer na escola, e como serão feitos os investimentos.

A própria definição de educação integral pressupõe muito diálogo entre escola e família e participação por meio do debate democrático, e não da intimidação.

Russel explica que é natural que conflitos aconteçam, porque a escola é um espaço social mais amplo do que a família, onde as crianças entram em contato com o mundo. Por isso, é preciso que as instituições se aproximem ainda mais, e que a escola faça um esforço de explicar sua proposta pedagógica e as atividades que serão realizadas.

“A escola é uma janela que abre outras possibilidades e aspectos que a família não mostra, e não dá para ter plena coincidência de todos os valores, mas dá para ter aliança, confiança, diálogo. Dá para trazer as famílias para dentro da escola, escutar o que a família têm a dizer, desmanchar os medos construídos, e deixar claro que independentemente das variedades de família, todas merecem respeito e lugar na escola. Assim se faz uma educação democrática”, conclui Russel.

Ilustração por Guilherme Peters.

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